Responsável
Sérgio Roberto Nobre
UNESP - Rio Claro

 

A GEOMETRIA FORA DA GRÉCIA

Angelica Raiz Calabria

A Geometria é uma das áreas da Matemática mais antigas e foi utilizada pelas primeiras civilizações em atividades do dia a dia para resolver problemas na medição de áreas de terras ou na construção de obras arquitetônicas e de engenharia. Talvez seja essa a origem da palavra Geometria que, em grego, significa “medir terras” (geo – terra / métron – medir). Após alguns séculos, a civilização grega percebeu que os conhecimentos geométricos não eram apenas de utilidade prática, mas também poderiam ser compreendidos por meio de uma teoria, ou seja, foi a partir dos gregos que a validade de conhecimentos desse ramo da Matemática começou a ser demonstrada utilizando-se o raciocínio lógico-dedutivo. Será que os gregos chegariam a tais resultados se não fossem os registros deixados pelos povos antigos? Queremos com essa pergunta começar nossa história, contando um pouco do que foi a Geometria dessas civilizações e a maneira com que abordavam alguns pensamentos geométricos.

 

AS ANTIGA CIVILIZAÇÕES

As primeiras civilizações surgiram entre 3500 e 500 a.C., próximas a regiões de vales de rios. Dentre essas civilizações, citamos o Egito, a Mesopotâmia, a China e o Vale do Indo, todas dependentes da agricultura, de sistemas de irrigação e da astronomia, atividades que influenciaram o surgimento da Matemática nessas culturas. Apresentaremos, a seguir, alguns exemplos do uso da Geometria por esses povos.

 

ANTIGO EGITO E O CÍRCULO

O Egito está situado no nordeste da África, entre os desertos do Saara e da Núbia, e é cortado pelo rio Nilo. Sua civilização tinha como forma de escrita o sistema hieroglífico (sinais pictográficos que representavam objetos). Esse sistema foi desenvolvido pelos escribas e registrado em papiros, dos quais os mais importantes são o Papiro Rhind e o Moscou, que datam aproximadamente do século XVIII a.C. Os escribas utilizavam a Matemática para resolver questões relativas à medição de terras, ao cálculo de impostos e do volume dos depósitos de provisões, a projetos de obras arquitetônicas, etc. A Geometria surgiu da necessidade de calcular áreas territoriais, volumes de celeiros e pirâmides.

Os celeiros eram em formato de cilindros circulares retos. Para calcular o volume de tais celeiros, fazia-se necessário que os antigos egípcios encontrassem um método para determinar a área do círculo base. No Papiro Rhind existem alguns problemas relativos ao cálculo da área do círculo. Citamos o Problema 50, cuja resolução nos mostra uma das maneiras usadas pelos egípcios para calcular a área do círculo.

Problema 50: “Exemplo de um corpo redondo de diâmetro 9. Qual é a área?”

Solução apresentada pelo escriba: Remova 1/9  do diâmetro, o restante é  8.  Multiplique 8  por  8;  perfaz  64. Portanto, a área é  64.

Desse problema deduzimos que o método usado pelo escriba era: “Subtraia do diâmetro sua nona parte e eleve o restante ao quadrado. Esta é sua área”. Ou seja,

sendo  o diâmetro do círculo.  Não se sabe, porém, como os egípcios chegaram a tal fórmula;  percebemos que eles não utilizavam o comprimento da circunferência para calcular a área do círculo e tentavam calcular essa área como a de um quadrado, o que nos faz inferir uma tentativa de quadrar o círculo.

O conhecimento geométrico da civilização egípcia era grande: construíram grandes obras arquitetônicas, como as pirâmides, além de construírem barcos, barragens e canais. Também se encontra Geometria nas construções de suas estátuas, pórticos, templos, muralhas e lagos.

 

ANTIGA ÍNDIA E O TRAPÉZIO ISÓCELES

A civilização indiana surgiu aproximadamente no quarto milênio a.C., no vale do Indo, do qual originou-se a antiga Índia por volta de 2500 a.C. O bom planejamento das cidades da antiga Índia e as suas cerâmicas com decorações em forma de círculos que se interceptam, quadrados, triângulos unidos pelos vértices, etc. mostram que seus habitantes tinham conhecimentos de Geometria.

Esse conhecimento geométrico dos indianos também aparece para atender às necessidades dos rituais religiosos, sendo encontrado nos Sulbasutras (manuais sobre construção de altares), que  continham regras para construção de altares de sacrifício. As figuras geométricas para formar os altares eram: triângulos, quadrados, retângulos, trapézios, círculos e semicírculos.

