Responsável
Sérgio Roberto Nobre
UNESP - Rio Claro

 

AS LUAS DE HIPÓCRATES::
A LONGA HISTÓRIA DE UM PROBLEMA NA HISTÒRIA DA MATEMÁTICA

Maria Elisa E. L. Galvão
Vera H. G. de Souza
Universidade UNIBAM - Anhanguera

 

A medição e o cálculo de áreas, entre as civilizações mais antigas, estavam relacionados a figuras geométricas simples como triângulos, quadriláteros e regiões poligonais. Entre os gregos, dada a importância das construções com a régua e o compasso, estabeleceu-se o procedimento da quadratura:

dada um figura geométrica, fazer a sua quadratura é construir, com o auxílio desses dois instrumentos, um quadrado equivalente a ela, ou seja, com a mesma área da figura dada.

Usando a régua e o compasso, podemos fazer a quadratura do triângulo  ABC  da figura 1, observando, inicialmente, que ele é equivalente ao retângulo  ABDE.  A figura 2 mostra como, a partir do retângulo  ABDE,  construir o quadrado equivalente a ele, pelos métodos elementares utilizados no período clássico da matemática grega.


figura 1
O triângulo ABC  é equivalente ao retângulo ABDE,  quando o
lado  AE  do retângulo é a metade da altura do triângulo

Na figura 2 a seguir, o retângulo  ABDE  é equivalente ao quadrado em vermelho, cujo lado  x  é a altura do triângulo retângulo  AFH. A hipotenusa do triângulo  AFH  tem medida  AF = AB + BF,  sendo BF = BD = AE,  pois  x2 = AB. BF = AB.BD.


figura 2

Para passar da quadratura do triângulo à das regiões poligonais, o primeiro passo pode ser ilustrado considerando um quadrilátero  ABCD;  é possível encontrar um triângulo equivalente a ele tomando, por exemplo, a reta (pelo vértice D, na figura 3) paralela a uma de suas diagonais (na figura 3, a diagonal  AC)  e determinando o triângulo  ACE  equivalente ao triângulo ADC (têm a mesma base e mesma altura). Então o triângulo  BCE  é equivalente o quadrilátero  ABCD.


figura 3
O triângulo  BCE  é equivalente ao quadrilátero  ABCD

Desde aproximadamente 500 a.C., uma pergunta esteve presente entre os matemáticos e só foi completamente respondida no século XIX:

Podemos construir, com régua e compasso, um quadrado equivalente a um círculo?

ou  seja, como encontrar a quadratura do círculo?

Hoje, sabemos que a quadratura do círculo é impossível. No entanto, a primeira quadratura de uma região não poligonal que conhecemos é devida a Hipócrates de Chios, que viveu no século V a.C.  Estima-se que, entre 450 e 430 a.C., Hipócrates tenha escrito seu trabalho mais importante, os Elementos de Geometria. Embora os originais tenham se perdido, a obra é considerada precursora dos primeiros livros dos Elementos de Euclides e nela foram registrados importantes avanços para a Geometria do seu tempo.

As luas estudadas por Hipócrates de Chios (figura 4) ficam determinadas quando traçamos duas circunferências em um plano, com centros distintos e que têm exatamente dois pontos em comum; são as duas regiões não convexas (ou também ditas côncavo-convexas) limitadas pelos arcos de circunferência.


figura 4
As luas de Hipócrates

figura 5

figura 6.1

 


figura 6.2                                     figura 6.3

figuras 6: Segmentos e setores circulares

Considera-se que o estudo de Hipócrates sobre a quadratura das luas foi, provavelmente, uma tentativa para chegar à quadratura do círculo. Hipócrates utilizou uma propriedade simples dos setores circulares (figura 5): a razão entre as áreas de dois setores cujos ângulos centrais são congruentes é igual à razão entre os quadrados dos comprimentos de suas respectivas cordas. Ou seja, se  A1  e  A2  são as áreas dos setores circulares  OAB  e  OCD  ou dos triângulos  OAB  e  OCD  na figura 5, temos então . Essa razão é também a razão entre as áreas dos correspondentes segmentos circulares de cordas AB e CD.

O primeiro exemplo estudado por Hipócrates trata da quadratura de luas construídas sobre os lados de um triângulo retângulo isósceles, como o triângulo  ABC  nas figuras 6.

