Cláudio Buffara
Rio de Janeiro, RJ

INTRODUÇÃO

Há algumas semanas decidi, pela primeira vez na vida, examinar com cuidado uma prova de Matemática do ENEM. Baixei então, do site do Inep, a prova aplicada em 2013. Numa primeira leitura, constatei que o tema “proporcionalidade” foi o que ocorreu com maior frequência, em 18 das 45 questões, tanto diretamente quanto sob a forma de frações ou porcentagens ou escalas de mapas ou semelhança de figuras geométricas, e que 14 questões dependiam da interpretação de gráficos ou tabelas. Observo que esses dois tópicos são amplamente abordados nos programas de Matemática do ensino fundamental (1° ao 9° ano).

A HEGEMONIA DA CONTEXTUALIZAÇÃO

Essa primeira leitura, na diagonal, como se diz, confirmou o que eu já havia lido e ouvido sobre o ENEM: todas as questões eram contextualizadas, ou seja, pretendiam apresentar aplicações da Matemática ao “mundo real”. De fato, questões de cunho abstrato foram completamente banidas do exame.

Um artigo publicado nesta Revista, [1], já tratou da dificuldade de elaborar boas questões contextualizadas, dificuldade essa que tem produzido algumas falhas no exame. Isso porque, a fim de contornar a complexidade dos problemas reais, a banca do ENEM às vezes produz enunciados confusos, recorre a simplificações excessivas e descreve situações irreais.

Vejo, no entanto, um problema mais sério nessa hegemonia da contextualização. A ausência de
questões abstratas numa prova tão abrangente e decisiva como o ENEM fatalmente impactará os currículos de Matemática das escolas. É altamente provável que esses passem a enfatizar cada vez mais as aplicações da Matemática em detrimento da apresentação de tópicos abstratos, que não “caem” no ENEM.

O problema é que, como mostram pesquisas recentes [2], quem adquire uma dada habilidade
matemática de forma abstrata adquire também maior facilidade para transferir essa habilidade,
aplicando-a em situações diversas, do que aqueles que adquirem a habilidade no contexto de um problema específico. Naturalmente, o objetivo de uma educação matemática é formar pessoas capazes de adaptar e aplicar seus conhecimentos matemáticos a todo e qualquer tipo de contexto, e não apenas a umas poucas situações que tenham sido vistas na escola.

EXCESSO DE QUESTÕES FÁCEIS

Lendo a prova, também fiquei com a impressão de que quase todas as questões eram fáceis. Talvez até demais. De fato, algumas podiam mesmo ser resolvidas apenas com Matemática de “primário”, ou seja, aquela que é aprendida até o 5° ou 6° ano da escola, e com uma pequena dose de bom-senso.

Tomemos, por exemplo, a questão 139 da prova amarela 3 (neste artigo, a numeração das questões será sempre a da prova amarela do ENEM 2013):

A cidade de Guarulhos (SP) tem o 8o PIB municipal do Brasil, além do maior aeroporto da América do Sul. Em proporção, possui a economia que mais cresce em indústrias, conforme mostra o gráfico.

Analisando os dados percentuais do gráfico, qual a diferença entre o maior e o menor centro em crescimento no polo das indústrias?

a. 75,28 b. 64,09 c. 56,95 d. 45,76 e. 30,07

Apesar da redação sofrível da questão (que deveria ser “qual a diferença entre o maior e o menor percentual de crescimento?”), não é difícil deduzir que a resposta correta, 56,95 (alternativa C), é obtida subtraindo-se o menor percentual indicado no gráfico do maior.

Ou então a questão a seguir.

Em um certo teatro, as poltronas são divididas em setores. A figura apresenta a vista do setor 3
desse teatro, no qual as cadeiras escuras estão reservadas e as claras não foram vendidas.

A razão que representa a quantidade de cadeiras reservadas do setor 3 em relação ao total de cadeiras desse mesmo setor é:

Acho que um aluno de 6° ano chegaria sem grandes problemas à resposta correta: 17/70 (alternativa A). Bastaria que soubesse contar.

Algumas questões eram do tipo “eu olho e vejo”. Vejamos a de número 168.

