Daniel Cordeiro de Morais Filho
PET – Matemática – UFCG – FNDE

 

O SULTÃO MALBA TAHAN E SEUS FILHOS

Nas terras das Mil e uma noites, o sultão Ali Yezid Ibn-Abul Izz-Eddin Ibn-Salin Hank Malba Tahan já estava em idade avançada. Tinha dois filhos prediletos que poderiam ser seus sucessores no sultanato, os príncipes Beremiz e Samir. Ao longo de sua vida, o sultão patrocinou as artes e as ciências, principalmente a Matemática, da qual foi dedicado estudioso. Para dar continuidade a seus feitos, o escolhido para assumir seu lugar precisaria mostrar inteligência e sabedoria. Além dessas qualidades, para preservar a essência da família, o sultão queria comprovar que os irmãos sabiam dividir as coisas igualmente entre si, compartilhar ideias, que governariam unidos, superando juntos todos os problemas. Para ter certeza da capacidade daquele a ser escolhido, dentre as várias provas que testariam suas habilidades, Malba Tahan chamou seus dois filhos e lhes deu a seguinte tarefa:

Cada um de vocês tome um quadrado, ambos iguais, feitos em folha de ouro, com lados de medidas inteiras. Vocês devem, usando uma tesoura, recortá-lo e, ao juntar os pedaços "pelos bordos" (sem superposição), precisam formar dois outros quadrados de áreas iguais, com a exigência dos quadrados menores terem também lados de medidas inteiras.

Como resolver o problema proposto pelo sultão? É importante observar o fato de o problema, até certo ponto, resumir-se a um problema de geometria plana: como decompor um quadrado de medidas inteiras em dois outros de áreas iguais, de modo que os quadrados menores tenham medidas também inteiras?


figura 1

 

A SOLUÇÃO DOS FILHOS DO SULTÃO

Dois meses depois, os príncipes expuseram a solução do problema ao pai:

— Prezado pai, após muito pensarmos, só conseguimos dar uma resposta à sua pergunta unindo nossos pensamentos. Para resolver o problema, foi necessário juntar nossos esforços.

— Muito bem, filhos! Continuem — disse-lhes o sultão Malba Tahan entusiasmado.

Beremiz começou:

— Suponha que eu pudesse dividir meu quadrado Q em dois outros de lados inteiros cuja soma das áreas fosse igual à área do quadrado Q (figura 1). Agora, Samir, use sua tesoura e recorte no seu quadrado esse suposto quadrado menor R. Coloque-o sobre o meu quadrado Q, com os vértices superiores esquerdos, lados superiores e lados esquerdos coincidindo. Faça o mesmo, agora, colocando o quadrado Q no quadrado R com os vértices inferiores direitos coincidindo. Agora é com você, Beremiz!

Empolgado, continuou Beremiz sob o olhar atento do sultão:

— Veja, meu pai, o desenho que formamos (figura 2):

— O quadrado C existe, pois o lado do quadrado R deve ser maior do que a metade do lado do quadrado Q. Caso contrário, teríamos 2R < Q/2 e o problema não teria solução. (Estamos representando um quadrado e sua área pela mesma letra Q, R, C, etc.).


figura 2

Nas figuras 1 e 2, todas as medidas são inteiras. E mais, temos a seguinte decomposição das áreas:

Q = 2R = A + C + 2B +A = R + 2B + R – C

ou seja, C = 2B. Observem mais atentamente o que foi feito: encontramos três outros quadrados, C, B e B com lados inteiros, de sorte que o dobro da área do quadrado menor é igual à área do quadrado maior (C = 2B).

Além disso, o mais interessante é o fato de o quadrado C ter medida menor do que a do quadrado R. Se repetirmos o mesmo processo para os quadrados C e B, encontraremos dois outros quadrados T e U, também com medidas dos lados inteiros, e com T = 2U, de sorte que o quadrado T tem medida menor do que a do C (figura 3).


figura 3

O procedimento pode continuar a se repetir, dessa vez, para os quadrados T e U, e sucessivamente! Não para! Logo existe uma sequência de quadrados de lados inteiros, cujas medidas dos lados de um deles, a partir do segundo, é menor que as medidas dos lados do anterior, resultando em:

Q > R > C > T >...

E juntos os irmãos concluíram:

— Mas isso é impossível, meu pai! Não pode existir uma sequência decrescente e infinita de números inteiros positivos! Portanto, é impossível realizar a tarefa que nos pediu! Descobrimos ainda que era isso que o senhor queria, que resolvêssemos juntos o problema!

O sultão, emocionado, concluiu:

— Parabéns, filhos. Resolveram o problema de forma maravilhosa! Essa demonstração é tão bela quanto uma pintura, tão tocante quanto um poema, tão suave quanto uma bela música. Além disso, perceberam que um de vocês sem o outro não conseguiria resolver o problema. Desejo que suas vidas sejam como essa solução e que permaneçam unidas para conseguirem ultrapassar todos os obstáculos que um sultão pode enfrentar em seu reinado.

Emocionado, abraçou os filhos e, sob consenso familiar, escolheu o mais velho para ser o próximo sultão.

O final feliz dessa história não deve ser aqui. Há mais coisas nela que a tornam ainda mais interessante: há mais Matemática por trás da solução dos príncipes. Na verdade, dentro da nossa história existe uma demonstração geométrica da irracionalidade de √2 , feita em 1950, bastante bonita e não usual, que pode ser apresentada para alunos do ensino médio.

Geometricamente, os príncipes provaram a impossibilidade de decompor um quadrado de lados
inteiros em dois outros também de lados inteiros e áreas iguais. Interpretando algebricamente esse resultado geométrico, considerando y2 a área do quadrado maior e x2 a área do quadrado menor, a solução dos príncipes comprova que a equação y2 = 2x2 não tem soluções inteiras não nulas.

Isso tem tudo a ver com a √2 , pois, caso √2 fosse um número racional, poderíamos escrever , com p e q inteiros positivos. Elevando ambos os lados da igualdade ao quadrado, obtemos p2 = 2q2; logo, os números p e q seriam solução da equação y2 = 2x2 e acabamos de ver que isso não pode ocorrer.

UMA HOMENAGEM E UMA LIÇÃO

Percebe-se, pela história e linguagem deste artigo, uma homenagem a Malba Tahan, cujo nome
completo é o do sultão no começo do artigo, mas que, na realidade, é o pseudônimo do conhecido professor Júlio Cesar de Mello e Souza (1895-1974), autor do best seller "O homem que calculava", livro em que descreve as aventuras matemáticas de Samir Beremiz. Aqui, esses nomes foram usados para os filhos do sultão. O livro tem entusiasmado e fascinado
gerações e esperamos que nossos professores, nos dias de hoje, continuem a divulgá-lo entre seus alunos. Nosso objetivo é incentivá-los a fazer isso.

A solução do problema do sultão apresenta uma demonstração nova para um resultado muito antigo, já que uma demonstração de 1950 pode ser considerada recente, considerando-se que a irracionalidade de √2 já era conhecida na Grécia antiga. Isso nos deixa uma profunda lição: não interessa a idade dos resultados matemáticos, o importante são as novas ideias e as novas formas de encarar certos fatos, mesmo já conhecidos há anos.

Observação: A resolução apresentada usa um método chamado Descida ao infinito, que pode ser encontrado, por exemplo, na RPM 32, no artigo O princípio da descida infinita de Fermat.

 

REFERÊNCIAS

1. http://www.cs.toronto.edu/~mackay/conway.pdf

2. http://www.cut-the-knot.org/pythagoras/ index.shtml#Loomis

3. http://www.malbatahan.com.br