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Neste número responderei algumas cartas que me foram enviadas por leitores da RPM, com dúvidas cujos esclarecimentos podem ser úteis a muitas Outras pessoas.
Esta
pergunta foi feita por Francisco Antonio M. da Costa, de Maranguape, CE. Quando estudei Trigonometria no colégio, meu professor ensinou que seno vem do latim sinus, que significa seio, volta, curva, cavidade (como nas palavras enseada, sinuosidade). E usou o gráfico da função, o qual é realmente bastante sinuoso, para justificar o nome. Mais tarde vim a aprender que não é bem assim. Sinus é a tradução latina da palavra árabe jaib, que significa dobra, bolso ou prega de uma vestimenta. Isto não tem nada a ver com o conceito matemático de seno. Trata-se de uma tradução defeituosa, que infelizmente durou até hoje. A palavra árabe adequada, a que deveria ser traduzida seria jiba, em vez de jaib. Jiba significa a corda de um arco (de caça ou de guerra). Uma explicação para esse erro é proposta por A. Aaboe (“Episódios da História Antiga da Matemática”, pág. 139): em árabe, como em hebraico, é freqüente escreverem-se apenas as consoantes das palavras; o leitor se encarrega de completar as vogais. Além de “jiba” e “jaib” terem as mesmas consoantes, a primeira dessas palavras era pouco comum, pois tinha sido trazida da Índia e pertencia ao idioma Sânscrito. Evidentemente, quando se buscam as origens das palavras, é quase inevitável que se considerem várias hipóteses e dificilmente se pode ter certeza absoluta sobre a conclusão. Há outras explicações para a palavra seno. Uma delas é de que se trata da abreviatura s. ins. (semi-corda inscrita).
Quanto ao termo tangente, ele tem significado claro, pois tgx = t / r, onde t é o segmento da tangente compreendido entre a extremidade do raio (um dos lados dos ângulo x) e o prolongamento do outro lado. A secante do ângulo x é definida pela fórmula sec x = s / r, onde s é a hipotenusa do triângulo retângulo cujos catetos são o raio r e o segmento de tangente t. Como o segmento de retas corta o círculo (secare = cortar em latim), a denominação secante se justifica. Finalmente, cosseno, cotangente e cossecante são simplesmente o seno, a tangente e a secante do arco complementar. O professor Francisco Antonio M. da Costa também quer saber por que o círculo trigonométrico tem raio 1. Normalmente as pessoas respondem a esta pergunta dizendo o seguinte: nas definições dadas acima para tangente e secante (bem como nas definições de seno e cosseno, que não demos aqui), figura sempre o raio r do círculo no denominador. Se supusermos r = 1, as fórmulas se simplificarão bastante. Tal
explicação deve ser complementada com a observação de que tomar r = 1
corresponde a escolher o (comprimento do) raio como unidade de medida.
Como todas as linhas trigonométricas são quocientes entre duas medidas,
o valor de cada uma delas se mantém inalterado quando se passa de uma
unidade para outra. Por isso não faz mal convencionar No fundo, o que ocorre é que na Geometria Euclidiana, embora haja uma unidade natural para medir ângulo (o radiano), não há uma unidade de comprimento que possa ser escolhida de modo canônico, isto é, independentemente de escolhas arbitrárias. Isto contrasta com a Geometria Hiperbólica (de Lobatchevski e Bolyai), na qual existe uma medida natural para os comprimentos, e portanto para áreas e volumes.
