Responsável
Sérgio Roberto Nobre
UNESP - Rio Claro

 

HISTÓRIA & HISTÓRIAS

 

LEIBNIZ E NOSSO MUNDO DIGITAL

Gilberto Garbi

É amplamente conhecido o papel desempenhado por Gottfried Wilhelm Leibniz (1646 – 1716) na criação dos cálculos Diferencial e Integral, independentemente do que, alguns anos antes, fizera Isaac Newton (1642 – 1727) nos mesmos campos. Mas pouca gente tem conhecimento de um trabalho escrito por ele em 15 de março de 1679, e que, três séculos mais tarde, demonstrou-se fundamental para o desenvolvimento das tecnologias digitais que hoje dominam o mundo em praticamente todas as áreas.

Leibniz, nascido em Leipzig, Alemanha, foi uma das mais brilhantes inteligências de todos os tempos, um verdadeiro gênio universal, cuja cultura abrangia, além da Matemática, o Direito, a História, a Filosofia, a Política, a Lógica, a Filologia, a Geologia e a Teologia. Entre 1672 e 1676, então um jovem diplomata, Leibniz viveu em Paris onde se tornou amigo de Christiaan Huygens, holandês radicado na Cidade Luz e um dos maiores físico-matemáticos da época. Foi Huygens que o apresentou à Matemática de alto nível, dando-lhe aulas e estimulando seu interesse por ela. Rapidamente Leibniz absorveu os conhecimentos então existentes e logo passou a fazer suas próprias descobertas nos grandes temas da época: o traçado analítico de tangentes, a quadratura de curvas (áreas) e as séries infinitas. Embora seus trabalhos sobre o Cálculo tenham sido publicados em 1684 (Cálculo Diferencial) e 1686 (Cálculo Integral), manuscritos preservados comprovam que ele já compreendera a essência dessas questões no ano de 1676. É oportuno lembrar que o nome Cálculo Diferencial (Calculus Diferentialis) foi criação dele mesmo, enquanto Cálculo Integral (que ele chamara inicialmente de Calculus Summatorius) foi-lhe sugerido por seu amigo Johann Bernoulli (1667 – 1748), grande matemático suíço. Foi ele também que, pela primeira vez, utilizou a palavra “função” com seu significado atual.

Costuma-se dizer que tão importante quanto conseguir encontrar as respostas certas às grande perguntas é saber fazê-las. A mente inquiridora de Leibniz estava sempre à procura delas e certo dia, notando que nosso sistema de numeração posicional utiliza a base 10, com 10 algarismos, mas que outros povos haviam criado sistemas com outras bases (por exemplo, 60 dos sumérios e 20 dos maias), ele perguntou-se qual seria a menor das bases com a qual um sistema posicional pudesse ser construído. A resposta não foi difícil de encontrar: trata-se da base 2, empregando apenas dois algarismos, o zero e o um. Aqui, seu mérito não está na resposta que deu, mas sim na pergunta.

O mérito dessa pergunta pode ser atribuído inteiramente a Leibniz, porque, antes dele, há somente registros de incursões muito restritas no sistema binário: antigos coreanos e chineses escreveram os números de 1 a 10 empregando apenas pontos e traços (como fazemos hoje com zeros e uns) enquanto os egípcios multiplicavam números usando um algoritmo que implicava o conhecimento de que qualquer número pode ser escrito como soma de potências de 2.

Curioso em pesquisar as principais características de tal sistema e descobrir como realizar nele as operações básicas da Aritmética, Leibniz sentou-se e produziu, em Latim, um manuscrito de poucas páginas, denominado De Progressione Dyadica, o qual, para nossa extrema felicidade, encontra-se inteiramente preservado. Sua primeira página está reproduzida na ilustração desta seção e em seu canto superior esquerdo podemos ler claramente “15 Martii 1679”. Apresentaremos a seguir, nesta seção, uma tradução desse texto de Leibniz - Explicação sobre a Aritmética binária.

Algum tempo depois esse trabalho foi publicado em Paris, em francês, mas despertou pouco interesse na comunidade matemática, que o considerou mera curiosidade teórica, sem qualquer aplicação prática. Nos dois séculos seguintes o assunto recebeu atenção bastante limitada, até que, nos anos 1940, os dispositivos eletro-eletrônicos existentes permitiram aos físicos, matemáticos e engenheiros sonhar com o desenvolvimento dos primeiros computadores alimentados por energia elétrica. Ao fazê-lo, constataram eles que a forma mais simples de se “ensinar” aquelas máquinas a realizar cálculos era a utilização do sistema binário criado por Leibniz, o 1 sendo representado pela passagem da corrente elétrica e o zero por sua interrupção. Na mesma época, os engenheiros de telecomunicações viram também que o sistema binário é o mais adequado à codificação, transmissão e decodificação de informações.
Assim nasceu o mundo digital que nos proporciona hoje uma quantidade tão grande e vertiginosa de verdadeiros milagres tecnológicos que nem mais somos capazes de nos surpreender com eles.

