Daniel Cordeiro de Morais Filho
UFCG
André Felipe Araujo Ramalho
PET - Matemática - UFCG

INTRODUÇÃO

Bons problemas matemáticos são fortes aliados de um professor. Um bom problema é fácil de entender, é motivador, instigante, todos conseguem dar uma opinião sobre ele, tem uma resposta não imediata e inesperada, e pode ser resolvido de forma cativante, usando-se assuntos que os alunos estão estudando. Quando possível, o uso de recursos computacionais para visualizar a resposta de um problema desse tipo é um atrativo adicional. No entanto, bons problemas nem sempre são tão fáceis de serem encontrados!

Nosso objetivo é apresentar e resolver dois problemas que achamos ter as qualidades anteriores, além de poderem ser usados em sala de aula. Um deles apareceu discretamente na RPM 81; ficou, entretanto, “meio escondido” na seção Problemas, pois lá não era objetivo explorar toda matemática envolvida nem a utilidade que o problema poderia ter em sala de aula. Além disso, mostraremos que os dois problemas a serem apresentados, aparentemente bem distintos, se relacionam. Faremos isso, acompanhados por animações produzidas no Geogebra e disponibilizadas para os leitores.

Para resolver os problemas, optamos por um método factível de ser exposto para turmas do ensino fundamental e médio. Nesse sentido, vamos usar alguns teoremas da geometria elementar que, muitas vezes, são apresentados em sala de aula, mas ficam carentes de aplicações interessantes. Contamos que esses problemas possam ajudar a suprir essa carência.

 

OS PROBLEMAS

1. PROBLEMA DO GATINHO

Uma escada está encostada em uma parede perpendicular ao solo. Uma das pontas da escada está encostada na parede, enquanto a outra está no chão. Um gatinho sobe a escada e para exatamente no meio dela. A escada escorrega de repente com o gatinho paralisado onde estava. Qual a trajetória que o gatinho descreve até a escada cair ao chão?


figura 1

 

2. PROBLEMA DAS DUAS CIRCUNFERÊNCIAS

Consideremos uma circunferência  Cr  de raio  r  e outra  C2r  com  raio medindo  2r,  o dobro do raio da outra. A de menor raio está no interior da maior e a tangencia em um ponto  P.  A circunferência  Cr  gira (sem deslizar) sobre  C2r  e arrasta consigo o ponto  P.  Que curva o ponto  P   descreve?


 figura 2

Na sala de aula, o professor pode distribuir para os alunos desenhos das figuras 1 e 2  e deixar que eles procurem respostas aos dois problemas. Muitos alunos acharão surpreendente a resposta correta. Acreditamos que até mesmo algumas pessoas com considerável experiência em Matemática se surpreenderão com as respostas.

 

Solução do problema do gatinho

A resposta é: um arco de circunferência.

A solução do problema se resume em usar diretamente um teorema bastante conhecido da Geometria Elementar: as diagonais de um retângulo são iguais e se intersectam em seus pontos médios.

Para determinar a trajetória do gatinho, vamos observar a escada em dois momentos, como na figura 3 mais adiante. No primeiro momento, as extremidades da escada estão nos pontos  A’  e  B’  e o gatinho no ponto  P’. No segundo momento, as extremidades da escada estão nos pontos  A’’  e  B’’ e o gatinho no ponto  P’’.  Agora, basta completar o desenho formando os retângulos  ACBO  e  A’’C’’B’’O e usar o teorema acima. Pelo teorema, temos

OP’ =  AP’  e  OP’’ =  A’’P’’,

e, como os segmentos  AP’ e  A’’P’’  têm mesma medida (medem justamente a metade do comprimento da escada onde o gatinho está), temos OP’ = OP’’.


figura 3

O mesmo raciocínio pode ser utilizado em qualquer momento da trajetória: se o gatinho está no ponto  P,  o comprimento do segmento  OP  é sempre constante e vale metade do comprimento da escada. Logo, ao cair, a escada faz com que o ponto  P  descreva um arco de circunferência de raio  OP.  Pronto, o problema está resolvido. (Uma animação da solução pode ser encontrada na página da RPM – www.rpm.org.br intitulada Animação 1.)

Bem, para os alunos, o problema pode (e deve) acabar neste momento, mas para um professor é preciso compreender a necessidade matemática de ir um pouco além. Analisando com mais detalhes, provamos que a trajetória do gatinho está contida no arco de circunferência de centro na origem e raio igual à metade do comprimento da escada contido no segundo quadrante, mas é preciso também mostrar a recíproca, ou seja, que esse arco de circunferência está contido na trajetória do gatinho. O fato de o movimento de um ponto ser uma curva contínua pode dar a impressão de que aquilo feito no parágrafo anterior resolve plenamente o problema, mas é necessário fornecer uma argumentação matemática para aceitar esse fato, o que não foi feito.