Amphilophio Azevedo Netto, de São Paulo, SP escreve com a seguinte dúvida: “No número 3 da RPM, dois autores (Zoroastro Azambuja Filho e Geraldo Ávila) dizem que podemos considerar faces de um poliedro num mesmo plano e também que podemos considerar que todas as faces do poliedro P são triângulos.” “Com esse raciocínio, poderíamos dizer que um cubo tem 12 faces? ou seriam 24? Como falar em número de faces de um poliedro se sempre podemos decompô-las em triângulos (se não o forem) ou em triângulos menores (se já forem triângulos)?” “Afinal, qual é a definição de poliedro?” A resposta a estas indagações deve necessariamente começar pela última. Nada melhor, então do que repetir a definição dada pelo Professor Azambuja na RPM n.º 3 (pág. 15): “Um poliedro é uma reunião finita de polígonos convexos, chamados as faces desse poliedro. Os lados desses polígonos chamam-se as arestas do poliedro e os vértices dos polígonos são também chamados os vértices do poliedro. Exige-se ainda que a interseção de duas faces quaisquer do poliedro seja uma aresta comum a essas faces, ou um vértice comum, ou seja vazia A definição acima significa, em particular, que um poliedro só fica determinado quando são especificadas as suas faces. Normalmente, quando falamos em “cubo”, queremos nos referir ao poliedro formado por seis faces quadradas, com doze arestas, todas do mesmo comprimento. Se traçarmos em cada face do cubo C uma diagonal e assim a decompusermos em dois triângulos, obteremos um novo poliedro P com doze faces (triangulares), dezoito arestas e o mesmo número (oito) de vértices. Este novo poliedro P é uma subdivisão do cubo C. Estritamente falando, os poliedros C e P são diferentes. A relação de Euler para o primeiro poliedro é 8 - 12 + 6 = 2 e para o segundo é 8 – 18 + 12 = 2. Um modo de evitar dúvidas como a do Sr. Amphilophio Azevedo Netto é definir um poliedro como uma coleção finita de polígonos convexos, regularmente situados, na forma da definição que citamos acima. (Ver por exemplo, meu artigo na “Matemática Universitária” n.º 2, pág.s 57-74). Procedendo assim, fica claro que quando se dá um poliedro não pode haver ambigüidade sobre quais são as suas faces, pois estas são explicitamente especificadas.
A Professora Mansa Girotti, de Jundiaí, SP., nos escreve: Na 4.ª Olimpíada Brasileira de Matemática ocorreu a seguinte questão Questão n.º 5 — Construa geometricamente o segmento de reta de comprimento , conhecendo-se os segmentos a e b. A questão me foi proposta por um aluno que participou da prova. Acabei encontrando a seguinte solução: (i) Fatoro a soma a4 + b4 da seguinte forma
Os segmentos m, n e c são construtíveis com régua e compasso por meio do triângulo ABC.
Nossa controvérsia começou quando um colega apresentou uma solução onde admitia como dado um segmento unitário. Com auxílio do segmento unitário ele constrói a2 e b2, em seguida x2 tal que (x2)2 = (a2)2 + (b2)2. Novamente usando o segmento unitário constrói x. A pergunta que lhe colocamos é: - É legítimo, nas condições do problema, admitir um segmento unitário? Julgamos que a questão possa interessar a outros colegas do magistério”. A fim de tornar mais clara a discussão deste assunto, reproduzimos agora outra solução, de autoria de Fábio A. Barreto, de São Paulo, SP, a qual faz uso do segmento unitário. (Retirada do “Noticiário da Sociedade Brasileira de Matemática”, Outubro de 1982, pág. 56.)
Usando a equação (I) e o Teorema de Pitágoras, construímos x2 a partir de a2 e b2. Falta obter x a partir de x2, usando o processo inverso da construção de a2 a partir da: .
Para começar, devemos analisar o enunciado da questão. “Construa geometricamente” significa “com auxílio de régua (sem marcas) e compasso”.Os segmentos que a Professora Marisa, em sua elegante solução, chama de “construtíveis” são aqueles que podem ser obtidos a partir dos segmentos dados a e b, por meio de régua e compasso. No problema, são dados os segmentos de reta a, b e pede-se para construir “geometricamente” um segmento c cujo comprimento seja . Aqui surge a primeira fonte de dúvida: se a e b são segmentos de reta, que significado tem afirmar que um terceiro segmento c tem comprimento igual a ? Nesta expressão, a e b são tratados como se fossem números. O que o enunciado pede é um segmento c com a seguinte propriedade: se , e são os números reais que representam respectivamente as medidas de a, b e c relativamente a uma unidade de comprimento u, fixada arbitrariamente, então
