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Nelson Tunala
Durante a fase de leitura, uma professora da disciplina procurou a coordenação de Matemática com o propósito de obter esclarecimentos acerca de uma passagem do segundo capítulo do livro, que tanto ela quanto os alunos não conseguiram entender. Realmente tratava-se de uma estranha sequência de multiplicações por quatro; um verdadeiro enigma matemático, que precisava ser explicado. Prometi à professora que iria analisar a situação, na tentativa de encontrar alguma explicação para os estranhos resultados.
Uma estranha sequência de produtos A passagem do livro que descreve essa sequência de produtos por quatro se encontra em um dos parágrafos iniciais do capítulo intitulado A lagoa de lágrimas; mais precisamente o capítulo 2 da obra. A seguir, foi transcrito, do parágrafo em pauta, apenas o trecho de interesse:
Quando Alice diz: 4 × 5 = 12, 4 × 6 = 13, 4 × 7 = ..., complementando com “nesse ritmo nunca vou chegar a 20”, fica implícito que os estranhos resultados (inteiros consecutivos) continuariam: 4 × 7 = 14, 4 × 8 = 15, 4 × 9 = 16, 4 × 10 = 17, 4 × 11 = 18 e 4 × 12 = 19, mas por qualquer razão o resultado 20 não seria alcançado. Até os dias atuais não há nenhum registro de algum pronunciamento do autor acerca dessa sequência misteriosa; todavia, há inúmeros estudiosos da obra que asseguram que isso não foi feito ao acaso, ou seja, apesar da previsível imaturidade matemática dos potenciais leitores de Alice, o autor teria pensado em um esquema mais complicado, lançando-o na forma de enigma. Esse pensamento até que é bastante razoável, uma vez que Lewis Carroll − pseudônimo do inglês Charles Lutwidge Dodgson (1832−1898) − era professor de Matemática do Christ College em Oxford. As suas duas principais obras, Aventuras de Alice no País das Maravilhas (publicada em 1865) e Através do espelho (continuação da primeira, publicada em 1872), a despeito de serem claramente direcionadas ao público infantil, revelam o humor de um matemático que se diverte com a Lógica e faz alusões claras a temas científicos.
Posicionamentos de alguns matemáticos O norte-americano Martin Gardner (1914−2010), um dos maiores especialistas do mundo em Matemática Recreativa e nas obras de Lewis Carroll, foi o organizador de uma edição (comentada) que reuniu essas duas principais obras de Carroll. Nessa edição, Gardner introduz comentários e notas explicativas (próprias ou de colaboradores) para algumas passagens das obras. Há uma tradução para o português dessa edição comentada, publicada em 2002 por Jorge Zahar Editor. A interpretação dada por Gardner para a multiplicação de Alice figura em uma das notas do capítulo 2, e − a despeito de ser simples − não é muito aceita, e tampouco referenciada. Segundo ele, a explicação para Alice nunca chegar ao produto 20 é que as tabelas de multiplicar da época (segunda metade do século XIX) exibiam 12 valores sucessivos (1 a 12) para o fator variável; assim, prosseguindo com aquela sucessão absurda de resultados, ela chegaria no máximo a 4 × 12 = 19 (último produto que certamente seria exibido em qualquer tabuada que seguisse os padrões da época); portanto, faltaria o produto 4 × 13 = 20. Fica claro, do exposto, que a argumentação de Gardner procura apenas explicar o motivo de a sequência de produtos não atingir o valor 20; de fato, em nenhum momento, ele se preocupa com possíveis esquemas imaginados pelo autor para dar sentido à surpreendente sequência de resultados (isso fica bastante evidente quando ele diz “continuando com aquela sucessão absurda de resultados...”). O matemático e escritor britânico Alexander L. Taylor apresenta uma explicação bastante interessante em seu livro The white knight (capítulo 3: Mr Dodgson in Wonderland), cuja primeira edição é de 1952. O único pré-requisito necessário para se entender os argumentos usados por A. L. Taylor para explicar a multiplicação de Alice é o conhecimento de sistemas posicionais de numeração. A título de revisão, lembramos que uma expansão de um número natural N em uma base a, sendo a um número inteiro 2, é dada por: N = a0 + a1a + a2a2 + a3a3 + ... + anan, com os naturais ak (0 k n), univocamente determinados, todos menores que a e an ≠ 0. Se 2 a 10, N é representado na base a por anan−1 ... ak ... a1 a0; todavia se a >10, N é representado na base a por snsn−1 ... sk ... s1 s0, sendo sk igual a ak, se 0 ak 9 ou sk é um símbolo para ak, se 10 ak (a − 1). Assim, por exemplo, N = 58, pode ser representado na base 2 por 111010, na base 8 por 72 e na base 23 por 2s0, onde s0 é um símbolo para o natural 12. Baseado em sistemas posicionais de numeração, Taylor observou que 4 × 5 é realmente 12 em um sistema de base 18 e que 4 × 6 é realmente 13 em um sistema de base 21. Prosseguindo com esse esquema de aumentar a base em 3, os produtos representados nessas bases serão números consecutivos (4 × 7 = 14 na base 24, 4 × 8 = 15 na base 27,... e 4 × 12 = 19 na base 39), falhando pela primeira vez no produto 4 × 13, que, em vez de ser 20 na base 42 (como esperado), é igual 1s0 na base 42, sendo s0 um símbolo para o natural 10. Isso explica o fato de Alice ter afirmado que naquele ritmo (padrão) nunca chegaria a vinte. Um fato curioso é que o livro de Taylor não analisa a validade dessa lei de formação para os produtos 4j com 1 j 4, ou seja, ele só se preocupou em fornecer uma justificativa para os produtos referidos por Alice na passagem do livro. Será que o esquema por ele proposto continua válido nos produtos anteriores? A resposta é negativa, pois, embora sendo 4 × 4 = 11 na base 15 e 4 × 3 = 10 na base 12, não é verdade que 4 × 2 = 9 na base 9, nem que 4 × 1 = 8 na base 6 (em vez disso, 4 × 2 = 8 na base 9 e 4 × 1 = 4 na base 6). A matemática norte-americana Francine Abeles, atualmente professora do Kean College de New Jersey, observou esse deslize de Taylor em um artigo (Multiplication in changing bases: a note on Lewis Carroll) publicado em 1976. Nesse trabalho, ela também aproveita as mesmas ideias de Taylor (representação de produtos em bases variáveis) para construir uma tabela (matriz quadrada de ordem 12) de produtos, onde o elemento da linha i e coluna j (1 i, j 12) representa o produto de i por j, na base [6 + (i − 1)(j − 1)]. Sendo comutativa a multiplicação entre números naturais, é claro que essa tabela é simétrica. A quarta linha da tabela é precisamente a sequência de produtos por 4 (a mesma da justificativa de Taylor, porém corrigida). Abeles utiliza ainda essa tabela para mostrar que o resultado 20 só ocorre nos produtos 1 × 12 ou 12 × 1 (ambos na base 6). Nesse artigo, Abeles diz ter fortes razões para acreditar que Dodgson tenha imaginado um esquema dessa natureza, quando escreveu aquela passagem das multiplicações de Alice, uma vez que ele foi muito influenciado pelos trabalhos de diversos algebristas do século XIX, em particular pelo inglês George Peacok (1791−1858), de Cambridge.
Considerações finais As principais ideias deste artigo foram cuidadosamente transmitidas aos alunos das turmas da 7 série referidas na introdução, de modo a fornecer-lhes possíveis explicações para o enigma da multiplicação, bem como apoiar a coordenação da disciplina Língua Portuguesa e Literaturas.
Bibliografia
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