Elisandra Bar de Figueiredo
UDESC
Maiara Francine Boullaf
Mestranda UNICAMP
Roger Miarka
UNESP

 

Introdução

A evolução da Matemática frequentemente é aguçada por questionamentos e indagações que requerem novos estudos. No caso especial da Geometria, essa situação se manifesta já na Grécia antiga com o surgimento de três problemas que exigiram muito tempo de estudo até que sua solução final fosse encontrada. Hoje eles são conhecidos como os problemas clássicos da Antiguidade, a saber:

A duplicação do cubo: construir o lado de um cubo cujo volume seja o dobro do volume de um dado cubo. (Tomando-se como unidade de comprimento a medida da aresta do cubo dado, o problema se reduz à construção de um segmento de medida a partir de um segmento unitário.)

A trissecção de um ângulo: dividir um ângulo arbitrário em três partes iguais.

A quadratura do círculo: construir o lado de um quadrado cuja área seja igual à área de um dado círculo. (Tomando-se como unidade de comprimento o raio do círculo dado, o problema se reduz à construção de um segmento de medida a partir de um segmento unitário.)

É importante esclarecer que as construções solicitadas nesses problemas devem necessariamente se restringir à utilização (numa quantidade finita de vezes) dos chamados instrumentos euclidianos: uma régua não graduada, isto é, sem marcas e um compasso caracterizado pelo fato de que, ao levantar um de seus braços do papel, ele se desmonta. Com a régua euclidiana é permitido tão somente desenhar a reta passando por dois pontos dados enquanto o compasso euclidiano é usado apenas para traçar a circunferência que passa por um dado ponto e que tem um segundo ponto dado como centro (veja Nota da RPM no final do artigo).

Apesar dos esforços de muitos matemáticos em resolver tais problemas (alguns amadores tentam até hoje!), foi somente no século XIX, mediante argumentos algébricos, que se estabeleceu de modo definitivo a impossibilidade de resolvê-los.

Não conseguindo resolver os problemas clássicos sob as severas condições impostas aos instrumentos euclidianos, os gregos buscaram descobrir novos meios que os levassem a uma solução. Por exemplo, constataram que a duplicação do cubo podia ser resolvida com a intersecção ou de duas parábolas ou de uma hipérbole equilátera com uma parábola. Ainda nesse contexto, foram realizados grandes avanços na área da Geometria com a descoberta de diversas curvas exóticas, tais como a conchoide de Nicomedes, a cissoide de Diocles e a espiral de Arquimedes. Para maiores detalhes, veja Carvalho (2004).

Neste artigo focaremos as atenções numa curva que, de acordo com Papus de Alexandria, é uma das mais antigas, possivelmente a primeira depois da reta e da circunferência. Ela foi usada primeiramente por Hípias de Elis, que nasceu por volta de 460 a.C., para a solução da trissecção do ângulo e posteriormente por Dinostrato, que viveu por volta de 350 a.C., para o problema da quadratura do círculo. Por isso, nos dias de hoje ela é referida na literatura tanto por trissetriz quanto por quadratriz.

As seguintes indagações surgem de modo natural: de que forma a quadratriz resolve o problema clássico da quadratura do círculo? Por que, mesmo após essa solução, quadrar um círculo utilizando os instrumentos euclidianos é impossível? A busca por essas respostas constitui nosso objetivo primordial e queremos fazê-lo com uma linguagem acessível que apresente ao leitor a beleza que a Matemática traz em sua essência.       

 

A quadratriz

Construindo a quadratriz

O processo de construção dessa curva é cinemático, pois ela é obtida pelos pontos de intersecção de duas semirretas em movimento uniforme. Sua construção pode ser descrita da seguinte maneira: sejam OA e OB dois raios perpendiculares de uma circunferência de centro  O  e raio  R;  considere a semirreta  r   de origem  B  e que é paralela a OA como na figura 1 abaixo, e a semirreta  s  de origem  O  e que passa por  B.  Imagine-se, então, que, a partir de um mesmo instante, a semirreta  r  comece a se deslocar para baixo uniforme e paralelamente em direção a OA e que a semirreta  s  comece a girar no sentido horário uniformemente em torno de  O  também na direção de OA. Suas velocidades são tais que os dois movimentos terminam simultaneamente com  e  s  chegando juntos em OA. A quadratriz é a curva formada pelos pontos de intersecção de cada posição da semirreta  com a respectiva posição da semirreta  s.


figura 1
Um ponto da quadratriz obtido pela
interseção de uma mediatriz e uma bissetriz 
        

Observamos nas figuras 1 e 2 que vários pontos da quadratriz (não todos!) podem ser obtidos com os instrumentos euclidianos por meio da intersecção de mediatrizes e de bissetrizes.

Notamos ainda que o ponto  X  assinalado na figura 2 não está definido pelo processo cinemático acima descrito. Cada ponto da quadratriz é determinado como a intersecção de duas semirretas. Contudo, essas semirretas coincidem no final do processo e, portanto, não se intersectam num único ponto. Tal ponto  X  corresponde, na verdade, à posição limite dos pontos da quadratriz quando os dois movimentos terminam.


figura 2
Vários pontos da quadratriz obtidos
pela interseção de mediatrizes e bissetrizes

 

Propriedades da quadratriz

Como o movimento da semirreta  r  tem velocidade constante, a distância por ela percorrida é proporcional ao tempo gasto no seu percurso. Analogamente, a amplitude do arco  BA  é proporcional ao tempo gasto no percurso da semirreta  s.  Como os dois movimentos começam e terminam simultaneamente, os tempos gastos por  r  e por  s  são iguais e, portanto, existe uma proporcionalidade entre a distância percorrida por  r  e a amplitude angular percorrida por  s.