Observe que a recíproca do resultado é também bastante simples. Consideremos um ponto qualquer P’ do arco da circunferência. Tracemos pelos pontos OP’ um segmento OC’ de sorte que OP’=PC’ . Depois formamos o retângulo ACBO com A’ e B’ nos eixos coordenados, e traçamos sua outra diagonal. Novamente pelo teorema apresentado, o segmento é justamente uma das posições possíveis para  a escada em seu movimento. Ao variar o ponto  P’,  temos todas as posições possíveis da escada no segundo quadrante. Portanto, supondo que a escada de fato ocupa todas essas posições possíveis,  segue que todo o arco de circunferência está na trajetória do gatinho. Agora o problema está completamente resolvido.

 

A SOLUÇÃO DO PROBLEMA DAS CIRCUNFRÊNCIAS

NICOLAU COPÉRNICO (1473-1543), responsável pela teoria heliocêntrica, que revolucionou a concepção do sistema solar. O teorema apareceu no século XVI nos trabalhos de Copérnico, mas já tinha sido proposto e demonstrado anteriormente pelo matemático árabe Nasir al-Din al-Tusi (c. 1274).

A resposta do problema das circunferências é realmente surpreendente. Na verdade, o resultado é famoso, está envolvido em uma controvérsia histórica e chama-se Teorema de Copérnico. Sim, o Nicolau Copérnico (1473-1543), responsável pela teoria heliocêntrica, que revolucionou a concepção do sistema solar. O teorema apareceu no século XVI nos trabalhos de Copérnico, mas já tinha sido proposto e demonstrado anteriormente, há cerca de duzentos anos antes dele, pelo matemático árabe Nasir al-Din al-Tusi (c. 1274). Existem até estudiosos que levantam a hipótese de Copérnico ter usado a mesma demonstração de Nasir como se fosse sua, sem referência alguma ao matemático árabe (veja [1]).


figura 4

Bem, convenhamos, Copérnico não precisaria se apossar de um teorema para marcar sua presença na história da ciência, seu legado científico foi imensamente maior. Controvérsias históricas à parte, vamos à solução do problema das circunferências.

A resposta do problema é: o ponto se move ao longo de um diâmetro da circunferência  C2r , mais especificamente, ao longo do diâmetro que tem uma extremidade no ponto  P,  antes de o movimento começar (veja a Animação 2  em www.rpm.org.br). Muitas pessoas se impressionam com essa resposta.

Vejamos a solução: Para simplificar, vamos supor que o raio da circunferência maior mede 1 e o da menor mede 1/2. Primeiramente, estabeleçamos a melhor maneira de ver como  C1/2   gira em torno de  C1.  Em um sistema cartesiano, coloquemos  C1  com seu centro na origem  O  desse sistema. Para começar nossa análise, a posição mais adequada de olhar as duas circunferências, antes de  C1/2  começar a girar, é quando o ponto de interseção  P  está no eixo das abscissas, isto é, quando  P = (1, 0),  como na figura 4.

Na figura 4, a circunferência tracejada representa C1/2 quando ela ainda está parada. Como o raio da circunferência maior mede o dobro do raio da circunferência menor, C1/2, ao girar, sempre toca o ponto O.  Façamos C1/2 girar, e consideremos o momento em que o ponto de interseção de C1/2C1 seja  I.  Note que o segmento ligando  O  ao ponto I  é um diâmetro de  C1/2  e, portanto, o segmento OI  sempre passa pelo centro  O’ de  C1/2.  Nesse momento, o ponto  P  toma uma posição P’. Ora, C1/2 gira, mas não desliza, daí o arco PI na circunferência C1, correspondente ao ângulo q,  e o arco  PI na circunferência C1/2,  correspondente ao ângulo  j, têm o mesmo comprimento c. Da geometria básica, o comprimento de um arco é o produto do raio pelo ângulo; logo,  c = q = j/2, ou melhorj = 2q.

Provemos agora que, quando  C1/2   gira em torno de  C1,  o ponto  P’ se mantém sempre no eixo das abscissas e, portanto, o ponto  P  se movimenta realmente no intervalo [–1, 1].

Consideremos o triângulo OPO. Como P’ está na circunferência de raio 1/2, segue que OO = OP.  Portanto, os ângulos da base OP   do triângulo devem ser iguais e sua soma deve ser igual ao ângulo externo POI = j = 2q.  Segue   POO= q = POO  e  Pestá, portanto, sobre o eixo das abscissas, variando no intervalo  [–1, 1]  que é um diâmetro de  C1.  Raciocínio análogo pode ser feito em qualquer posição que esteja a circunferência e a afirmação está provada.

 

O QUE O GATINHO TEM A VER COM O TEOREMA DE COPÉRNICO?

