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Gilberto Garbi A ideia rudimentar de infinidade, ou seja, de quantidades ou números que possam se tornar tão grandes quanto desejarmos, é bastante antiga e pode ser encontrada já nos primórdios da Matemática dedutiva. Os gregos Eudóxio, de Cnidos (408 – 355 a.C.), e Arquimedes, de Siracusa (287 – 212 a.C.), por exemplo, usaram-na com sucesso em seus estudos sobre perímetros, áreas e volumes de figuras delimitadas por linhas ou superfícies curvas. Mas outro grego, Zenão, de Eleia, (cerca de 450 a.C.), produziu com ela paradoxos de difícil explicação, como o de Aquiles e a tartaruga, ao concluir que, por dever a distância entre o herói e o lento animal ser coberta por uma infinidade de etapas, os dois jamais se encontrariam. Georg Cantor, nascido em 1845, em São Petersburgo. Muitas discussões sobre o infinito voltaram a acontecer após a invenção do Cálculo (século XVII), quando quantidades “infinitamente grandes” ou “infinitamente pequenas” precisaram ser usadas para avaliar limites. Notáveis matemáticos, como Gauss, afirmavam que o “infinito real” é algo que não existe, havendo apenas um “infinito potencial”, ou seja, a possibilidade de se fazer com que certas quantidades sejam tão grandes quanto desejarmos. Tudo isso fazia com que os matemáticos adotassem uma postura cautelosa em relação ao infinito, pois estavam conscientes de que qualquer descuido poderia levá-los a cometer erros. Mas foi sobre esse desconhecido e desafiador terreno que, certo dia, um dos matemáticos mais criativos e originais de todos os tempos resolveu focar suas atenções: Georg Ferdinand Ludwig Philip Cantor (1845 – 1918). Cantor nasceu em São Petersburgo, Rússia, em uma família profundamente religiosa, filho de pais judeus convertidos ao cristianismo. Aos onze anos, mudou-se para Frankfurt e foi na Alemanha que estudou e passou quase toda a vida. Diplomou-se na Universidade de Berlim, onde foi aluno de Karl Weierstrass, mas jamais conseguiu ensinar naquele que era um dos maiores centros matemáticos do mundo, devido principalmente à forte oposição que Leopold Kronecker fazia a suas ideias nada convencionais. Foi por volta de 1870 que Cantor interessou-se pelos conjuntos infinitos e sobre eles passou 25 anos produzindo trabalhos de grande importância e originalidade. Georg Cantor faleceu em 1918, em Halle, Alemanha. O centro das atenções de Cantor nos conjuntos com infinitos elementos foi a questão de seus “tamanhos”. Por exemplo, existem infinitos números naturais e infinitos números irracionais. Haveria alguma forma de comparar essas duas infinidades, de se saber se uma é maior do que a outra? A comparação entre dois conjuntos com quantidades finitas de elementos é simples: contam-se os elementos de cada um e comparam-se os números obtidos. Entretanto, em conjuntos com infinitos elementos, tal contagem é impraticável. Estava-se, pois, diante de uma daquelas questões que deixam as pessoas comuns sem saber sequer por onde começar. E é em situações assim que os gênios costumam ter ideias brilhantes. Cantor notou que, em conjuntos com números finitos de elementos, existe outra forma de comparar tamanhos, além da contagem pura e simples. Suponhamos que se deseje saber se as quantidades de dedos que temos em cada mão são as mesmas, sem contá-los. É simples: basta colocar uma mão contra a outra e ver se a cada dedo de uma corresponde um dedo da outra. Se isso acontecer, mesmo sem sabermos que existem cinco dedos em cada mão, podemos afirmar que elas têm a mesma quantidade de dedos. Em outras palavras, a possibilidade de se estabelecer uma correspondência biunívoca entre os elementos de dois conjuntos finitos assegura que ambos têm o mesmo número de elementos. Cantor decidiu estender esse critério aos onjuntos infinitos e disse que todo conjunto que possa ser colocado em correspondência biunívoca com o conjunto dos naturais é “enumerável” ou “contavelmente infinito”. Criou também a figura de um número cardinal “transfinito” correspondente à infinidade dos números naturais, chamando-o de aleph-zero, representado por O primeiro conjunto infinito que Cantor comparou com o dos naturais foi o dos racionais. Embora, intuitivamente, nos pareça que a quantidade dos racionais seja muito maior do que a dos naturais (entre dois naturais quaisquer existe uma infinidade de racionais), Cantor mostrou elegantemente que os dois conjuntos podem ser colocados em correspondência biunívoca. Para tanto, ele dispôs os racionais conforme a tabela ao lado, em que nas duas primeiras colunas estão os racionais com numeradores, respectivamente, 1 e –1, nas duas seguintes os com numeradores 2 e –2, e assim sucessivamente, enquanto em cada linha os denominadores são 1, 2, 3, ..., etc. Todos os racionais estão nela, pois os racionais p/q, positivo e negativo, encontram-se, respectivamente, nos cruzamentos da linha de ordem q com as colunas de ordem (2p – 1) e 2p. Agora, caminhando sobre a tabela seguindo as setas, pode-se cobrir todos os racionais, a cada passo associando um deles a um natural. Note que a tabela construída contém repetições de racionais porque, por exemplo, 2/3 = 4/6, mas isso não é problema porque podemos saltar todos os que já foram contados anteriormente. Em resumo, o conjunto dos racionais é “contavelmente infinito” e sua cardinalidade também é O passo seguinte foi estudar o conjunto dos números algébricos, aqueles que são raízes de equações polinomiais de coeficientes inteiros. Ao fazê-lo, Cantor descobriu algo surpreendente: ele também é infinitamente contável e sua cardinalidade, portanto, é