Observe que essa propriedade da quadratriz reduz o problema da trissecção de um ângulo ao problema de dividir um segmento em três partes iguais. Por exemplo, as paralelas a OA que trissectam o segmento OC na figura 2 intersectarão a quadratriz nos pontos  U  e  V  tais que

m(AOU) = m(UOV) = m(VOP) = m(AOP)

Com referência à figura 3 abaixo, temos que um ponto arbitrário  (x, y)  da quadratriz satisfaz a relação = , ou seja, q = . Mas tanq = , de modo que a equação cartesiana da quadratriz é dada por

x = = ycot(), 0 < y < R.


figura 3
Relação entre as coordenadas de um ponto
qualquer da quadratriz

A grande contribuição de Dinostrato foi perceber que a solução do problema da quadratura do círculo estava relacionada com o cálculo da distância  OX.  Por uma questão de simplicidade, essa distância será aqui deduzida usando-se as técnicas do Cálculo Diferencial, em especial o limite fundamental = 1. No Capítulo VII do primeiro volume de Heath (1981), encontramos esse cálculo como efetuado pelo matemático grego.

Considerando-se a equação cartesiana da quadratriz, o valor da distância  OX  é igual ao valor de  x  quando  y  se aproxima de  0.  Assim,

OX = =

Dessa forma, com o auxílio da quadratriz, é possível a construção de um segmento cujo comprimento é igual a  2R/π.

 

O problema da quadratura do círculo

A possibilidade

Dados três segmentos de medidas  ab  e  c,  é bem conhecida a construção, com os instrumentos euclidianos, do segmento de comprimento    Basta posicionar os segmentos dados como na figura 4 abaixo, com  AC  e  BX  paralelos entre si. Pelo Teorema de Tales, temos  , que equivale à expressão desejada.


figura 4
Construção de ab/c

Em particular, dada uma unidade  1,  podemos obter, com os instrumentos euclidianos, os segmentos de comprimentos  ab, e , tomando-se, na construção acima,  c = 1,  b = 1  e  ab = 1,  respectivamente.        

Outra construção conhecida refere-se à obtenção, com os instrumentos euclidianos, do segmento de comprimento onde são dados uma unidade  1  e um segmento de medida  k.

Na figura 5 abaixo os segmentos AB e BC têm medidas  k  e  1,  respectivamente, e a circunferência de diâmetro AC intersecta a perpendicular à AC em  B  nos pontos  D  e  E.  Utilizando-se as relações métricas no triângulo retângulo DACD,  obtemos BD = .


figura 5
Construção da raiz quadrada

Retornando ao problema da quadratura do círculo, vimos que a quadratriz nos fornece um segmento de comprimento . Dada uma unidade  1,  as construções acima descritas nos permitem obter sucessivamente, com os instrumentos euclidianos, os segmentos de comprimentos  p/2R, p e

 

A impossibilidade

Um dos argumentos que certamente invalidam a solução do problema da quadratura do círculo usando a quadratriz é o fato de que, para construir o segmento OX de comprimento , são necessárias infinitas operações gráficas com os instrumentos euclidianos, uma vez que o ponto  X  corresponde a uma posição limite da quadratriz. E, nas regras estabelecidas para as construções euclidianas, esse fato é inaceitável.

Outra crítica levantada por alguns autores é que o principal impasse para a construção da quadratriz é saber sincronizar as velocidades, o que equivale a conhecer a relação entre o perímetro do círculo e o seu diâmetro. Porém, conhecer tal relação já seria resolver o problema da quadratura do círculo.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Carvalho, João Pitombeira de. Os três problemas clássicos  da Matemática grega. In: Bienal da         Sociedade Brasileira de Matemática, Salvador, 2004.
Heath, Sir Thomas L. A History of Greek Mathematics (2 volumes), Dover (reprint), 1981.

 

Nota da RPM

Com o chamado compasso moderno, pode-se traçar a circunferência de centro dado e raio igual ao comprimento de um dado segmento. Assim, a diferença essencial entre o compasso euclidiano e o compasso moderno seria que este último permite explicitamente o transporte de distâncias e o primeiro não. Por conta disso, o leitor poderia julgar que o compasso moderno é mais “poderoso” que o euclidiano. No entanto, essa impressão é falsa! Mostraremos a seguir que, na presença da régua euclidiana, o compasso euclidiano também efetua o transporte de distâncias (evidentemente com um número maior de operações gráficas), de modo que, nessas condições, eles são equivalentes.

Problema. Dados um ponto  A  e um segmento BC, construir, com os instrumentos euclidianos, um segmento AF tal que AF @ BC.

Solução. Trace, com o compasso euclidiano, a circunferência de centro  A  e que passa por  B  e a circunferência de centro  B  e que passa por  A.  Sendo  D  um dos pontos de intersecção dessas circunferências, sabemos que DABD   é um triângulo equilátero. Seja  E  o ponto de intersecção da circunferência de centro  B  e que passa por  C  com a semirreta tal que  B  está entre  D  e  E.  Finalmente, sendo  F  o ponto de intersecção da circunferência de centro  D  e que passa por  E  com a semirreta , temos AF BC. Com efeito, como  DA + AF = DF = DE = DB + BE = DA + BC,  segue que  AF = BC.