Maria Terezinha Jesus Gaspar
Universidade de Brasília

Responsável
Sérgio Roberto Nobre
UNESP - RIO CLARO


INTRODUÇÃO

O teorema de Pitágoras é considerado, por vários estudiosos, um dos teoremas mais importantes e atraentes da história antiga da Matemática. Vários resultados em geometria e na solução de problemas práticos relacionados a medidas foram descobertos por meio dele ([4]).

A associação desse tão conhecido teorema relativo a triângulos retângulos com o nome do grego Pitágoras, de Samos, é universal ([8]), embora seja questionável a atribuição a ele da descoberta e demonstração do teorema.

Evidências indicam que os antigos babilônios conheciam o teorema cerca de mil anos antes da
época de Pitágoras. De fato, até 1930, o teorema de Pitágoras era considerado como sendo “de Pitágoras”. Em 1928, Neugebauer ([7]) publicou evidência mostrando que os antigos babilônios, por volta de 1700 a.C., já conheciam o teorema e, em 1937, ele conjectura que “o que era chamado pitagórico, na tradição grega, seria melhor chamado de babilônico”. Somente em 1943, após a descoberta de um texto cuneiforme sobre “ternas pitagóricas”, Neugebauer considera sua conjectura validada ([7]).

Encontramos a utilização do teorema de Pitágoras nos registros matemáticos das civilizações egípcia, indiana, chinesa. As versões originais das obras indianas e chinesas nas quais o teorema aparece provavelmente datam do tempo de Pitágoras ou lhe são anteriores.

Quando olhamos para a história do teorema de Pitágoras nas diversas civilizações, encontramos dois aspectos distintos de sua aplicação: um geométrico e outro computacional ([7]).

Aspecto geométrico

É identificado, por exemplo, quando consideramos que a hipotenusa de um triângulo retângulo (ou diagonal de um retângulo) gera um quadrado cuja área é a soma das áreas dos quadrados gerados sobre os lados.

Aspecto computacional

A medida da hipotenusa de um triângulo retângulo (ou a medida da diagonal de um retângulo) é igual à raiz quadrada da soma dos quadrados das medidas dos lados. Esse aspecto computacional é identificado no interesse de algumas civilizações pela construção de ternas de números reais (a, b, c) que satisfazem a relação a2 + b2 = c2, sendo o aspecto predominante no ensino fundamental e médio.

De acordo com Seidenberg ([7]), a Grécia e a Índia conheciam ambos os aspectos e a Babilônia usava o aspecto computacional, mas não usava o geométrico.

Para melhor entender esses dois aspectos, considere o problema:

Dados os lados a e b dos quadrados A e B, achar o lado c de um quadrado C cuja área é a soma das áreas dos quadrados A e B.

Na Grécia (nos Elementos), esse problema é resolvido por uma construção geométrica, sem o uso da aritmética. Na antiga Babilônia, a e b são vistos como números e a solução descrita é obtida por um procedimento aritmético, que equivale a calcular a raiz quadrada de a2 + b,2. O conhecimento geométrico se restringe a saber o que é um quadrado e como calcular sua área a partir do lado.

Na antiga civilização indiana é possível identificar tanto o aspecto computacional quanto o geométrico do teorema de Pitágoras, como veremos a seguir.

AS FONTES DO CONHECIMENTO
MATEMÁTICO DA ÍNDIA ANTIGA

As fontes do conhecimento matemático da Índia antiga são os Sulbasutras, considerados as primeiras fontes escritas da geometria da antiga Índia, da época estimada entre 800 a.C. e 500 a.C, em que apareceram os livros filosófico-religiosos, os Vedas. Alguns estudiosos consideram que diversos assuntos neles tratados remontam provavelmente ao século XV a.C.

A palavra Sulbasutra deriva das palavras sulba-sutra, que significam “regras de corda”. Os Sulbasutras, apêndices dos Vedas, continham instruções de caráter religioso para a construção de altares, utilizando cordas e palitos de bambu. A geometria dos Sulbasutras é principalmente construtiva, embora, ocasionalmente, encontrem-se observações sobre algum resultado geométrico utilizado. As figuras geométricas, usadas para construir os altares, incluíam: triângulos, quadrados, retângulos, trapézios, círculos, semicírculos, retângulos com um semicírculo sobre um lado, que deveriam ajustar-se a dimensões ou áreas específicas. A orientação, as formas e as áreas dos altares tinham que ser rigorosamente exatas, e essa exatidão era tão importante quanto a pronúncia correta dos cânticos e recitais védicos (os mantras).

