Poncio Mineiro
IFRJ e Colégio Pedro II

 

Introdução

Durante uma aula para alunos do curso de Licenciatura em Matemática no IFRJ (Campus Paracambi), percebi uma dificuldade quanto à classificação de sistemas lineares. Procurando uma maneira mais direta de proporcionar-lhes uma melhor compreensão do tema, tive a ideia de buscar por jogos e atividades lúdicas que pudessem auxiliar na aprendizagem desse conteúdo. Dentre as diversas atividades lúdicas encontradas, uma me despertou a atenção: ponte escura. Este artigo destina-se a relatar tal experiência e as reflexões geradas por ela.

 

Ponte escura

O jogo Ponte escura está disponível na Internet em diversos sites, mas tomarei como referência o encontrado em www.rachacuca.com.br.

A atividade consiste em fazer os cinco personagens – um atleta, um jovem, um senhor, uma senhorita e uma senhora – atravessarem uma ponte escura. Essa travessia só é feita utilizando uma lanterna para iluminar o caminho até o outro lado da ponte. Essa lanterna, porém, poderá ser utilizada, no máximo, por 30 minutos. A ponte, por sua vez, tem a capacidade máxima para suportar até duas pessoas e cada um dos personagens atravessa a ponte em um tempo diferente: o atleta gasta 1 minuto, o jovem gasta 3 minutos, o senhor gasta 6 minutos, a senhorita gasta 8 minutos e a senhora gasta 12 minutos. O jogador ganha se fizer a passagem de todos os personagens para o outro lado da ponte em, no máximo, 30 minutos (tempo disponível para a utilização da lanterna).


Tela inicial da Ponte escura
Fonte: www.rachacuca.com.br  acesso em 22/05/13

Deve ser levado em consideração o fato de que o tempo de uso da lanterna será computado tanto no sentido de ida, quanto no sentido de volta. Como exemplo, considere que a primeira passagem seja feita pelo jovem e pelo senhor. Daí, serão gastos 6 minutos na ida. Como os demais personagens só atravessam a ponte se estiverem de posse da lanterna, esta deverá retornar ao ponto de partida. Portanto, aos 6 minutos já computados na primeira passagem, acrescenta-se o tempo em que a lanterna retornará ao ponto inicial. Então, somente para a primeira travessia foram gastos 9 minutos (6 minutos de ida e 3 minutos de volta), considerando-se que o jovem volta com a lanterna.

Após algumas tentativas, nota-se que deverão ser feitos 4 trajetos de ida (em cada um dos 3 primeiros trajetos um personagem é deixado no ponto final e, no quarto trajeto – por ser o último –, os dois personagens ficam na posição final) e 3 trajetos de volta (lembrando que, em cada um desses, somente um personagem conduzirá a lanterna ao ponto de partida). Nas referências seguintes, faremos as seguintes convenções: atleta (a);  jovem (j);  senhor (s); senhorita (t)  e senhora (r).  Daí, em função do tempo gasto em cada travessia, teremos, em minutos,

a = 1;   j = 3;  s = 6;  t = 8  e  r =12.

Ao apresentar o problema aos alunos, pedi que eles procurassem uma forma de obter vitória no jogo. Após certo tempo, garantiram que o problema não teria solução. Pelos registros observados, a tentativa mais frequente foi a apresentada no quadro abaixo.

Ida Volta
ar a
at a
as a
aj  

É evidente que, com tal configuração, o jogador perde, pois o tempo gasto, em minutos, é igual a

12 + 1 + 8 + 1 + 6 + 1 + 3 = 32.

Porém, a tentativa foi válida para que fosse percebida a impossibilidade de uma solução quando o atleta participa de todos os trajetos de ida e de volta. Logo, nossa primeira conclusão é que o atleta não poderá figurar em algum trajeto de ida ou em algum trajeto de volta.

 

Buscando soluções

Nos sistemas seguintes,  i  representa ida e  v  representa volta;   ai av  representarão os números de trajetos, respectivamente, de ida e de volta, feitos pelo atleta; significado análogo terão as notações  jjvri  rvsi  svti  tv.

Como na volta há uma quantidade menor de trajetos, comecemos por ela. É evidente que estamos tentando encontrar um modo em que se gaste o menor tempo possível. Daí, os únicos personagens que devem figurar serão o atleta e o jovem. Então, podemos escrever:

Como sabemos que o atleta não poderá figurar em todos os trajetos de volta, as possíveis soluções em (1) são

av = 2  e  jv = 1;  av = 1  e  jv = 2  ou
av = 0  e  jv = 3.

Dentre essas opções, consideraremos aquela que demanda um menor tempo gasto, ou seja,    av = 2  e  jv = 1,  que gastará 5 minutos no tempo de volta. Decorre imediatamente que, em (2), podemos garantir que tempoi < 25.

Em relação à ida, como há 4 trajetos, sempre com dois personagens presentes, podemos afirmar:

A solução que nos interessa é aquela em que o tempo gasto seja o menor possível. Devemos lembrar que o atleta não deve figurar em todos os trajetos de ida. Isso significa que devemos considerar ai = 3;  ji = 2  e  si = ti = ri = 1  como a solução que nos interessa.