Nos últimos anos, a televisão tem passado por uma verdadeira revolução, em termos de qualidade de imagem, som e interatividade com o telespectador. Essa transformação se deve à conversão do sinal analógico para o sinal digital. Entretanto, muitas cidades ainda não contam com essa nova tecnologia. Buscando levar esses benefícios a três cidades, uma emissora de televisão pretende construir uma nova torre de transmissão, que envie sinal às antenas A, B e C, já existentes nessas cidades. As localizações das antenas estão representadas no plano cartesiano:

A torre deve estar situada em um local equidistante das três antenas.

O local adequado para a construção dessa torre corresponde ao ponto de coordenadas

a. (65 ; 35) b. (53 ; 30) c. (45 ; 35)
d. (50 ; 20) e. (50 ; 30).

Ocorre que a inclusão, no enunciado, do gráfico no qual os três pontos estão assinalados, torna a resposta visualmente evidente:

o ponto (50, 30) (alternativa E).

Enfim, após ter resolvido e analisado todas as questões, concluí que seria perfeitamente possível ir bem nessa prova sem ter cursado o ensino médio. Mais precisamente, fiquei convencido de que um aluno que estivesse a ponto de concluir o 9o ano do ensino fundamental (a prova do ENEM costuma ocorrer no fim de outubro / início de novembro) e que, além disso, tivesse estudado com algum cuidado as provas dos anos anteriores, a fim de se acostumar com o formato das questões e de revisar os tópicos mais frequentemente cobrados, teria totais condições de acertar, no mínimo, dois terços das questões dessa prova.

Para chegar a essa conclusão, procurei determinar quais questões necessitavam, para sua resolução, apenas de conhecimentos matemáticos adquiridos no ensino fundamental. Baseei minha análise nos parâmetros curriculares nacionais de Matemática e também no conteúdo de uma coleção de livros didáticos destinados a alunos do 6° ao 9° ano [3]. Concluí que 34 das 45 questões se enquadravam nessa categoria.

As outras onze questões realmente envolviam tópicos que somente são tratados detalhadamente no ensino médio: combinatória e probabilidade, funções quadrática, exponencial e logarítmica, geometria analítica, geometria espacial, trigonometria e progressões.

Considero que cinco dessas onze questões seriam de fato inacessíveis a um aluno normal do 9o ano, uma vez que envolviam a função exponencial (decaimento radioativo)(Questão 162), a fórmula do volume do cilindro (Questão 145), combinações (probabilidade de se ganhar na megassena)(Questão 176), raciocínios combinatórios mais sofisticados (número de maneiras distintas de se montar um colar com quatro pedras de três cores distintas) (Questão 161), e o conceito de independência em probabilidade (Questão 141).

Por outro lado, as seis questões restantes poderiam, a meu ver, ser resolvidas por um aluno em vias de concluir o ensino fundamental. Vejamos duas delas (as outras quatro são as de números 138, 142, 156 e 175) juntamente com as respectivas soluções que poderiam ser encontradas por um tal aluno: as questões 136 e 166.

A parte interior de uma taça foi gerada pela rotação de uma parábola em torno de um eixo z, conforme mostra a figura.

A função real que expressa a parábola, no plano cartesiano da figura, é dada pela lei onde C é a medida da altura do líquido contido na taça, em centímetros. Sabe-se que o ponto V, na figura, representa o vértice da parábola, localizado sobre o eixo x.

Nessas condições, a altura do líquido contido na taça, em centímetros,é

a. 1 b. 2 c. 4 d. 5 e. 6

A única coisa que um aluno que nunca viu função quadrática poderia fazer é ir testando valores de x:

x = 0 →f(x) = C
x = 1 → f(x) = – 9/2 + C
x = 2 → f(x) = – 6 + C
x = 3 → f(x) = – 9/2 + C
x = 4 → f(x) = C

Nesse ponto, o aluno poderia observar que a figura é simétrica em relação ao eixo z (de rotação), que os valores da função são simétricos em relação a x = 2, e que f(2) parece ser o valor mínimo de f(x).

A partir dessas observações, ele poderia inferir que o ponto V tem abscissa x = 2 (é claro que esse argumento não é rigoroso, mas o objetivo, aqui, é resolver a questão e não dar uma demonstração formal de uma propriedade da função quadrática).

Finalmente, como a ordenada de V é y = 0 ( já que V está sobre o eixo x), deve ser – 6 + C = 0 ou
C = 6. A alternativa correta é a E.

O ciclo de atividade magnética do Sol tem um período de 11 anos. O início do primeiro ciclo registrado se deu no começo de 1755 e se estendeu até o final de 1765. Desde então, todos os ciclos de atividade magnética do Sol têm sido registrados.