Os Sulbasutras mais importantes, do ponto de vista matemático, são o Baudhayana, o Mãnava, o Apastamba e o Katyayana, escritos em versos, sendo o Apastamba o mais conhecido.

O Baudahayana Sulbasutra foi escrito por volta de 800 a.C, o Mãnava Sulbasutra foi escrito cerca de 750 a.C., o Apastamba Sulbasutra aproximadamente 600 a.C. e o Katyayana Sulbasutra cerca de 200 a.C.

Em 1875, G. Thibaut traduziu uma grande parte dos Sulbasutras e mostrou que o conhecimento matemático dos sacerdotes hindus não era pequeno. Ele traduziu o Baudhayana Sulbasutra em The Pandit, volume 9 (1874), volume 10 (1875), n.s. volume 1 (1876/77) e o Katyayana em The Pandit, n.s. volume 4 (1882). O Apastamba Sulbasutra foi traduzido por Bürk no Zeitschrift der Deutschen Morgen Ländischen Gessellschaft, volume 56 (1902).

Os conteúdos geométricos contidos nos Sulbasutras podem ser divididos em três categorias:

  • resultados e teoremas geométricos explicitamente formulados;
  • procedimentos para construir diferentes formas de altares;
  • dispositivos algorítmicos.

G. Thibaut mostra, em 1875, que os sacerdotes indianos conheciam o teorema de Pitágoras, relacionado a quadrados construídos sobre a diagonal e lados de um retângulo, considerado na primeira categoria.

O TEOREMA DE PITÁGORAS

É altamente provável que o teorema de Pitágoras fosse conhecido na Índia muito antes do período dos Sulbasutras. Seu enunciado é encontrado nos Sulbasutras de Baudhayana e Apastamba, e o fato de o teorema ser enunciado em duas partes, primeiro para quadrados e depois para retângulos quaisquer, talvez indique duas etapas na sua descoberta.

A versão de Baudhayana ([6]):

A corda que se estica no sentido da diagonal
de um quadrado produz uma área de
tamanho o dobro da área do quadrado original.

figura 1

 

No Sulbasutra de Katyayana, no entanto, encontramos uma proposição mais geral, que pode ser escrita do seguinte modo:

A corda esticada ao longo do comprimento da diagonal de um retângulo produz ambos uma área igual à obtida conjuntamente pelos lados horizontal e vertical.



figura 2

 

Observe que, para os indianos, o teorema de Pitágoras não é um teorema sobre triângulos retângulos e sim um teorema sobre retângulos.

A DESCOBERTA DO TEOREMA

Existem pelo menos três explicações de como o teorema de Pitágoras pode ter sido descoberto pelos indianos. São elas:

1a) Pela observação de que o quadrado sobre a diagonal de um quadrado pode ser dividido em quatro triângulos, cada um deles de área igual à metade da área do primeiro quadrado.

 
figura 3

2a) A partir da construção do atman, que é um quadrado de 4 purushas* de área e é feito unindo 4 quadrados de uma purusha. Se traçarmos as diagonais dos quadrados menores como na figura 4, formamos um quadrado que está dividido em quatro triângulos de área meia purusha. Assim, o teorema pode ter sido descoberto pela observação de que o quadrado sobre a diagonal de um quadrado tem área igual ao dobro da área desse quadrado.


figura 4

*purusha: unidade de medida de comprimento equivalente à altura de um homem em pé com os braços esticados para cima.

3a) E a terceira explicação estaria relacionadaà construção do altar paitrkyvedi, que é feita a partir da construção de um quadrado de duas purushas e as quinas do Vedi ficam sobre os pontos médios dos lados. O diagrama da construção é o mesmo da figura 5, porém nesse caso a construção se inicia com o quadrado cujo lado mede duas purushas.

Para Amma e Katz, esses são os modos mais razoáveis de ter acontecido a descoberta do teorema ([1]). Com relação à descoberta pelos indianos, Thibaut, de acordo com Amma, considera que, possivelmente, eles desenharam quadrados sobre os lados e diagonais de um retângulo, dividindo-os em unidades quadradas e encontrando a relação pela contagem das unidades.