Estamos, então, diante de um momento delicado. Sabemos quantas vezes cada personagem figura em cada trajeto de ida, mas não podemos garantir (pelo menos por enquanto) como se dará a ordem das combinações desses personagens! Lembremos que, se  x  e  y  são dois personagens que farão juntos algum trajeto de ida, então o tempo gasto por eles na travessia será  max{tempox, tempoy}.

Como, na configuração de ida, o senhor, a senhorita e a senhora aparecem uma vez, concluímos que não será possível que todos esses personagens façam a travessia com o atleta, uma vez que, caso o atleta fizesse um trajeto com cada um dos personagens citados, o tempo gasto seria, então,

max{ai, si} + max{ai, ti} + max{ai, ri} = 26,

contrariando (4). Daí, na tentativa de se gastar o menor tempo possível, é razoável imaginarmos que a senhora e a senhorita façam uma travessia juntas, posto que o tempo gasto por elas (no caso, 12 minutos) seria menor que a soma dos tempos de cada uma delas com o atleta ou o jovem. Feito isso, resta-nos combinar o atleta (3 trajetos), o jovem (2 trajetos) e o senhor (1 trajeto). Isso só é possível para as combinações {atleta, senhor}; {atleta, jovem} e {atleta, jovem}.

Curiosa é a observação da existência de dois trajetos com os mesmos personagens (no caso, {atleta, jovem}). Fica mais clara essa situação quando recordarmos o que acontece nos trajetos de volta. Note que, neste caso, figuram o atleta (duas vezes) e o jovem (uma vez). Isso significa que a dupla {senhorita, senhora} não pode ser a primeira a atravessar a ponte. De modo semelhante, a mesma dupla {senhorita, senhora} não poderá ser a última a atravessar a ponte. Também devemos abandonar a ideia de atravessar primeiro a dupla {atleta, senhor} e imediatamente após atravessarmos a dupla {senhorita, senhora}. A justificativa é simples.

Caso  isso ocorresse, logo após a chegada da dupla {senhorita, senhora}, quem deveria retornar com a lanterna seria o senhor, o que contrariaria nossa hipótese. Finalmente, podemo dizer que as duplas {atleta, jovem} e {atleta, jovem} não poderão figurar imediatamente em sequência, dada a impossibilidade óbvia de tal configuração.

Combinando todas essas possibilidades e possíveis restrições, pode-se garantir que a ponte escura apresenta sete possíveis soluções.

Em cada uma delas, o tempo gasto para a travessia de todos os personagens é de 29 minutos. Eis as possíveis soluções:

Solução 1 Solução 2
Ida Volta Ida Volta
as a as a
aj j aj a
tr a tr j
aj   aj  

Solução 3 Solução 4
Ida Volta Ida Volta
aj a aj a
tr j as j
as a tr a
aj   aj  

Solução 5 Solução 6 Solução 7
Ida Volta Ida Volta Ida Volta
aj j aj a aj j
tr a tr j tr a
as a aj a aj a
aj   as   as  

Considerações finais

Algumas reflexões são interessantes a respeito deste relato. Uma delas é a certeza de que a utilização de atividades lúdicas é um recurso muito positivo para o ensino de Matemática. Desde que adequadamente planejadas, essas atividades permitem que os alunos se envolvam na aprendizagem de conceitos matemáticos de maneira mais leve e informal e ainda assim possibilitam a exploração de conexões importantes entre diferentes tópicos. Por exemplo, os jogos proporcionam aos alunos a análise de diferentes casos e situações, a partir da alteração das configurações iniciais. Assim, na aplicação de jogos em sala de aula, o papel do professor é fundamental para conduzir as atividades e sistematizar os resultados. Sem essa sistematização, a aplicação de um jogo pode se tornar apenas uma “brincadeira”, sem concretizar nenhuma aprendizagem matemática.

Note que a busca que levou à Ponte escura partiu da demanda por recursos para o ensino de sistemas lineares. O foco dessa atividade é, entretanto, ainda mais sutil matematicamente, uma vez que o problema envolve a resolução de equações com várias incógnitas e com restrições dadas por inequações.  As possibilidades de exploração da Ponte escura não se esgotam com essa experiência. Outras perguntas   ainda podem (e devem) suscitar conclusões interessantes. Como exemplos, posso citar:

Quais as soluções caso o tempo gasto pelos personagens não seja o especificado neste relato? É possível ter solução única? Para quais valores podemos garantir, somente com o tempo gasto pelos personagens e o tempo de uso da lanterna, que o problema tenha solução única?

Na minha observação, a mais importante das reflexões é baseada na completa convicção de que a busca permanente por novos recursos para a aula de Matemática é uma condição necessária para que nos tornemos melhores professores. O burilar das ideias, o desafio gerado pela preparação da aula e de seus possíveis desdobramentos torna-se uma situação renovadora, tão necessária a qualquer profissional! Tal desafio é o compromisso que devemos ter com nossa consciência, especialmente quando estamos preparando futuros colegas, futuros professores de Matemática.

 

 

REFERÊNCIAS

Morgado, A. C. et al. Análise Combinatória e Probabilidade, 9 edição. Rio de Janeiro: SBM, Coleção do Professor de Matemática, 2006.
Polya, George. Dez mandamentos para professores. RPM, v. 10. Rio de Janeiro: SBM, 1990.