A solução da Prof.ª Marisa não faz uso explícito de uma unidade de medida mas só pode ter seu significado elucidado mediante o apelo a um segmento unitário. A solução de Fábio Barreto utiliza um segmento de medida um, que ele afirma (com razão) poder ser escolhido arbitrariamente. A explicação é a seguinte: se, em vez de u, escolhermos outro segmento v como unitário, poderemos escrever u = k.v para significar que a medida de u em relação à nova unidade v é o número real k > 0. Então as medidas de a, b e c na unidade v são k.a, k.b e k.g respectivamente. Se então , logo a validez da condição estipulada pelo problema não depende da unidade de comprimento escolhida. Esta independência acontece porque a expressão é homogênea em relação às variáveis a e b. Quer dizer, se substituirmos a e b respectivamente por k.a, k. b (onde k > 0) a expressão fica multiplicada por k. (A rigor, deveríamos dizer “homogênea de grau 1”, mas continuaremos usando esta terminologia abreviada.) O
leitor observará que todas as fórmulas de Geometria que exprimem o
comprimento de um segmento em função de comprimentos de outros são
dadas por expressões homogêneas. Por exemplo,
(teorema de Pitágoras) ou
(a altura baixada sobre a
hipotenusa é a média geométrica
das projeções dos catetos). Em contraste, as fórmulas de áreas em função
de segmentos são sempre dadas por expressões “homogêneas de segundo
grau” em termos desses segmentos. Por exemplo a fórmula de Heron
Seria interessante perguntar o que ocorreria se o segmento pedido c tivesse seu comprimento dado por uma expressão não-homogênea em termos dos comprimentos de a e b. Por exemplo, consideremos o problema de construir geometricamente, a partir dos segmentos a e b, um segmento de reta c cujo comprimento seja a/b. Se e forem respectivamente as medidas de a e b relativamente à unidade u então a medida de c será /. Tomando outro segmento unitário qualquer v, com u = k.v, as medidas de a e b nesta nova unidade serão k., k. respectivamente. Então a medida de c será k/k = /. O segmento c tem portanto a mesma medida, seja qual for a unidade escolhida! Isto é, evidentemente, um absurdo. Conseqüentemente, o problema de obter um segmento de comprimento a/b a partir de dois segmentos dados a e b não tem sentido. Sabendo que a expressão do comprimento de c em função dos comprimentos de a e b deve necessariamente ser homogênea, cabe a pergunta: será a homogeneidade uma condição suficiente? Mostraremos que não. Dados os segmentos a e b, tentemos obter geometricamente um segmento c cujo comprimento seja . O raciocínio empregado para concluir, no caso acima, a impossibilidade de construir a/b não funciona porque é uma expressão homogênea. Mesmo assim, o problema proposto não tem solução, mas agora por um motivo diferente e bem mais sutil. Se temos que resolver um problema, nossa obrigação é considerar o caso mais geral possível dentro das condições do enunciado. Mas se queremos mostrar que o problema não tem solução, basta tomarmos um caso particular. Não havendo solução naquele caso, nossa tarefa acaba ali. Consideremos então o caso particular em que a = b. Tomemos a (ou b) como unidade de comprimento. Nosso problema consiste portanto em construir geometricamente um segmento de reta c que (em relação a esta unidade de comprimento fixada) tenha comprimento . Se pudéssemos construir tal segmento, o cubo de aresta c teria para volume o dobro do volume do cubo de aresta a! A exclamação acima tem o seguinte motivo. O desafio de construir com régua e compasso (a aresta de) um cubo cujo volume seja o dobro do volume do cubo cuja aresta a é dada é uma questão milenar, conhecida como o “problema da duplicação do cubo”. Ele é um dos três célebres problemas propostos e não resolvidos pelos matemáticos da Escola Grega. (Os outros dois são a quadratura do círculo, sobre a qual escrevi no número 6 da RPM, págs. 18 a 20, e a triseção do ângulo). A duplicação do (volume de um) cubo é também conhecida como o “problema de Delos”. Delos é uma cidade grega que, por volta do ano 430 A.C., foi fustigada por uma epidemia. Seus habitantes foram ao oráculo e lhe perguntaram como escapar da praga. O oráculo respondeu: “Duplicando o altar de Apolo”. O altar tinha a forma de um cubo. Com muito cuidado, os habitantes de Delos construíram outro altar cúbico cuja aresta era o dobro da anterior, pensando que assim estavam duplicando o cubo, quando na realidade estavam multiplicando seu volume por oito. Eles voltaram ao oráculo, que lhes explicou o erro. A epidemia seguiu seu curso, desapareceu como costuma, mas o problema perdurou. A
solução do problema da duplicação do cubo só aconteceu muitos séculos
depois, com a introdução de métodos numéricos na Geometria, isto é,
com o surgimento da Geometria Analítica. Então, como explicamos na RPM
n.º 6 (pág. 20), viu-se que, fixado um segmento de reta que consideramos unitário, só podem ser
construídos com régua e compasso os segmentos cuja medida se exprime
mediante um número finito de operações de adição, subtração,
multiplicação, divisão e extração de raiz quadrada~ estas operações
sendo efetuadas a partir de números inteiros. Em
particular, não se pode construir com régua e compasso, a partir de um
segmento a, de comprimento a,
um segmento c cujo comprimento seja
. Portanto, se forem dados os segmentos a e b não tem solução o
problema de construir geometricamente um segmento de comprimento igual a
.