A hipotenusa e o lado do triângulo  ABC  são tais que  AB2 = 2AC2.  A estratégia de Hipócrates para chegar à área das luas é simples e criativa; ele observou que se juntarmos ao triângulo retângulo isósceles (cuja área chamaremos  At )  as semicircunferências menores (de  área  A1)  cujos diâmetros são seus catetos e retirarmos a semicircunferência maior (cuja área é  A2),  ficamos com as duas luas (cuja soma das áreas denotaremos  2A).  Como acrescentamos e retiramos áreas iguais (de  AB2 = 2AC2  temos  A2 = 2A1),  sabemos que a área do triângulo inicial é igual à soma das áreas das duas luas. Ou seja, de  2A = At + 2A1A2  segue que  2A = At  e, portanto, a área  A  da lua será a metade da área do triângulo  ABC,  ou ainda igual à área do triângulo  ACD.  O problema da quadratura da primeira figura não poligonal nos fornece uma maneira interessante para trabalhar com áreas de figuras circulares sem usarmos fórmulas.

Hipócrates exibiu dois outros exemplos de luas cuja quadratura pode ser descrita com argumentos semelhantes aos que acabamos de descrever. No primeiro deles, o arco exterior é maior do que uma semicircunferência e, no segundo, menor. No exemplo em que o arco exterior é maior do que uma semicircunferência, o arco foi dividido em três arcos congruentes e a solução, que seguiu a mesma ideia já descrita para o triângulo retângulo isósceles,  baseou-se na construção de um trapézio isósceles cuja base menor é congruente aos lados não paralelos; na figura 7,  AD = CD = BC.  Além disso, Hipócrates supôs que  AB2 = 3BC2  e que os correspondentes setores são semelhantes. Daí, a razão entre as áreas A1  e  A2  dos segmentos circulares correspondentes às cordas AB e BC respectivamente (ou, consequentemente, AD e CD), é 3, ou seja,  A1 = 3A2.


figura 7

Novamente, podemos escrever a igualdade:  A = AT + 3A2A1,  onde  A  é a área da lua e  AT  é a área do trapézio  ABCD.  Hipócrates verificou que o trapézio pode ser construído com régua e compasso, o que garante a quadratura da lua. A figura 8 ilustra o último exemplo de Hipócrates, o caso em que o arco externo é menor do que uma semicircunferência. Novamente, teremos um trapézio isósceles, cuja base menor é congruente aos lados não paralelos (o arco externo dividido em três partes iguais); o ponto de encontro das diagonais divide o arco interno em dois arcos congruentes, e todos os arcos correspondem a um mesmo ângulo central. Novamente, para poder usar o argumento de compensação de áreas, supondo  AE2 = BC2,  teremos que as áreas  A1  e  A2  dos segmentos circulares correspondentes às cordas AE e BC,  respectivamente, satisfaçam a relação  2A1  = 3A2.

        
figura 8

A relação entre as áreas, neste caso, é dada pela expressão:  A = AP + 3A2 – 2A1,  onde  AP  é a área do polígono  AEBCD,  que será equivalente à lua original. Novamente, verifica-se que o polígono pode ser construído com régua e compasso a partir do trapézio. As hipóteses feitas por Hipócrates garantiram que houvesse o cancelamento das áreas acrescentadas e retiradas, nos dois casos.

Ao longo de mais de dois mil anos, as três luas de Hipócrates foram as únicas luas cujas quadraturas eram conhecidas e podiam ser realizadas utilizando recursos acessíveis a um estudante do ensino médio.

A expansão do mundo árabe a partir do século VIII permitiu o contato com o conhecimento dos períodos clássico e helênico e o surgimento de importantes centros de estudos na península ibérica, no Oriente Médio e no Egito. Um nome de destaque nesse mundo árabe é o de Ibn Al-Haytham, que viveu no início do século X (965-1040). Reproduzindo os argumentos de Hipócrates, Al-Haytham exibiu a quadratura da reunião de luas limitadas por semicircunferências construídas sobre os lados de um triângulo retângulo qualquer, como na figura 9, provando que a reunião das luas é equivalente ao triângulo retângulo. A relação entre as áreas dos semicírculos, neste caso, será consequência do teorema de Pitágoras.


figura 9

Exceto essa pequena contribuição de Al- Haytham, não encontramos avanços na solução do problema da quadratura das luas, desde Hipócrates até o século XVIII.