Olhando aquelas poucas páginas escritas por Leibniz, somos tentados a retroceder três séculos no tempo e nos imaginar no gabinete do gênio alemão para vê-lo, trabalhando à luz de velas, com uma pena de ganso à mão, ao lado de um tinteiro e reclinado sobre a mesa, a colocar no papel, com palavras frequentemente riscadas e substituídas por outras, uma idéia que um dia iria revolucionar o mundo...

Ao contrário de Newton, que foi alçado à realeza, ficou rico e foi sepultado entre reis na Abadia de Westminster, Leibniz terminou a vida esquecido e abandonado, como empregado da família real dos Brunswick, de quem escreveu a genealogia por muitos anos. Ao morrer, foi sepultado na igreja de São João, em Hanover, pelo camareiro que o atendeu nos últimos anos e que foi a única pessoa presente a seu funeral.

O ARTIGO

EXPLICAÇÃO DA ARITMÉTICA BINÁRIA

Explicação da aritmética binária, que usa somente os caracteres 0 e 1, com algumas observações sobre sua utilidade, e sobre os esclarecimentos que ele fornece sobre as antigas figuras de Fu Xi

GOTTFRIED WILHEIM LEIBNIZ

Tradução: Renate Watanabe

Fonte inicial: Die mathematische schriften von Gottfried Wilheim Leibniz, vol. VII C. I. Gerhardt (ed) pp 223-227. 1703.

O cálculo comum da aritmética é feito com a progressão de dezenas (N.T. sistema decimal). Dez caracteres são usados, a saber: 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, que significam zero, um, e os sucessivos números até 9, 9 inclusive. E então, alcançando dez, começa-se novamente, escrevendo dez como “10”, dez vezes dez, ou cem, como “100”, dez vezes cem, ou mil, como “1000” e assim por diante.

Mas em vez de uma progressão de dezenas, durante muitos anos eu usei a mais simples das progressões, a progressão de dois (N.T. sistema binário), tendo percebido que ela é útil para o aperfeiçoamento da ciência dos números. Assim eu não uso outro caractere senão 0 e 1 e, chegando ao dois, começo novamente. Por isso dois é aqui representado por “10”, e dois vezes dois, ou quatro, por “100”, dois vezes quatro, ou oito, por “1000”, dois vezes oito, ou dezesseis, por “10000”, e assim por diante. Aqui está a Tábua dos Números (figura na coluna à esquerda) que pode ser estendida até onde se quiser.

Aqui, um simples olhar torna evidente o porque de uma propriedade célebre da progressão geométrica de números inteiros, de razão dois, que afirma que se tivermos apenas um desses números para cada grau, podemos compor a partir deles todos os outros números inteiros menores do que o dobro daquele de maior grau.
Porque aqui é como se dissesse, por exemplo, que 111, ou 7, é a soma de quatro, dois e um e que 1101, ou 13, é a soma de oito, quatro e um. Essa propriedade permite a analistas pesar toda sorte de massas usando poucos pesos e poderia servir na cunhagem para obter diversos valores com poucas moedas.

Expressar números dessa maneira nos permite efetuar muito facilmente diversas operações.

 

E todas essas operações são tão fáceis que nunca haveria necessidade de se adivinhar ou testar algo como é preciso fazer na divisão usual. Não seria mais necessário decorar o que quer que seja, como tem sido feito no cálculo usual, em que é preciso saber, por exemplo, que 6 e 7 juntos totalizam 13 e que 5 multiplicado por 3 dá 15, de acordo com a Tábua do um vezes um é um, chamada Pitagórica(1). Mas aqui, tudo isso é encontrado e provado desde o início, como está claro nos exemplos precedentes.

No entanto, de maneira alguma, estou recomendando esse modo de contagem para substituir a prática usual da contagem por dezenas. Porque, além do fato de estarmos acostumados com essa contagem, não há necessidade de aprender o que já sabemos de cor. A contagem por dezenas é mais curta e os números não são tão compridos. E se estivéssemos acostumados a proceder com (N.T. potências de) doze ou dezesseis a vantagem seria maior ainda. Mas fazendo cálculos usando (N.T. potências de) dois, isto é, usando 0 e 1, compensando o comprimento, está a maneira mais fundamental de fazer cálculo em ciência e novas descobertas aparecem que se mostram úteis mesmo para a prática de números e especialmente para geometria. A razão disso é que os números, reduzidos aos princípios mais simples como 0 e 1, fazem aparecer em todo lugar uma ordem maravilhosa. Por exemplo, na própria Tábua dos Números, está claro em cada coluna que ela é regida por ciclos que sempre se repetem. Na primeira coluna é o 01, na segunda, 0011, na terceira, 00001111, na quarta, 0000000011111111, e assim por diante. Pequenos zeros foram colocados na tábua para preencher os vazios no início da coluna e dar maior destaque a esses ciclos. Também foram desenhadas linhas dentro da tábua mostrando que o que está contido entre essas linhas sempre ocorre novamente abaixo delas. E até acontece que números quadrados, números cúbicos e de outras potências, bem como números triangulares, números piramidais e outros números figurados, têm ciclos semelhantes, de modo que suas tábuas podem ser construídas imediatamente sem qualquer cálculo. E essa tarefa salientada no início, que em seguida dá meios para poupar cálculos e proceder mecanicamente ao infinito, é imensamente vantajosa.