Bürk e Datta, também de acordo com Amma, sugerem que a descoberta do caso geral pode estar relacionada ao problema de construir quadrados com área maior do que a de um dado quadrado, problema esse que aparece em várias construções de altares da época védica. Em um desses altares são utilizados 225 + 64 = 289 tijolos, que são arrumados para formar um quadrado do seguinte modo:

  • Um quadrado é construído com 256 = 162 tijolos.
  • Os 33 tijolos restantes são colocados em torno do quadrado construindo um quadrado de lado 17.


figura 5

Para Amma ([1]), essa orientação estranha, já que os 289 tijolos podem ser arrumados em fileiras de 17 tijolos para formar o quadrado, deixa clara a familiaridade dos indianos da época com a ideia de aumentar um quadrado acrescentando a ele um gnomon, a descoberta de ternas pitagóricas por esse processo seria então natural.

AS TERNAS PITAGÓRICAS

Os indianos védicos estavam familiarizados com ternas pitagóricas, isto é, números satisfazendo a relação a2 + b2 = c2. É interessante observar que desde antes de 1943 já se tinha conhecimento de que os Sulbasutras continham ternas pitagóricas. Além disso, algumas das ternas lá encontradas, por exemplo a (8, 15, 17), satisfazem a propriedade básica das ternas pitagóricas, mas não estão entre aquelas relacionadas aos pitagóricos – essas últimas têm a propriedade de que, após todos os fatores comuns terem sido removidos, a diferença entre os dois maiores números é igual a 1 ([7]).

Devido ao uso frequente do teorema de Pitágoras, encontramos nos Sulbasutras muitos exemplos de ternas pitagóricas ([6]):

  • no Apastamba Sulbasutra encontramos as ternas pitagóricas (15, 36, 39) e (3, 4, 5), (5, 12, 13), (12, 15, 37);
  • no Baudahayana Sulbasutra a terna (7, 24, 25);
  • no Mãnava Sulbasutra, (72, 96, 120), (40, 96, 104).

Além de ternas formadas por números inteiros, eles também utilizavam algumas que continham números fracionários, como, por exemplo,

encontradas no Mãnava Sulbasutra.

Ternas de números irracionais como

também eram utilizadas para construir triângulos retângulos. Esses números provavelmente surgiram das exigências rituais necessárias à construção de altares, cujas áreas eram múltiplos inteiros ou frações de outros altares com a mesma forma. Por exemplo, chegava-se às dimensões de um altar soutramani (altar com uma base triangular de lados partindo de um triângulo com dimensões 5, 12 e 13, sendo a unidade de medida a purusha (quase 2,5 m, ou a altura de um homem com seus braços esticados para cima).

Existem boas razões para se acreditar que os autores dos Sulbasutras estavam familiarizados com mais de um método que permitisse gerar ternas pitagóricas ([2]).

As ternas (2n2 + 2n, 2n + 1, 2n2 + 2n + 1) fornecem triângulos cuja hipotenusa excede o lado menor em uma unidade.

O método encontrado no Sulbasutra de Katyayana para construir um quadrado de área igual à soma das áreas de qualquer número de quadrados de lados iguais a a fornece a relação

que permite gerar ternas pitagóricas do tipo

e ternas pitagóricas de números racionais

para m um numero inteiro e a um número racional. Isso permite construir triângulos retângulos ou retângulos cuja diferença entre o lado maior e a diagonal é igual a a.


figura 6

Quando a = 1, temos as ternas e obtemos as ternas de números racionais tais que a diferença entre a hipotenusa e o lado maior é 1.

Para a = 2, temos e (m2 −1, 2m,m2 +1), permitindo construir um retângulo
no qual a diferença entre o lado maior e a diagonal é 2.

AS APLICAÇÕES

Encontramos nos Sulbasutras 15 construções que utilizam o teorema de Pitágoras. Entre elas, a duplicação de quadrados, construção de quadrados de área igual à soma de dois quadrados dados e construção de ângulos retos.