Agora chegou finalmente o momento de vermos como os dois problemas se relacionam. Bem, o gatinho era só um artifício para chamar a atenção, nada tem a ver com o Teorema de Copérnico, mas a escada e seu movimento sim.

Diante da figura 2, examinando as soluções dos dois problemas, percebemos que a trajetória do gatinho, no problema da escada, coincide com a figura formada pela trajetória do centro da circunferência Cr/2,  quando essa circunferência se movimenta. Por outro lado, um dos extremos da escada é o ponto  P  e o teorema de Copérnico assegura que ambos os extremos, que geram um diâmetro da circunferência Cr/2 , se movem ao longo de diâmetros perpendiculares da circunferência Cr.

Uma investigação com auxílio de um programa de Geometria Dinâmica (como o Geogebra, por exemplo) revela outros aspectos interessantes do problema.

Na Animação1, a escada deslizou no segundo quadrante, com as extremidades nos eixos cartesianos. Suponha que o mesmo movimento ocorra no terceiro, no quarto e no primeiro quadrante. Se fotografarmos esses movimentos em instantes diferentes, obteremos a imagem ao lado (ver figura 5). Veja também a  Animação 3  em www.rpm.org.br.

Note na figura 5 que o movimento da escada nos quatro quadrantes gera uma nova curva no bordo dessa figura. O que essa curva tem a ver com os dois problemas?


figura 5

Vamos responder à pergunta: dessa vez, considere uma circunferência  C1/4  no interior de  C1/2, ambas intersectando  C1  no ponto  (veja figura 6). Façamos  C1/4  e  C1/2  girarem em torno de  C1 de modo que o ponto de interseção das três circunferências esteja sempre sobre C1 . Ao fazer esse movimento, C1/4  gira em torno de C1/2  e de  C1;  e  C1/2  gira em torno de C1.

Reveja a figura 4. Com respeito às circunferências  C1/2C1,  provamos a relação entre os ângulos j = 2q. O que isso significa? Que para a circunferência  C1/2  dar uma volta completa em torno da circunferência  C1,  ela deve girar duas vezes em torno de si mesma. Semelhantemente, para a circunferência  C1/4  dar uma volta completa em torno de  C1,  ela deve girar quatro vezes em torno de si mesma.

Agora, se o ponto  é arrastado pela circunferência  C1/4,  ficando fixo nela, de acordo com os movimentos acima, que curva esse ponto descreve e o que essa curva tem a ver com as circunferências C1/4,   C1/2  e  C1?

Observe a figura 6 e, para melhor entender as considerações a seguir, também assista à Animação 4  em  www.rpm.org.br.


figura 6

Agora, é impressionante observar os fatos a seguir no:

1) Movimento  C1/2  ao longo de C1:  considere o diâmetro  D = OP  de  C1/2  no momento em que as circunferências estão paradas. Pelo Teorema de Copérnico, os extremos desse diâmetro (que na verdade são os extremos da escada!) se movimentam ao longo dos diâmetros  AB  e  EF  de  C1.

2) Movimento de  C1/4  ao longo de  C1/2: mais uma vez, pelo Teorema de Copérnico, o ponto  P é arrastado por  C1/4  sempre ao longo do diâmetro  D  de  C1/2.

3) Movimento de  C1/4  ao longo de  C1:  nesse movimento, o ponto  P  gera a curva no bordo da figura 5, formada pelo movimento da escada. Parece uma estrela de quatro pontas e por isso se chama astroide ((aster=estrela) + (oide=parecido)) e faz parte de uma classe de curvas muito interessantes, geradas pelo movimento de um ponto arrastado sobre uma circunferência que gira em torno de outra. Para construir uma astroide, basta acompanhar a trajetória de um ponto arrastado por uma circunferência  Cr/4  girando em torno de uma circunferência maior Cr.  Na verdade, em nosso caso, no movimento da circunferência  C1/4  ao longo de C1, o Teorema de Copérnico assegura que as retas tangentes à astroide em cada um de seus pontos, exceto onde ela forma um “bico” (cúspide), contêm exatamente o diâmetro  D  de  C1/2  quando ele se movimenta.

Por fim, observe novamente a Animação 4 e aprecie o movimento das circunferências, dos pontos e da astroide, gerando uma beleza fascinante por trás da geometria escondida nesses dois belos problemas.

Nota: Agradecemos à Profa. Rosana Marques da UFCG pela construção das figuras no Geogebra que serviram para fazermos as animações.

 

REFERÊNCIAS

http://www.columbia.edu/~gas1/project/visions/case1/sci.2.html. Consultada em 01 de agosto de 2013. Página eletrônica mantida por George Saliba da Columbia University.
Valileyev N, Gutenmacher, V., Straightlines and curves, Mir Publishers, Moscow (1980).