Os Sulbasutras mais importantes são o Baudhayana (~800 a.C.), o Manava (~750 a.C.), o Apastamba (~600 a.C.) e o Katyayana (~200 a.C.). Neles encontramos procedimentos para construir diferentes formas de altar, e em algumas dessas construções era utilizado o trapézio. No Apastamba Sulbasutra é apresentado um resultado sobre a área de um vedi (altar empregado nos sacrifícios em forma de trapézio isósceles), com 36 unidades de altura e lados paralelos de 30 e 24 unidades, possuindo 972 unidades quadradas. Para chegar a essa área, os indianos procederam da seguinte forma (observar a figura a seguir):

Construa uma perpendicular a BC, passando pelo ponto  D.  Essa perpendicular intercepta  BC  em  E; a distância de  E  a  L  é igual a 12 unidades.
Gire  DEC  e leve-o para o outro lado, fazendo coincidir os pontos  D  com  B  e  C  com  A,  de modo que o ponto  A  fique entre  F  e  D.
FDEB  é um retângulo que tem a mesma área do trapézio  ADCB.  Logo,
área(ADCB) = área(FDEB) = 36 × 27 = 972.

Deduzimos, a partir dessa solução, a fórmula geral para a área de um trapézio isósceles como , onde  B  é a base maior e  b  é a base menor (figura 2), pois  área(ADCB) = área(FDEB) = (x + b)h.  Mas x = , logo,

área(ADCB) = .

A solução utilizada pelos indianos é o método de construir um retângulo de mesma área que um trapézio dado, manipulando as figuras geométricas para encontrar a área desejada. Ainda com relação ao trapézio, o trabalho mais antigo é o Jyotiskarandaka, por volta do século IV ou VI, sobre o cálculo dos diâmetros de uma montanha, de altura qualquer, na forma de um tronco de cone. Como as seções verticais desse sólido são trapézios isósceles, para encontrar os diâmetros basta calcular as bases de qualquer uma dessas seções.

 

OS BABILÔNIOS E O TEOREMA DE PITÁGORAS

A civilização mesopotâmica que é provavelmente a mais antiga do mundo, começou por volta de  3500 a.C. A Mesopotâmia, atual Iraque, é uma faixa de terra formada entre os rios Tigre e Eufrates. Essa civilização criou um meio de escrita e a deixou registrada em tábulas de argila com o uso de agulhas. Muitas dessas tábulas contêm problemas e soluções matemáticas. Uma das mais famosas é a Tábula Plimpton 322, 1900 – 1600 a.C., na qual se encontra o mais antigo registro sobre o teorema de Pitágoras, contendo uma tabela de ternas pitagóricas.

Tábula Plimpton 322

Apesar de o teorema ter sido batizado com o nome de Pitágoras, essa tábula nos mostra que os antigos babilônios já o conheciam cerca de mil anos antes desse matemático grego. Além disso, o teorema também era conhecido pelos indianos e chineses.

Os babilônios possuíam um método sistemático para encontrar ternas pitagóricas, bem conhecidas  na época, e as utilizavam nas soluções de problemas geométricos. Destacamos, a seguir, um problema que aparece no texto babilônico BM 85196, que se refere a triângulos retângulos, utilizando-se o teorema de Pitágoras na sua resolução. A tradução do problema é:

Uma viga de madeira está apoiada contra uma parede. O comprimento da viga é 30 unidades. Se o topo da viga escorrega 6 unidades, quanto a base escorrega no solo? Reciprocamente, se ela escorrega 18 unidades sobre o solo, quanto ela escorrega para baixo?

Resolução (essa solução é uma tradução para a linguagem atual):

Na primeira parte, temos:  d = 30,  u = 6  e  y = 30 – 6 = 24.
Pelo teorema de Pitágoras,
d2 = x2 + y2  →  302 = x2 + 242  →  x2 = 302 – 242  →  x = 18.
Na segunda parte, temos:  d = 30,  x = 18  e  y + u = 30.
Pelo teorema de Pitágoras,  x2 + y2 = 302 → 182 + y2 = 302y2 = 302 – 182
y
= 24 → u = 6.

A Matemática babilônica não estava exclusivamente focada em aplicações práticas. Por exemplo, em um outro problema babilônico são dadas as medidas dos lados e a base de um triângulo isósceles e pede-se para encontrar o raio do círculo circunscrito ao triângulo. Nesse exemplo, nota-se que os babilônios sabiam que no triângulo isósceles a reta que liga o vértice ao ponto médio da base é perpendicular à base e, em um triângulo isósceles, a altura e a mediana relativas à base coincidem. Percebemos que os babilônios, apesar de utilizarem o teorema de Pitágoras para resolver tal problema, visavam, também, solucionar problemas teóricos.

O conhecimento geométrico dos babilônios também estava relacionado com regras gerais para as áreas de retângulos, triângulos retângulos, triângulos isósceles e trapézios com um lado perpendicular à base.

