José Luiz Pastore Mello
São Paulo - SP

Um mecanismo muito conhecido desde os tempos antigos para transportar blocos de pedra consiste em apoiá-los sobre cilindros rolantes. Tal método, usado, por exemplo, pelos antigos egípcios durante a construção das pirâmides, permitia que imensos monolitos fossem deslocados de maneira relativamente estável por conta de que cilindros são sólidos formados por figuras de diâmetro constante (círculos) ao longo do seu comprimento, e isso assegura que o bloco arrastado fique sempre à mesma distância do chão durante o transporte. A figura abaixo mostra, em vista lateral, um monolito sendo transportado sobre cilindros de diâmetro da base igual a 1 m.

A pergunta que proponho ao leitor, para início da nossa investigação, é a seguinte: além da circular, existe alguma outra forma que, ao “rolar”, também preserve a distância do bloco transportado até o solo?

Por mais estranho que pareça, além do círculo, existem infinitas outras formas geométricas planas de diâmetro constante e, sendo assim, qualquer sólido reto com secções paralelas à base (e que seguem seu comprimento) com uma mesma dessas formas geométricas planas de diâmetro constante será um substituto do cilindro no problema em questão.

O triângulo de Reuleaux é um exemplo simples de forma geométrica plana não circular de diâmetro constante. O nome desse triângulo foi dado em homenagem ao engenheiro alemão Franz Reuleaux, que, no século 19, projetou mecanismos envolvendo essa forma geométrica. Reuleaux é considerado por muitos historiadores da ciência o pai da cinemática por suas contribuições nessa área. Apesar do nome, o triângulo de Reuleaux não é propriamente um triângulo, mas, sim, uma curva formada a partir de um triângulo equilátero da seguinte maneira: partindo de um triângulo equilátero  ABC  de lado  L,  fazemos três arcos de circunferência de raio  L,  centrados em  AB  e  C,  conforme indica a figura ao lado; a curva obtida é chamada de triângulo de Reuleaux. De forma geral, dizemos que um polígono de Reuleaux é uma forma geométrica particular de diâmetro constante obtida a partir de um número finito de arcos circulares de mesmo raio, centrados sempre no vértice oposto. Se um polígono de Reuleaux é formado por arcos de mesmo comprimento, então ele é chamado de regular.

Não é difícil imaginar um sólido reto – com triângulos de Reuleaux nas secções paralelas – substituindo o cilindro no problema do transporte do bloco. Ao “rolar” esse sólido sobre o chão, a distância entre o ponto do bloco em contato com o sólido e o chão será sempre de 1 m.

Normalmente os textos de Matemática se referem às figuras como o círculo e o triângulo de Reuleaux como formas de largura constante, porém, por razões particulares que ficarão claras ao final deste artigo, estamos dizendo que são formas de diâmetro constante. Nesse caso, é importante que seja esclarecido o que estamos chamando de diâmetro de uma figura plana.

Sem apelo ao rigor matemático, imaginemos a seguinte situação: sejam  r  e  s  retas paralelas girando em torno de uma curva fechada convexa l de forma que l sempre fique “perfeitamente espremida” entre  r  e  s,  sendo  P  e  Q  os pontos de intersecção de  r  e  s  com l (assuma que esses pontos sejam únicos). Nesse caso, chamaremos a distância entre  P  e  Q  de um diâmetro de l. Ao girarmos  r  e  s  na condição estabelecida, podemos verificar “intuitivamente” que o diâmetro de l poderá ser constante, como no caso do círculo e do triângulo de Reuleaux, ou não, como no caso da figura abaixo na qual temos P2Q2 < P1Q1 < P3Q3.

Aos leitores interessados em uma definição precisa de curvas de largura (diâmetro) constante envolvendo conhecimentos elementares de cálculo, recomendamos a referência [1].

Nas figuras a seguir, indicamos o maior diâmetro de três curvas fechadas convexas.


