Maria de Fátima Lins Barbosa de Paiva Almeida
UERJ

Introdução

Segundo Richard Feynman, vencedor do prêmio Nobel de Física em 1965, é importante cativar o aluno, de modo que ele sinta vontade de pesquisar e refletir sobre as questões abordadas em aula, visando-se à compreensão, e não apenas à memorização dos assuntos tratados. A brincadeira de adivinhação deste artigo tem por objetivo despertar o interesse do estudante para a investigação matemática, tanto no sentido de buscar explicação para a “mágica” apresentada, como na perspectiva de criar um ambiente propício a indagações e formulação de conjecturas, sem abrir mão dos recursos oferecidos pelas novas tecnologias. 

A atividade lúdica aborda propriedades operatórias dos números naturais, operações inversas,  números primos e critérios de divisibilidade, e  pode ser feita a partir do 6 ano do ensino fundamental, com a colaboração de quatro voluntários da turma e o auxílio de uma calculadora básica. 

 

Descrição da “mágica”

Na brincadeira, o professor pede para algum aluno escrever secretamente um número de três algarismos num pedacinho de papel.  Digamos que ele escolha o número  345.  Em seguida, pede-se para ele colocar em uma calculadora o número de  seis algarismos formado quando se repete o número de três algarismos escolhido. No exemplo mencionado, o aluno digitaria:  345345. 

O professor alega que irá “ler a mente” de modo a indicar operações de divisão,  fazendo com que, mais adiante,  um dos voluntários chegue ao  número que está escrito no papel.

Solicita-se  então que se passe a calculadora para o segundo  voluntário,  e que este divida o número de seis algarismos por  13,  passando-se a calculadora para um terceiro voluntário, que deverá dividir o resultado por  11,  e finalmente o último  voluntário dividirá ainda o resultado recebido por  7.  Nesse instante o professor diz: chega, já encontramos o número que está no papel!  A surpresa costuma ser geral, ao se constatar que o resultado obtido na tela, e revelado pelo último voluntário, o “aprendiz de feiticeiro”,  é de fato o que foi escrito no papel, no início da brincadeira.

Se algum estudante contestar a lisura do processo, peça a ele então que escreva um número de quatro algarismos num papelzinho. Digamos que ele escreva  5 723.  Analogamente ao caso anterior, ele digitará na calculadora:  57235723.   Solicite que ele passe a máquina  para um colega, que deverá dividir o número por  137.  Talvez cause algum espanto a divisão dar exata! A calculadora deve ser passada a outro colega e, com ar de mistério,  afirme que o resultado deve ser dividido por  73.  Diga então que é suficiente, que já se chegou ao número que estava no papel. Todos ficarão impressionados.

 

Por que o truque funciona?

Como em muitas brincadeiras análogas, a essência do truque consiste em disfarçadamente multiplicar e dividir o número colocado no papelzinho pelo mesmo valor não nulo.

Quando o aluno escreve, por exemplo,  o número  243  no papel, digitando portanto  na calculadora o número de  6  algarismos  243243,  observa-se que o valor digitado corresponde a  243  multiplicado por 1 001,  pois:

243243 = 243000 + 243 = 243 × 1000 + 243 = 243(1000 + 1) = 243 × 1001.

Como  13 × 11 × 7 = 1001,  quando solicitamos a divisão do número de seis algarismos sucessivamente por  13,  11  e  7,  isso equivale a dividir esse número por 1001,  e  partindo de  243243,  o resultado só pode ser  243.  Em suma, primeiro  243  foi multiplicado por  1001,  e em seguida dividido por  1001,  chegando-se ao número original  243.  A explicação relativa à  escolha inicial de um número arbitrário de três algarismos segue os mesmos passos.

Embora muito provavelmente os estudantes não notem, o número de oito algarismos inserido na tela da calculadora é tal que o número de quatro algarismos originalmente escrito no papelzinho fica multiplicado por  10 001.  Por exemplo, se o aluno escolhe o número  2 457,  ele deve digitar na calculadora:  24572457.  Claramente:

24 572 457 = 24 570 000 + 2 457
= 2 457 × 10 000 + 2 457
= 2 457(10 000 + 1) = 2 457 × 10001.

 

 

Em seguida, o número de oito algarismos é divido por  10 001,  por meio das divisões sucessivas por  137  e  73,  chegando-se de volta ao número escrito secretamente no papel, pois  10 001 = 137 × 73.    

 

Investigando um pouco mais...