Surpreendente nesse cálculo é a descoberta que essa aritmética com 0 e 1 contém o mistério das linhas de um antigo rei e filósofo chamado Fu Xi, que se crê ter vivido há mais de 4000 anos e que os chineses consideram ser o fundador do seu império e das suas ciências.(2) São atribuídas a ele várias figuras lineares, todas relacionadas com essa aritmética, mas é suficiente apresentar aqui a Figura dos Oito Cova (N.T. trigramas), como é chamada, tida como fundamental e juntar a eles a explicação que é óbvia, desde que se observe inicialmente que uma linha cheia ___ significa unidade, ou 1 e, a seguir, que uma linha quebrada _ _ significa zero, ou 0.

 

Os chineses perderam o significado do Cova ou Lineações de Fu Xi talvez há mais de mil anos e escreveram comentários nos quais procuravam não sei que profundos significados, de modo que a verdadeira explicação agora vem dos europeus. Eis como: Há pouco mais de dois anos enviei para o Reverendo Padre Bouvet(3), famoso jesuíta francês que vive em Pequim, meu método de contagem usando 0 e 1, e nada mais foi necessário para fazê-lo reconhecer que essa era a chave para as figuras de Fu Xi. Escrevendo para mim em 14 de novembro de 1701, ele me enviou, desse príncipe filósofo, uma figura grande que vai até 64, e não deixa a menor dúvida sobre a verdade da nossa interpretação. Assim, pode ser dito que esse Padre decifrou o enigma de Fu Xi, com ajuda daquilo que eu comuniquei a ele. E como essas figuras são talvez o monumento mais antigo da ciência que existe no mundo, a restituição do seu significado, após um tão grande intervalo de tempo, vai parecer ainda mais curiosa.

A concordância das figuras de Fu Xi com a minha Tábua de Números fica mais óbvia quando zeros iniciais são colocados na Tábua; eles parecem supérfluos, mas são úteis para mostrar melhor os ciclos da coluna, exatamente como eu os coloquei com pequenos anéis para distingui-los dos zeros que são necessários. E essa concordância faz com que eu tenha uma alta opinião da profundidade das meditações de Fu Xi, pois o que agora parece fácil para nós não era de jeito nenhum fácil naqueles idos tempos. A aritmética binária ou diádica é realmente muito fácil hoje em dia, exigindo pouco raciocínio, pois ela recebe forte apoio do nosso modo de fazer contagem, parecendo que deste foi apenas removido o excesso. Mas essa aritmética comum, com dezenas, não parece ser muito antiga; pelo menos os Gregos e os Romanos a desconheciam, ficando privados de suas vantagens. Aparentemente a Europa deve sua introdução a Gerbert, tornado Papa com o nome de Sylvester II, que a obteve dos Mouros da Espanha(4).

Como se crê na China que Fu Xi é também o autor dos caracteres chineses, embora eles tenham sido substancialmente alterados em tempos subsequentes, o seu ensaio sobre aritmética nos leva a concluir que algo importante a respeito de números e ideias possa ser encontrado nesses caracteres se fosse possível descobrir os fundamentos da escrita chinesa, ainda mais porque se acredita na China que Fu Xi tenha levado em conta os números ao estabelecer os caracteres. Reverendo Padre Bouvest está fortemente inclinado a levar adiante esse ponto e é muito capaz de suceder de várias maneiras. No entanto, eu não sei se houve uma vantagem nessa escrita chinesa semelhante àquela que deve estar necessariamente incluída na Característica(5) que eu projeto, isto é, que todo raciocínio derivado de noções poderá ser derivado dos caracteres dessas noções por meio de cálculo, o que seria um dos meios mais importantes de assistência ao espírito humano.

 

NOTAS

1 Leibniz refere-se aqui a tabuada.

2 Uma figura mitológica, que supostamente viveu no 3º milênio A.C. (N.T. Fu Xi (Fuxi), Fushi, ou Fu Hsi (Fu-hsi) – Wikipedia, 03/2014).

3 Joachim Bouvet (1656-1730), um missionário Jesuíta francês que passou a maior parte de sua vida adulta na China. Ele e Leibniz se corresponderam entre 1697 e 1707.

4 No seu “Discurso sobre a teologia natural dos chineses” (1716), Leibniz repetiu sua alegação que Gerbert (i.e. Gerbert d´Aurillac), que foi papa de 999 a 1003, introduziu o sistema decimal na Europa Cristã. A alegação de Leibnitz não é correta; embora acredite-se tradicionalmente que Gerbert introduziu os numerais arábicos na Europa Cristã, ele não introduziu o sistema decimal.

5 (N.T. Característica Universal é uma linguagem formal e universal, imaginada por Leibniz, capaz de expressar conceitos matemáticos, científicos e metafísicos. Wikipedia, 03/2014)