 

ANTIGA CHINA E O VOLUME DA PIRÂMIDE

De acordo com algumas lendas, a China surgiu com o imperador Huang Di no ano de 2689 a.C., mas alguns relatos mostram que já havia uma civilização anterior, a Dinastia Shang, na qual poderia ter se desenvolvido uma Matemática básica. Depois de muitas dinastias, o império chinês se expandiu e ocorreu um rápido desenvolvimento na área das ciências, principalmente com a Matemática, com a construção de calendários e no estudo da astronomia.

Dois dos mais antigos e importantes textos matemáticos chineses são o Zhoubi suanjing (A Aritmética Clássica do Gnomon e os Caminhos Circulares do Paraíso), um arsenal de conhecimentos científicos relacionados à astronomia, e o Jiuzhang Suanshu (Os nove capítulos sobre a Arte Matemática).

O primeiro data do período da Dinastia Zhou (1046 a.C. – 256 a.C.), e teve material compilado e adicionado até a Dinastia Han (202 a.C. – 220 d.C.). Trata-se de uma coleção anônima de 246 problemas, cada um com resposta numérica e com o algoritmo matemático correspondente. Esse livro contém uma das primeiras provas registradas do Teorema de Pitágoras.

O Jiuzhang Suanshu, o mais antigo trabalho específico de Matemática na China, contém problemas relacionados ao dia a dia, distribuídos em nove capítulos.

No capítulo 5 intitulado Shang gong (Consultando construções) encontram-se os cálculos de construções e de volumes de vários sólidos, entre eles os de pirâmides.

Para calcular o volume dos sólidos, os chineses utilizavam quatro sólidos elementares: o lifang (cubo), o qiandu, o yangma e o bienuan, obtidos do seguinte modo:

Interceptar o lifang com um plano que contém sua diagonal, obtendo dois prismas (qiandu).


lifang
                               qiandu


Interceptar o qiandu com o plano determinado pela diagonal da face lateral e da face não perpendicular à base, obtendo o yangma e o bienuan.


1 qiandu = 1 yangma + 1 bienuan


Interceptar o yangma com um plano que contém a diagonal da base e o vértice que não pertence à base, obtendo dois bienuan.


1 yangma = 2  bienuan

Dessa forma,

Vol (yangma) = Vol (qiandu) – Vol (bienuan)
Vol (yangma) = 2 Vol (bienuan)
Vol (qiandu) = 3 Vol (bienuan)
Vol (lifang) = 2 Vol (qiandu) = 6 Vol (bienuan) = 3 Vol (yangma)

Assim,
Vol (yangma) = 1/3 Vol (lifang) = a3/3, sendo  a  o lado do lifang.

Ou seja, temos o volume de uma pirâmide de base quadrada de lado  e altura  a.  Do mesmo modo, se tivermos um paralelepípedo de lados  a e b  e altura  h,  é possível decompor o paralelepípedo de forma que  Vol (pirâmide) = abh/3.

Acabamos de conhecer um dos métodos chineses para encontrar a fórmula geral do volume da pirâmide. Existem outros métodos, como o do comentador do Jiuzhang Suanshu Liu Hui, que utiliza o “método de exaustão” para encontrar essa fórmula.

No capítulo nove de Jiuzhang Suanshu podem-se encontrar discussões sobre o triângulo retângulo, o teorema de Pitágoras e problemas relacionados a semelhanças de triângulos retângulos.

O Jiuzhang Suanshu foi complementado por vários matemáticos chineses, os mais famosos incluindo Liu Hui (em 263 d.C.) e Li Chunfeng (em 656d.C.). A edição publicada pelo governo Song do Norte em 1084 foi o primeiro livro de Matemática do mundo.  Atualmente está traduzido em várias línguas, incluindo japonês, russo, alemão, inglês e francês, e tornou-se a base para a Matemática moderna.

 

CONSIDERAÇÔES FINAIS

Pôde ser constatada, brevemente, no decorrer deste artigo a importância da Geometria nas antigas civilizações, ou seja, uma Geometria concebida bem antes da que foi elaborada pela cultura grega.

Não podemos descartar a beleza do trabalho realizado pelos gregos e o avanço que proporcionaram à Geometria, mas, para chegarem a isso, é bem possível que se apoiaram nesses primeiros pensamentos geométricos de algumas dessas civilizações.

Portanto, esses povos não ocidentais contribuíram com o desenvolvimento da Geometria e com determinados descobrimentos matemáticos, o que os fazem merecer lugar de destaque na História da Matemática.

Nota: As informações, procedimentos e figuras contidas neste artigo podem ser encontrados na tese de doutorado de Gaspar, M. T. J., defendida em 2003, intitulada O desenvolvimento do pensamento geométrico em algumas civilizações do mundo e a formação de professores.