Uma boa pergunta é saber como os fatores  137  e  73  poderiam ser encontrados. Isso nos remete ao problema de fatorar números, que pode ser muito difícil, mesmo com a ajuda de supercomputadores. A segurança do  famoso método de criptografia RSA, usado em sistemas bancários e na Internet, está fortemente ligada a essa extrema dificuldade (ver[1]).  Mas  10 001  ainda não é um número suficientemente grande, e seria até possível que nossos alunos mais curiosos descobrissem os fatores.  

Como o número termina em  1,  ele seria o produto de dois números, ou ambos terminados em  1,  ou  ambos terminados em  9,  ou de um número terminado em  3  com outro terminado em  7.  Estimamos também que um dos fatores deve ser menor ou igual a  100.  Se ambos fossem naturais maiores que  100,  ultrapassaríamos  10 001,  pois  101 × 101  é maior que  10 001.  Notemos que a raiz quadrada de 10 001  fica entre 100 e 101.  Essa observação ilustra o conhecido fato de que se um número natural não possuir nenhum outro divisor positivo além do um, que seja menor ou igual que sua raiz quadrada, então ele é primo (ver [5]).

Usando critérios de divisibilidade usuais (ver [4]), verifica-se que  10 001,  além de ser ímpar,  não é divisível nem por  3,  nem por  7,  e nem  por  11.  Eliminando do teste os candidatos  cuja decomposição em primos envolve algum desses fatores, bastaria, pacientemente, testar numa calculadora a divisibilidade pelos números:  31,  41,  61,  71,  19,  29,  59,  79,  13,  23,  43,  53,  73,  83,  17,  37,  47,  67,  97.  Constataríamos que  10 001  é divisível por  73  e o resultado da divisão é 137,  logo,  10 001 = 73 × 137.  É claro que o teste pode se encerrar logo que se constate que o número é divisível por  73,  não havendo necessidade de averiguar os outros valores.  É conveniente que os alunos verifiquem que  73  e  137  são números primos.

Se há um método tão objetivo para encontrar os fatores primos, qual seria o motivo da dificuldade em fatorar, mencionado anteriormente? O fato é que, para números grandes, esse processo, assim como outros alternativos, podem ser extremamente demorados, mesmo para uma máquina potente (ver[1]).

Podemos perguntar aos alunos se faz diferença, para a mágica, dividir o número de oito algarismos  primeiro por  137,  depois por  73,  ou fazer a divisão em outra ordem, ou seja, primeiro dividir por  73,  depois por  137.  Eles constatarão que a ordem  em que as divisões são feitas não altera o resultado, e é interessante que  justifiquem o fato com base nas propriedades das operações envolvidas.

Algumas perguntas podem surgir espontaneamente na turma, estimulando uma discussão sobre números primos e critérios de divisibilidade. Será que haveria uma adaptação da brincadeira para números com dois algarismos?  Por exemplo, colocando num papelzinho o número  52,  na calculadora deveria ser digitado  5252.  Verificamos que:

5 252 = 5 200 + 52 = 52 × 100 + 52
= 52(100 + 1) = 52 × 101.

 

 

Os alunos vão ficar motivados a fatorar o  101  e perceberão que se trata de um número primo, o que tiraria a graça da brincadeira, pois haveria grande  risco de o mágico ser desmascarado por alguém mais atento, quando sugerisse a divisão por  101.

Será que a “mágica” pode ser adaptada para números de cinco algarismos? Por sorte, sim, pois o número  100 001  é divisível por  11.  Verificamos que 100 001 = 11 × 9 091.

Quando a fatoração de um número natural possui até dois fatores primos (podendo ser iguais ou não), esse número é chamado de 2-quase-primo (ver [5]).  Assim,  100 001  é exemplo de um número 2-quase-primo, pois tanto  11,  como  9 091,  são primos.   Um número é dito  p-quase-primo  quando se decompõe em no máximo  p  fatores primos não necessariamente distintos, sendo  p 1.  Por exemplo,  1 001, 100 001 e 11  são 3-quase-primos, pois não há mais de três fatores primos na fatoração de cada um desses números.

Os números  11  e  100 001  são 2-quase-primos. O conjunto dos números 1-quase-primo coincide com o conjunto dos números primos.