Círculo de centro C
(diâmetros constantes iguais a PQ)

Elipse de centro C e eixo maior PQ
(diâmetros não constantes sendo o maior igual a PQ)

Triângulo qualquer
(o maior diâmetro é PQ, que é o maior lado do triângulo)

É curioso observar que, além do círculo e do triângulo de Reuleaux, existem muitas outras curvas de diâmetro constante formadas a partir de polígonos regulares com um número ímpar de lados. Curvas como essas são usadas, por exemplo, na fabricação das moedas britânicas de 20 e de 50 pence, cuja forma se aproxima de um heptágono regular de Reuleaux. No caso das moedas, consegue-se com isso uma estética diferente do padrão circular, mantendo-se o diâmetro bem determinado, que é um imperativo para o seu uso em máquinas de refrigerantes ou de jogos.


Moeda inglesa de 50 pence
(heptágono de Reuleaux)

Outra curiosa aplicação do triângulo de Reuleaux se deve ao engenheiro inglês Harry James Watt, que, em 1914, aproveitando as propriedades da curva, concebeu uma broca de furadeira com eixo flexível para fazer furos com a forma aproximada de um quadrado.


Broca com forma de triângulo de Reuleaux
para fazer furos “quadrados” (o eixo é flexível, pois não há um centro em posição fixa)

A forma aproximada do triângulo de Reuleaux é usada na fabricação de algumas palhetas para tocar violão, e em alguns tipos de lápis. Em ambos os casos, o que se supõe é que curvas de diâmetro constante são mais ergonômicas para o manuseio.


Lápis com a forma aproximada de um triângulo de Reuleaux nas secções  transversais

Famosa palheta em forma
aproximada de triângulo de Reuleaux

 

Atividades com curvas de diâmetro constante no ensino fundamental

Nós, professores, frequentemente nos vemos diante de temas matemáticos de grande potencial para mobilizar o interesse do aluno e, por vezes, desperdiçamos a oportunidade de mergulhar no assunto por julgá-lo complexo. Em alguns casos, esse receio está associado ao fato de que o professor de Matemática não se sente confortável em contextos onde tem que abrir mão da precisão da linguagem, do rigor conceitual ou das demonstrações. Outro ponto de vista, do qual compartilho, é o de que não devemos perder a oportunidade de abordar temas complexos se por meio deles for possível fazer Matemática interessante e desafiadora com nossos alunos. Nesse caso, é decisivo para o êxito da aula que o professor faça uma boa seleção dos problemas que serão propostos aos alunos, e que faça uma escolha cuidadosa da escala de aprofundamento, abrangência e rigor que irá utilizar.

A seguir são sugeridas algumas atividades com curvas de diâmetro constante no ensino fundamental que, se por um lado abrem mão do aprofundamento que o tema exigiria no escopo de uma pesquisa matemática, por outro tem o mérito de colocar o aluno na linha de frente de interessantes problemas matemáticos. Ao final de cada problema segue a resposta e um comentário para aprofundamento do professor no assunto em questão.

 

Problema 1

Calcule e compare as áreas de um triângulo de Reuleaux  (AT),  formado a partir de um triângulo equilátero de lado  1,  e de um círculo  (AC)  de diâmetro  1.

Resposta:  AT = < AC = p

Comentário: dentre todas as curvas de uma mesma largura constante, o triângulo de Reuleaux é a de menor área e o círculo é a de maior área.

 

Problema 2

Calcule e compare os perímetros de um triângulo de Reuleaux (PT), formado a partir de um triângulo equilátero de lado 1, e de um círculo (PC)  de diâmetro 1.

Resposta:  PT = PC = p.

Comentário: curvas de um mesmo diâmetro constante, como no caso das figuras deste problema,  têm  sempre o mesmo perímetro. Esse resultado é conhecido como teorema de Barbier [1].

 

Problema 3

Construa com régua e compasso um pentágono de Reuleaux.

Resposta: o procedimento é análogo ao do triângulo de Reuleaux, partindo de um pentágono regular.

Comentário: Partindo de um polígono regular com número ímpar de lados, sempre será possível utilizá-lo como “gabarito” para construir um polígono de Reuleaux. Também é possível construir uma curva de diâmetro constante a partir de um polígono não regular, porém a curva não será um polígono de Reuleaux regular.