Um método para construir ângulos retos que usa o teorema de Pitágoras é apresentado da seguinte forma:

  • As extremidades de uma corda de oito unidades de comprimento são atadas a duas estacas fincadas na terra nos pontos A e B separadas por quatro unidades (figura 7). Outra marca é feita em um quarto ponto, a 3 unidades de uma das extremidades da corda, digamos o ponto B. A corda é levantada nesse ponto e esticada até que a marca toque a terra em C, depois do que o ângulo reto ABC é produzido.


figura 7

O fato de o ângulo ABC ser reto em B é uma consequência imediata da recíproca do teorema de Pitágoras:

Se em um triângulo ABC temos AB2 + BC2 = AC2, então o triângulo ABC é retângulo em B.

O sutra seguinte àquele que enuncia o teorema de Pitágoras no Baudayana Sulbasutra pede para:

Construir um retângulo com o lado do quadrado como largura e a diagonal como comprimento.

A diagonal desse retângulo é o lado de um quadrado cuja área é três vezes a área do quadrado. Esse resultado é uma consequência imediata do teorema de Pitágoras e nos faz lembrar a construção geométrica, que encontramos em alguns textos de geometria, da com n inteiro positivo.

Um outro problema de construção, encontrado no Apastamba Sulbasutra, pede para:

Construir um quadrado igual à diferença de dois quadrados dados.

O método de construção pode ser descrito como segue ([5]), ilustrado na figura 8.

  • Sejam ABCD e PQRS os quadrados de lados a e b com a > b.
  • Marcar um ponto K sobre AB tal que AK = b.
  • Construir, por K, uma perpendicular a AB.
  • Essa perpendicular intercepta o lado DC em L.
  • O círculo de centro K e raio KL intercepta AD em M.
  • O quadrado de lado AM tem área igual à diferença entre as áreas dos quadrados de lados a e b.


figura 8

De fato, pelo teorema de Pitágoras,

AM2 + AK2= KM2= KL2

AM2 = KL2AK2 = a2b2..

Mas AM2é a área do quadrado de lado AM e, sendo assim, o quadrado de lado AM tem área igual à diferença das áreas dos quadrados de lados a e b.

De acordo com Amma ([1]), a explicação é dada pelo próprio Apastamba no próximo sutra.

O teorema de Pitágoras também é aplicado na construção de:

  • um quadrado igual em área a dois quadrados desiguais;
  • um quadrado de área igual a de um retângulo dado;
  • um quadrado cuja área é n vezes a área de um quadrado dado;
  • soma e diferença de dois quadrados;
  • um altar smasana que é um trapézio isósceles.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com Jones, pesquisas em ciência cognitiva tornam claro que pessoas com conhecimentos específicos têm modos mais elaborados de armazenar e receber informações; que a armazenagem e recuperação de informações envolvem fazer mais e mais conexões entre os conhecimentos novos, a informação e os conhecimentos já adquiridos, e que a escolha de caminhos que levam à aquisição de um novo conhecimento depende de experiências anteriores.

Acredito que colocar professores e alunos em contato com diferentes ambientes sociais, em que um determinado conhecimento geométrico foi utilizado e com diferentes formas de aplicá-lo, seria a oportunidade de atrair sua atenção para o paralelo entre história e o processo ensino-aprendizagem descrito por Jones ([3]).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] AMMA, S. T. A. Geometry in Ancient and Medieval India.1a ed. Índia: Motilal Banarsidass, 1979.

[2] FRIBERG, J. Methods and Traditions of Babylonian Mathematics. Historia Mathematica, v. 8, p. 277-318, 1981.

[3] JONES, C. V. Finding Order in History Learning: Defining The History and Pedagogy of Mathematics. In: Meeting of the International Study Group on Relation Between History and Pedagogy of Mathematics, 1994, Blumenau. Proceedings, 1994. p. 35-54.

[4] JOSEPH, G. G. The Crest of the Peacock. 2a ed. USA: Princeton University Press, 2000.

[5] KATZ, V. J. A History of Mathematics. An Introduction. 2a ed. USA: Addison-Wesley Educational Publishers Inc., 1998.

[6] O’CONNOR, J. J.; ROBERTSON, E. F. Pythagoras’s Theorem in Babylonian Mathematics. Disponível em: <www-history.mcs.st-and.ac.uk/HistTopics/Babylonian_Pythagoras.html>

[7] SEIDENBERG, A. The Ritual Origin of Geometry Archieve for History of Exact Sciences, p. 488-527, 1963.

[8] TIAN-SE, A. Chinese Interest in Right-angled Triangles. Historia Mathematica, n. 5, p. 1978, 254-266, 1978.