Sun Hsien Ming, de São Paulo, S.P. nos faz duas perguntas: 1º)
Existe alguma fração ordinária tal que, dividindo-se o numerador pelo
denominador, obtenha-se a dízima periódica 0,999...? A
resposta é NÃO. Se a e b forem números naturais com a/b = 0,999... então Na realidade, existe um modo meio heterodoxo de dividir a por a e obter 0,999... como quociente. Normalmente, numa divisão, exigimos que o resto seja inferior ao divisor. Se admitirmos, restos iguais ao divisor, ao efetuar uma divisão, por exemplo, de 7 por 7 teremos
Uma pergunta semelhante (mais geral) com a mesma resposta, poderia ter sido feita: ao transformar uma fração ordinária a/b em decimal, por meio da divisão prolongada, pode-se obter no quociente uma dízima periódica que termine com 999...? Por exemplo, pode-se encontrar um quociente igual a 0,74999...? Se fizermos a divisão como de costume (resto sempre menor do que divisor) a resposta é não. Mas, se admitirmos restos iguais ao divisor, dividindo 3 por 4 obteremos 0,74999... como se vê na conta seguinte
Outra maneira de mostrar que, dividindo-se (da maneira correta) a por b nunca se chega a uma dízima de período 9 é a seguinte. Suponhamos, inicialmente, que 0 < b < 10, isto é, que b tenha apenas um algarismo. Na divisão prolongada de a por b, a partir do momento em que se baixa o primeiro zero já não se pode mais obter 9 no quociente. Por exemplo, suponha b = 7. No final da divisão, o maior resto possível seria 6. Baixando-se um zero tem-se 60, que dividido por 7 dá 8, e não 9. Daí por diante, continua-se a baixar zeros e nunca mais se encontra 9 no quociente. Se o número b tiver dois algarismos, pode ser que, ao baixar o primeiro zero, se encontre 9 no quociente. Mas do segundo zero em diante o maior algarismo do quociente será 8. Por exemplo, se vamos transformar 47/12 em fração decimal, fazemos a conta abaixo:
que nos conduz à dízima periódica 3,91666.... Note que obtivemos um 9 depois de baixar o primeiro zero. A situação é geral: se b tem n algarismos decimais, ao dividirmos continuadamente a por b poderemos, no máximo, encontrar n =1 vezes o algarismo nove depois que baixamos o primeiro zero. Nunca se obtém um dízima cujo período seja 9. A segunda pergunta de Sun Ming é: 2º)
O fato de a mesma fração ordinária poder ter duas representações
decimais distintas (como 2/5 = 0,4000... = 0,3999...) não apresenta
inconveniente nem origina paradoxos? Minha resposta começa com um pedido ao Sun e aos demais leitores para reler a RPM n.º 2 (pág. 6) Lá está escrito que as frações ordinárias que, ao serem transformadas em decimais, têm um desenvolvimento limitado (isto é, o processo continuado de divisão do numerador pelo denominador conduz eventualmente a um resto zero) são aquelas que, postas sob forma irredutível, apresentam no denominador o produto de uma potência de 2 por uma potência de 5. Todas essas frações irredutíveis do tipo m/2a . 5b podem ser representadas de duas maneiras diferentes como fração decimal. (Esta última frase, que responde sua questão, não está na RPM número 2.) Por exemplo, temos 1/4 = 0,25 = 0,24999... ou 2/5 = 0,4 = 0,3999.... A regra geral é fácil: toda fração decimal “exata” pode ser também escrita como dízima periódica subtraindo-se uma unidade do seu último algarismo não nulo e acrescentando-se uma seqüência infinita de algarismos 9. Seria bom que a correspondência entre números racionais e frações decimais periódicas (dízimas) fosse biunívoca. Mas não é. Caso insistamos muito em ter sua biunivocidade, vamos ter que fazer um sacrifício para obtê-la. Um sacrifício possível seria abster-se de considerar decimais “exatas”, substituindo sempre todas as frações do tipo 5,183 por 5,182999... (por exemplo), O outro seria excluir as dízimas que terminam com uma fileira de noves, substituindo-as sempre pela decimal exata obtida suprimindo os noves e somando 1 ao último algarismo que os precede; isto corresponderia a escrever sempre 0,7 em vez de 0,6999.... Nenhuma dessas escolhas é muito natural. Por isso me parece mais razoável que nos resignemos com a falta de biunivocidade. Há coisas piores no mundo.
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