 

Problema 4

Construa em papel-cartão um triângulo de Reuleaux e um círculo. As duas figuras têm que ter mesmo diâmetro. Recorte-as com tesoura e mostre experimentalmente que, quando colocadas entre duas réguas posicionadas em paralelo, as réguas deslizam suavemente sobre as figuras, seja qual for sua posição.

Resposta:

Comentário: Havendo possibilidades, recomendo a construção de peças em madeira ou metal a partir dos moldes em papel-cartão obtidos pelos alunos. A respeito disso, não deixe de visitar a página-web indicada na referência [2].


Sólidos em metal construídos a partir de moldes
de círculo e de triângulo de Reuleaux.

 

Uma generalização de pi

Nos círculos, a razão constante entre o perímetro e o diâmetro é denotada por π.  Agora que observamos outras curvas planas de diâmetro constante, é natural que se pergunte se a razão entre o perímetro e o diâmetro é igual para todas essas curvas. Podemos fazer essa pergunta para curvas planas fechadas, limitadas e convexas mesmo sem diâmetro constante. Para isso definiremos diâmetro de uma curva, nas condições estabelecidas, como sendo o valor máximo dos diâmetros da curva (segundo a definição dada anteriormente de um diâmetro de uma curva l).

Para essa investigação, a partir de agora denotaremos a generalização dessa razão por pi, e a definiremos da seguinte maneira:

pi(curva) = perímetro da curva/diâmetro da curva

Com essa definição, o valor de pi depende apenas da forma da curva, e não do seu tamanho. Por exemplo:

pi (círculo) = π

pi (quadrado) =
(No quadrado, o diâmetro é sua diagonal.)

Pode-se demonstrar que o diâmetro de um triângulo
qualquer sempre será seu maior lado; logo:
pi (triângulo qualquer) =
perímetro/comprimento do maior lado

Então

pi (triângulo equilátero) = 3
pi (triângulo retângulo isósceles) = 1 +   2,414

Talvez, neste momento, o leitor esteja levantando a hipótese de que, dentre todas as curvas de mesmo diâmetro, o círculo seja a de maior valor de pi. Isso de fato é verdadeiro, porém, é necessário ressaltar mais uma vez que as curvas permitidas nessa “disputa” devem ser fechadas, limitadas e convexas, caso contrário seria perfeitamente possível encontrar uma curva de mesmo perímetro de um círculo e com o valor de  pi  maior do que π,  como mostra a figura abaixo:


Círculo de perímetro 1 e diâmetro AB  e curva não convexa de 
perímetro 1 e diâmetro  AB’ < AB.
pi = (1/AB’) > 1/AB = π

Pode-se demonstrar que, se o domínio de pi estiver restrito às curvas fechadas, limitadas e convexas, então o círculo será a curva que maximiza o valor de pi.

Ao analisarmos pi para os quadriláteros convexos, é fácil demonstrar que os losangos não quadrados têm pi menor do que pi dos quadrados de mesmo perímetro, como se vê a seguir:


Quadrado de lado  l,  perímetro  4l  e diâmetro  AB = l.
Losango de lado  l,  perímetro  4l  e diâmetro AB’ > AB.

Note que  AB’ > 2l (condição de existência do triângulo). Segue que l < A'B' < 2l e, portanto,  pi (quadrado) > pi (losango).

Um pouco mais difícil seria a demonstração do seguinte resultado: dentre todos os retângulos de lados  y,  o de maior pi será aquele com  x = y,  ou seja, o quadrado. Para uma demonstração desse resultado, consulte a referência [3].

Além daquilo tudo que já foi dito, um resultado verdadeiramente surpreendente é o de que o quadrado, que tem o maior pi dentre os quadriláteros usualmente chamados de notáveis, não é o quadrilátero convexo de maior pi. O quadrilátero convexo de maior  pi  é uma pipa. Essa investigação será proposta em um dos exercícios sugeridos a seguir.

 

Atividades com a generalização de pi no ensino médio

Inúmeros problemas interessantes a respeito de curvas de diâmetro constante, e da determinação de  pi,  podem ser propostos para alunos do ensino médio, seja em aulas regulares do curso, seja em clubes de Matemática. A seguir, apresento alguns exemplos.