Ao definir altura dessa forma, ele fez com que o menor valor possível para h seja 1, correspondente à equação x = 0. Imagine-se, agora, um valor qualquer para h. Quantas equações existem correspondendo a tal h? Não é preciso sabê-lo com exatidão para poder afirmar que se trata de uma quantidade finita, porque é limitado o número de coeficientes inteiros cujos módulos, somados aos possíveis graus de equações menos 1, totalizem h. Por exemplo, com altura 2, existem somente as equações x + 1 = 0, x – 1 = 0, 2x = 0 e x² = 0. Com altura 3, são somente as equações 3x = 0, 2x + 1= 0, 2x – 1 = 0, x + 2 = 0, x – 2 = 0, E assim por diante. Para uma mesma altura, podem corresponder equações de diferentes graus, mas qualquer equação algébrica de coeficientes inteiros será encontrada em alguma altura a partir de h = 1. Como cada equação algébrica tem um número finito de raízes, para cada altura h corresponde um número inito de números algébricos, não necessariamente reais ou distintos entre si. Eles podem, portanto, ser contados, desprezadas as repetições, a partir de h = 1. Assim, os números algébricos são contáveis e sua cardinalidade também é Continuando, novamente por meio de um raciocínio brilhante, Cantor provou que os números reais (aqueles que costumamos representar distribuídos continuamente sobre uma linha reta) não são contáveis. Para fazê-lo, Cantor supôs o oposto, ou seja, que todos os reais fossem contáveis, o que implicaria que aqueles compreendidos entre 0 e 1 também o fossem. Como existem naquele intervalo números que podem ser escritos na base 10 de duas maneiras diferentes (por exemplo, 0,3 e 0,29999999999999....), convencionemos que eles sempre serão grafados da segunda maneira, para que suas sucessões de algarismos não tenham fim. Assim sendo, se fossem contáveis, eles deveriam poder ser todos colocados em uma sequência da forma 1 → 0, a11a12a13... 2 → 0, a21a22a23... 3 → 0, a31a32a33... n → 0, an1an2an3... assim por diante, indefinidamente, onde os aij são dígitos de 0 a 9. Ora, qualquer número do tipo
0, b1b2b3 ... bn ..., com b1 ≠a11, b2 ≠a22, b3 ≠ a33, etc.,
estará dentro do intervalo (0, 1) e diferirá dos números acima, associados a 1, 2, 3, etc., por pelo menos um dígito, ou seja, estará fora da lista que deveria conter todos os reais, se eles fossem contáveis. Logo, não o são e sua cardinalidade não é Os números que não podem ser raízes de equações polinomiais de coeficientes inteiros são chamados transcendentes, em contraposição aos algébricos. Essa prova de Cantor é uma demonstração indireta de que existem os transcendentes, pois, se os reais não são contáveis e os algébricos o são, então existem reais não algébricos. Ficou também demonstrado que existem muito mais números transcendentes do que algébricos. Mais tarde, com raciocínios sempre muito engenhosos, Cantor conseguiu provar a existência de uma hierarquia sem fim de outros transfinitos, além do Os trabalhos de Cantor foram muito mais além, tendo ele demonstrado proposições que desafiam nossa intuição, como, por exemplo, que em um segmento de reta de comprimento qualquer existem tantos pontos quanto existem em um quadrado com aquele segmento como lado. Esse fato surpreendente, aliás, ele comunicou em uma carta a seu amigo e grande matemático Richard Dedekind (1831 – 1916), com o comentário: “Eu vejo e não acredito”. Infelizmente, Cantor sofria de uma enfermidade mental que hoje é denominada síndrome bipolar, tendo sido internado várias vezes em hospitais psiquiátricos a partir de 1899, até que faleceu em um deles, em 6 de janeiro de 1918. Mas sua monumental obra foi definida por David Hilbert, um dos maiores matemáticos do século XX, como “o mais espantoso produto do pensamento matemático, uma das mais belas realizações humanas no domínio do puramente inteligível”. E foram de Hilbert, também, as palavras com que o mundo, finalmente, veio a avaliar Cantor: “Ninguém jamais nos expulsará do Paraíso que Cantor criou para nós”. BIBLIOGRAFIA ÁVILA, G. A teoria dos conjuntos e o ensino da Matemática. RPM, n. 4, SBM, 1984. BOYER, C. & MERZBACH, U. História da Matemática, Blucher, 2012. EVES, Howard. Introdução à História da Matemática. Editora da Unicamp, 2004. NIVEN, I. Números: racionais e irracionais. Apêndice C. SBM, 2012. STRUIK, Dirk J. A Concise History of Mathematics, Dover Publications, 1987.
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