Passaram-se mais de dois milênios até que fossem descobertas duas novas luas cujas quadraturas se mostraram possíveis. Os avanços da Trigonometria, com a obtenção das fórmulas gerais para senos e cossenos de arcos múltiplos, dadas por Viète ao final do século XVII, permitiram que Wallenius, em 1766, e Euler, em 1772, exibissem os dois novos exemplos. Wallenius, além disso, conduziu o problema para a sua discussão mais geral, encontrando as equações polinomiais, cujas soluções ele só sabia discutir quando os graus se reduziam a 2 ou 4. Vamos examinar alguns detalhes do trabalho de Wallenius.

Ele escreveu a área  A  da lua (figura 10) como a diferença das áreas dos segmentos circulares correspondentes aos ângulos centrais medindo  2a  e  2b  e obteve a expressão:

A = r2 - r2 sen 2a -R2 - R2 sen 2a =
r2a - R2b - r2sena + R2sen2b.


figura 10

Observou que a expressão fica mais simples com a hipótese de que  r2aR2b = 0.  Como os dois segmentos circulares têm a corda AB em comum, usou ainda a relação trigonométrica: PB = r sena = R senb.  Daí, .

  R2 = ur2, sendo  u =   e, voltando à expressão para  PB,  ficou com sen(ub) = senb.  

A hipótese para a simplificação da expressão para a área equivale às relações entre as áreas dos setores inicialmente considerados por Hipócrates, lembrando que = u. Somente ao final do século XX os matemáticos conseguiram provar que essa hipótese é necessária para que a quadratura da lua seja possível.

A descoberta de novas luas é consequência da existência de soluções construtíveis para equação obtida de sen(ub) = sen(b). Wallenius encontrou as soluções construtíveis das equações correspondentes aos valores:  u = 2,  3,  3/2,  5  e 5/3.  Os novos exemplos exibidos por Wallenius (figuras 11) correspondem a  u = 5  e  u = 5/3.  Por exemplo, quando R = r, a equação sen(ub) = sen(ub) se escreve

senb = 5senb – 20sen3b + 16sen5b,

cuja solução positiva para sen2b  é ; o ângulo b  será construtível com medida aproximada de  23,5º ( Wallenius utilizou  logaritmos para chegar a esse valor).  Dado  u,  lembrando que, sendo u = , escolhido um dos raios, a construtibilidade do ângulo b  (e do ângulo  a = 5b),  podemos  construir, com régua e compasso, a primeira lua, na figura 11.1. A segunda lua, figura 11.2, corresponde a  u = 5/3.

                
              figura 11.1                                                figura 11.2               

O problema, em sua forma mais geral, que conduz à investigação sobre a possibilidade da quadratura para novos exemplos depende, essencialmente, do estudo das equações resultantes da utilização das fórmulas da trigonometria para as funções de arcos múltiplos.

A quadratura das luas tem, portanto, desde a antiguidade até o século XVIII, uma formulação que começa na Geometria, passa pela Trigonometria e chega à Álgebra; deparamo-nos com a questão da construtibilidade das raízes de uma equação algébrica, esta agora não elementar, com respostas iniciais somente na segunda metade do século XIX.  A resposta, do ponto de vista geral, para existência de luas quadráveis só foi conseguida na primeira metade do século XX e está nos trabalhos de vários matemáticos (TSCHAKALOFF, 1929; TSCHEBOTAÖW, 1934; DORODONOV, 1947; POSTINOV, 2000). Depois de aproximadamente dois milênios, a conclusão é que não temos outros exemplos de luas cujas quadraturas sejam possíveis, além dos descobertos por Hipócrates e Wallenius.

 

REFERÊNCIAS

Heath, Sir Thomas Little. 1982. A History of Greek Mathematics. vol. I. NY: Dover Pub. Inc.
Wallenius, Martin Johan. 1766. Dissertatio Gradualis: Lunulas Quasdam Circulares Quadrabilis.     Translated and annotated by Ian Bruce. http://www.17centurymaths.com/contents/lunes.pdf,     acesso em 05/2013.