Dependendo da série em que a brincadeira for feita, outros questionamentos podem surgir.   Uma possível pergunta seria: sendo  k  inteiro positivo, para que  valores  de  k,   10k + 1  é composto?   A expressão dá um número primo para  k = 1,  e   k = 2,  e um número composto  para  k = 3  e   k = 4.  Para  k  ímpar,  k > 1,  usando-se o critério de divisibilidade por  11,  verifica-se que os números  10k + 1  são compostos.  E quando  k  é um número par superior a dois, será que  existe algum número primo na forma  10k + 1?

Observamos na tabela a seguir que, em relação ao número de dígitos de cada um dos números apresentados, há relativamente poucos primos na fatoração. Olhando a lista de fatorações, é possível conjecturar que  números da forma  10k + 1  são  k-quase-primos, para todo  k.  Será que isso é  mesmo verdade?

10k + 1 fatoração
101 + 1 11
102 + 1 101
103 + 1 7 × 11 × 13
104 + 1 73 × 137
105 + 1 11 × 9091
106 + 1 101 × 9091
107 + 1 11 × 90901
108 + 1 17 × 5882353
109 + 1 7 × 11 × 13 × 19 × 52579
1010 + 1 101 × 3541 × 27961
 
10k + 1 fatoração
1011 + 1 112 × 23 × 4093 × 8779
1012 + 1 73 × 137 × 99990001
1013 + 1 11 × 859 × 1058313049
1014 + 1 29 × 101 × 281 × 121499449
1015 + 1 7 × 11 × 13 × 211 × 241 × 2162 × 9091
1016 + 1 353 × 449 × 641 × 1409 × 69857
1017 + 1 11 × 103 × 4013 × 21993833369
1018 + 1 101 × 9901 × 999999000001
1019 + 1 11 × 909090909090909091
1020 + 1 73 × 137 × 1676321 × 5964848081

O conceito  de número  p-quase-primo  mostrou-se útil na abordagem da célebre conjectura de Goldbach, de que todo número par maior do que  2 pode ser escrito como a soma de dois primos. Um dos melhores resultados conseguidos até agora, obtido pelo matemático chinês Jingrun Chen (1933-1996),  é que números pares suficientemente grandes podem ser escritos como a soma de um número primo com um número 2-quase-primo (teorema de Chen).   (ver [5]).    

Paralelamente, Chen também obteve um resultado importante relacionado à famosa conjectura  da existência de uma infinidade de primos gêmeos: Se  p  é primo e  p + 2  também é primo, dizemos que  p   p + 2  são primos gêmeos. Por exemplo,  11  e  13  são primos gêmeos.  Chen  demonstrou que há uma infinidade de números primos  p,  tais que  p + 2  é 2-quase-primo (ver[5]).


Comentários finais

As atividades de investigação em sala de aula propiciam que os alunos levantem questões e façam suas próprias conjecturas.  É claro que isso não dispensa o estudo do que já foi produzido anteriormente, ao contrário, a intenção é que os estudantes fiquem ávidos por esses conhecimentos. A ideia é que percebam, desde cedo, que o desenvolvimento da Matemática passa em grande parte por uma construção coletiva de médio e longo prazo.   

Será que vale a pena abordar pontos que não serão de imediato totalmente esclarecidos, ou falar de questões em aberto, para alunos ainda no ensino fundamental? Lembremos do caso emblemático de Andrew Wiles,  que ainda menino, com 10 anos, conheceu e se encantou, em  1963, com a então conjectura conhecida como “O último teorema de Fermat” (ver [2] e [6]). Apesar da simplicidade do enunciado, o problema se revelou difícil e interessante o suficiente para  atrair diversos grandes matemáticos ao longo de mais de 350 anos, muitos deles dando contribuições importantes para sua futura solução,  que foi realizada justamente pelo próprio Andrew Wiles,  então professor de Princeton,  em 1995.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] Coutinho, S. C. Números inteiros e criptografia RSA. Rio de Janeiro: Impa/SBM, 1997.
[2] Hefez, A. Curso de Álgebra. Volume 1. Coleção Matemática Universitária. Rio de Janeiro: Impa,       2012.
[3] Factorizations of 100...001. http://homepage2.nifty.com/m_kamada/math/10001.htm
[4] Ribeiro, H. S. e Táboas, C. M.G. Sobre critério de divisibilidade. RPM 6. Rio de Janeiro, 1985.
[5] Ribenboim, P. Números primos: mistérios e recordes. Coleção Matemática Universitária. Rio de       Janeiro: Impa, 2001.
[6] Singh, S. O último teorema de Fermat. Rio de Janeiro: Record, 1997.