 

Problema 1

Calcule o  pi  de um retângulo em que o lado maior mede o dobro do lado menor.

Resposta: pi (retângulo  x  por  2x) =

Comentário: A atividade pode ser repetida para retângulos com lados consecutivos de medidas cada vez mais próximas uma da outra, como, por exemplo,  x  e  3x/2;   x  e  5x/4;  ou  x  e  9x/8.    Em seguida, pode-se conjecturar que, quando o comprimento do retângulo se aproxima de sua largura, pi (retângulo) aumenta e se aproxima, no limite, de pi (quadrado).

 

Problema 2

A pipa  PQRS  está inscrita no quadrado  ABCD   de lado  l,  conforme figura abaixo. Se  PQ = PS = l,  mostre que  pi (pipa) > pi (quadrado).

Resposta: Prove inicialmente que os ângulos internos da pipa medem 60°, 75°, 75° e 150°.

Com o uso da trigonometria, os cálculos conduzem ao seguinte resultado

pi(pipa) = 2 + 2 3,035 > pi(quadrado)
             = 2 2,828.

Comentário: O caminho da demonstração de que pi da pipa analisada nesse problema é o maior valor possível de pi de um quadrilátero convexo pode ser encontrado na referência [3].

 

Problema 3

Mostre que podemos inscrever a pipa do problema anterior em um triângulo de Reuleaux. Faça essa construção com régua e compasso.

Resposta:

Comentário: Outro exercício interessante seria o da inscrição de um hexágono em um triângulo de Reuleaux. O hexágono obtido dessa maneira não será regular (é equilátero, porém não é equiângulo). Interessantes extensões dessa ideia podem ser encontradas na referência [4].

 

Problema 4

Compare os valores de pi de um triângulo de Reuleaux e de um círculo, ambos calculados por meio de uma nova fórmula, indicada por  pi*:

pi*(curva) =

(4×área interior a curva) / (diâmetro de curva)2

Resposta:  pi*(triângulo de Reuleaux) =
                pi* (círculo) = π

Comentário: Pode-se demonstrar que as fórmulas pi (curva) e pi* (curva) são equivalentes. Desdobramentos dessa ideia são encontrados em [4].

 

Problema 5

Seria possível construir uma bicicleta cujas rodas tenham a forma de triângulos de Reuleaux?

Resposta: Sim. Ver o vídeo de uma bicicleta assim na referência [5].

Comentário: A principal dificuldade nessa construção é a de que, diferentemente de um círculo, o triângulo de Reuleaux não tem um centro fixo. Ver referência [6].

 

Nota da RPM

Expandindo a definição do triângulo de Reuleaux para a terceira dimensão, chama-se tetraedro de Reuleaux, ou tetraedro esférico, o sólido obtido a partir da intersecção de quatro esferas de raio  r centradas nos vértices de um tetraedro regular de aresta  r. Diferentemente do triângulo de Reuleaux, que é uma figura plana de largura constante, o tetraedro de Reuleaux é uma figura espacial que não possui largura constante. Esse resultado foi demonstrado pelo matemático suíço Ernest Meissner, em 1911, que também propôs os ajustes necessários ao tetraedro de Reuleaux para que ele se converta em um sólido de largura constante. Tal sólido é conhecido como tetraedro de Meissner.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÀFICAS

[1] Voloch, J. F. Curvas de largura constante. Matemática Universitária, n5, junho de 1987, IMPA,      RJ.
[2] http://www.youtube.com/watch?v=OdY9Y-6DsgU (consultado em 10/02/2013)
[3] Ball, Derek G. A generalisation of  p. The Mathematical Gazette, vol. 57, no 402, december 1973.
[4]Griffiths, D., Culpin, D. Pi-Optimal Polygons. The Mathematical Gazette, vol. 59, no 409,      october 1975.
([3] e [4] estão em inglês e podem ser obtidos gratuitamente no endereço http://www.jstor.org/      mediante um cadastro do visitante no site).
[5] http://www.youtube.com/watch?v=Xq4fNhtKjus 
[6] http://mathworld.wolfram.com/ReuleauxTriangle.html

([5] e [6] foram consultados em 10/02/2013)