Responsável
Sérgio Roberto Nobre
UNESP - Rio Claro

 

HISTÓRIA & HISTÓRIAS

 

O nome Bhaskara é muito conhecido entre os brasileiros por conta de uma atribuição errônea do seu nome à fórmula de resolução de uma equação do 2o grau (ver RPM 39, p. 54). No entanto, poucos sabem que, na História da Matemática da Índia, houve dois personagens de nome Bhaskara. Bhaskara I, que viveu entre os anos 600 e 680, aproximadamente, e Bhaskara II, que viveu cerca de 500 anos após o primeiro, ou seja, entre 1114 e 1185. E a nenhum dos dois pode-se atribuir a fórmula que dá as raízes de uma equação do 2o grau. Sobre o primeiro há poucas informações, porém o segundo é mais presente na bibliografia histórica, inclusive com documentos que comprovam sua produção matemática. A principal obra do astrônomo e matemático Bhaskara II foi Siddhānta Shiromani, que pode ser traduzido para o português como “A coroa da ciência” ou então “A coroa dos tratados”. Essa obra é composta de quatro livros (partes), sendo o primeiro sobre aritmética e geometria, o segundo sobre álgebra, e os dois últimos sobre assuntos ligados à astronomia. O primeiro livro, o mais conhecido, leva o nome de Lilavati, que, supostamente, era o nome de sua filha. No segundo livro, sobre álgebra, Bhaskara II apresenta um problema que já era conhecido muito antes de seu tempo – o Problema das 100 aves –, que será resolvido neste texto.

O PROBLEMA DAS 100 AVES

O problema apresentado por Bhaskara II, em uma adaptação ao português, é o seguinte:

Cinco pombos custam 3 moedas, sete gralhas custam 5 moedas, nove gansos custam 7 moedas, três pavões custam 9 moedas. Compre 100 aves e gaste 100 moedas.


Há informações de que um problema semelhante já havia sido proposto no século V da era cristã pelo matemático chinês Zhang Qiujian (c. 430-490). No livro Zhang Qiujian suanjing (Manual matemático de Zhang Qiujian) aparece o seguinte problema:

Um galo custa 5 moedas, uma galinha custa 3 moedas, e três pintinhos custam 1 moeda. Compre 100 aves e gaste 100 moedas.

No século IX, no mundo islâmico, o matemático Abu Kamil (c. 850-930) também apresentou esse problema e, no século XIII, em seu famoso livro Liber Abaci, Leonardo Fibonacci de Pisa (1170-1250) apresentou o problema da seguinte forma:

Um homem, com 30 moedas, compra 30 aves de diferentes espécies. Sabe-se que uma perdiz custa 3 moedas, um pombo custa 2 moedas e dois pardais custam 1 moeda. Quantas aves de cada espécie ele comprou?

Nos dois casos acima, os autores dão as soluções após a exibição dos problemas. Para o problema dos galos, galinhas e pintinhos, Zhang Qiujian apresenta três soluções: 4 galos, 18 galinhas e 78 pintinhos; 8 galos, 11 galinhas e 81 pintinhos; 12 galos, 4 galinhas e 84 pintinhos. Fibonacci apresenta uma solução para seu problema: 3 perdizes, 5 pombos e 22 pardais.

Na época em que foram apresentados esses problemas e suas soluções, a álgebra ainda não estava avançada a ponto de eles serem resolvidos a partir de sistemas de equações. Possivelmente, a forma utilizada para chegar aos resultados foi baseada em tentativas e erros. Para o problema das 100 aves, apresentado por Bhaskara II, o processo de tentativas e erros pode ser utilizado e nos oferece de imediato a seguinte solução: São compradas apenas 2 espécies de aves: Compram-se 90 gansos e 10 pavões – 90 gansos custam 70 moedas e 10 pavões custam 30 moedas.

O PROBLEMA DAS 100 AVES
uma resolução algébrica

Embora se tenha a compreensão de que, na época em que Bhaskara II exibiu o problema das 100 aves, ainda não havia um instrumento algébrico definido que o resolvesse, apresentamos uma solução desse problema com a notação algébrica atual e veremos que ele tem, ao todo, 26 soluções!

SOLUÇÃO

Cinco pombos custam 3 moedas, sete gralhas custam 5 moedas, nove gansos custam 7 moedas, três pavões custam 9 moedas. Compre 100 aves e gaste 100 moedas.

Sejam: p a quantidade de pombos, q a quantidade de gralhas, r a quantidade de gansos e s a quantidade de pavões.

p + q + r + s = 100 (1)

Um pombo custa moedas, uma gralha custa moedas, um ganso custa moedas e um pavão custa 3 moedas. Portanto,

 

Multiplicando a equação (2) por 315 (mmc(5,7,9)) e subtraindo do resultado 189 vezes a equação (1), obtém-se:

36q + 56r + 756s = 12600,
ou seja,
9q + 14r + 189s = 3150. (3)


Como as soluções devem ser inteiras e 14, 189 e 3150 são divisíveis por 7, então necessariamente 7|q; como 9, 189 e 3150 são divisíveis por 9, então 9|r. Logo, q = 7x e r = 9y.

Substituindo q e r na equação (3) e simplificando por 63, obtém-se

x + 2y + 3s = 50, mostrando que s ≤ 16.


Agora basta construir uma tabela da seguinte maneira:

Na primeira coluna são colocados os valores de s em ordem decrescente.
Na segunda coluna, a equação x +
2y = 503s com o respectivo valor de s.
Na terceira coluna são colocados os possíveis valores de x, x∈
N.
Completando cada uma das linhas, obtêm-se todas as soluções.

PALAVRAS FINAIS

O objetivo deste texto foi mostrar um problema matemático que passou por diferentes épocas da história. Ele foi resolvido, embora não de forma completa, mesmo sem contar com os instrumentos matemáticos atuais. Os instrumentos foram aprimorados com o decorrer do tempo e soluções completas foram encontradas. Um bom exemplo para os professores de Matemática, que podem apresentar tais problemas aos seus alunos, solicitar que eles tentem resolver por tentativas e erros, para depois lhes apresentar uma resolução algébrica.

 

OBSERVAÇÃO

Na tabela acima, explicitamos apenas os valores das variáveis que fornecem soluções (verifica-se que não há soluções para s < 10, assim como, por exemplo, no caso s = 11, não há soluções para x ímpar, maior do que 5).