Disponível em: http://g1.globo.com. Acesso em: 27 fev. 2013.

No ano de 2101, o Sol estará no ciclo de atividade magnética de número
a. 32 b. 34 c. 33 d. 35 e. 31

Não é necessário que o aluno conheça a teoria formal das progressões aritméticas para resolver esta questão. Basta que ele extrapole o padrão de regularidade explicitado no enunciado.

O 1° ciclo começou no início de 1755 e durou 11 anos. Ou seja, terminou no final de 1765.
O 2° ciclo começou no início de 1755 + 11 = 1766.
O 3° ciclo começou no início de 1766 + 11 = 1777 = 1755 + 2 × 11.
O 4° ciclo começou no início de 1777 + 11 = 1788 = 1755 + 3 × 11.

E assim por diante...

Seguindo esse padrão, segundo o qual o n-ésimo ciclo começa no início do ano
1755 + (n –1) × 11, e com base nas alternativas fornecidas, o aluno poderia concluir que:
o 31o ciclo começará no início de
1755 + 30 × 11 = 1755 + 330 = 2085;
o 32° ciclo começará no início de 2085 + 11 = 2096;
o 33° ciclo começará no início de 2096 + 11 = 2107.

Como 2096 < 2101 < 2107, a conclusão é que, em 2101, o Sol estará no 32° ciclo. Alternativa A.

Em suma, além das 34 questões cujas soluções poderiam ser obtidas exclusivamente através do uso de conceitos e técnicas aprendidos no ensino fundamental, não me parece irreal supor que um aluno do 9o ano, adequadamente preparado (mediante o estudo das provas aplicadas em edições anteriores do ENEM), tivesse plenas condições de resolver seis das onze questões restantes, as quais envolviam tópicos abordados apenas no ensino médio. Ou seja, 40 das 45 questões da prova de Matemática do Exame Nacional do Ensino Médio de 2013 eram resolvíveis por um aluno em vias de concluir o ensino fundamental!

Ocorre que o ENEM é usado por um número crescente de universidades, em particular as federais, como exame de seleção de candidatos. Isso significa que diversas universidades importantes usam, como critério de seleção, uma prova excessivamente fraca, a qual permite o ingresso, nessas universidades, de alunos insuficientemente preparados. Pois é evidente que um aluno do 9o ano (salvo raríssimas exceções) não tem condições de frequentar, por exemplo, um curso de engenharia, em que Matemática é crucial. Mas esse aluno, se preparado da forma óbvia (tendo estudado provas de anos anteriores), tem condições de obter, pelo menos na prova de Matemática do ENEM, pontuação suficiente para ingressar numa universidade federal de primeira linha.

COMENTÁRIOS FINAIS

A se prosseguir a insistência, por parte da banca do ENEM, em questões contextualizadas e de baixo nível de dificuldade, e dada a importância cada vez maior desse exame, não será surpresa encontrar, num futuro não muito distante, cursos de Matemática nas escolas de ensino médio reduzidos a cursinhos preparatórios para o ENEM. Durante três anos, esses cursinhos treinarão seus alunos na resolução de questões contextualizadas de Matemática, a maioria das quais no nível do ensino fundamental.

O problema é que, ao adaptarem seus currículos de Matemática às exigências do ENEM, nossas escolas correm o risco de passar a formar alunos que não só estarão habituados a resolver apenas problemas fáceis, em nível de ensino fundamental, como também terão maior dificuldade para aplicar seus conhecimentos matemáticos em contextos inéditos, um requisito básico de vários cursos universitários (e não só na área de exatas) e de quase todos os empregos de alto nível. Esse seria, certamente, um desastroso retrocesso do já combalido ensino de Matemática no Brasil.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] Antonio Luiz Pereira, Severino Toscano Melo. ENEM 2009: vazamentos, erros e
contextualização. RPM 71

[2] Jennifer A. Kaminski, Vladimir M. Sloutsky, Andrew F. Hecler. Do Children Need Concrete Instantiations to Learn an Abstract Concept? Proceedings of The 28th Annual Conference of the Cognitive Science Society (2006) http://csjarchive.cogsci.rpi.edu/proceedings/2006/docs/p411.pdf

[3] Ênio Silveira, Claudio Marques. Matemática: compreensão e prática. 1a edição. São Paulo:
Moderna, 2008. 4 volumes (6° ao 9° ano).