Luciano Aparecido Magrini
Mestrando do PROFMAT – UNESP – Rio Claro, SP

 

A questão sobre a existência ou não de números ímpares que sejam perfeitos (ver RPM 41, p.34) é antiga e permanece sem solução no caso geral. Neste artigo vamos mostrar como o Teorema Fundamental da Aritmética fornece um argumento bastante simples para mostrar que certos particulares números ímpares não podem ser números perfeitos.

Lembramos que um número natural é chamado perfeito se a soma de seus divisores próprios (diferentes dele mesmo) é igual ao número. Por exemplo, n = 6 é um número perfeito pois 1+ 2 + 3 = 6. Dito de outro modo, um número natural é perfeito se e somente se a soma de todos os seus divisores (agora incluindo o próprio número) é igual ao seu dobro: d = 2n, onde d representa a soma de todos os divisores de n. Usando essa notação, temos
d = 1 + 2 + 4 + 7 + 14 + 28 = 56 = 2 × 28, mostrando que 28 é outro exemplo de número perfeito. São também perfeitos os naturais 496, 8.128 e 33.550.336, para citar mais alguns exemplos.

O conceito de número perfeito surgiu na Grécia e não foi por acaso; os gregos eram grandes estudiosos dos naturais e de suas propriedades. Havia, no passado, um desejo místico de estabelecer uma ligação entre a Teoria dos Números e a Teologia; nas palavras de Santo Agostinho (354 – 430 d.C) “seis é um número perfeito em si mesmo, e não porque Deus tenha criado todas as coisas em seis dias; o inverso é que é verdade: Deus criou todas as coisas em seis dias porque esse número é perfeito, e teria sido perfeito mesmo que a obra dos seis dias não existisse”.

O que torna a Teoria dos Números fascinante é a simplicidade dos conceitos e a quantidade de problemas ainda não solucionados sobre eles: conceitos extremamente simples dão origem a problemas terrivelmente complicados para os quais não há ainda uma resposta. O conceito de número perfeito não foge a essa regra e até hoje não se sabe se existem números ímpares que sejam também perfeitos. O Teorema Fundamental da Aritmética garante que todo natural pode ser decomposto de forma única como produto finito de potências de números primos. Vamos usar o teorema para mostrar que certos números ímpares não podem ser perfeitos.

Observamos que se n = é a decomposição em fatores primos do número natural n, então cada divisor de n é escrito como o produto dos mesmos fatores primos p1, p2, p3, ..., pk, elevados a expoentes não superiores respectivamente a a1, a2, a3, ..., ak (e possivelmente iguais a zero). Portanto, a soma de todos os divisores de n, é a soma de todas as parcelas desse tipo. Por outro lado, essa soma é justamente o que você encontra quando desenvolve, usando a distributividade, o produto

(*).

(Uma demonstração desse fato pode ser encontrada em [1].) Observando que cada agrupamento entre parênteses corresponde à soma dos termos de uma PG, tem-se, usando a fórmula para essa soma,

chamada de função sigma nos livros de Aritmética e Teoria dos Números.

Vamos analisar com mais atenção cada um dos fatores de (*) no caso de ser n = ímpar. Se n é ímpar, cada pi também será ímpar e, então, o fator correspondente em (*) é dado por uma soma de (ai + 1) números ímpares. Isso justifica o fato de que a paridade dos fatores de (*) fica completamente determinada da seguinte forma: se o expoente ai é par (respectivamente ímpar) o fator correspondente em (*) é ímpar (respectivamente par). Tomemos, por exemplo, n = 4.725 = 33 × 52× 7 e vamos usar a expressão da função sigma para calcular a soma de seus divisores:

= 40 × 31 × 8.

Note que as potências de 3, 5 e 7 do natural 4.725 (de expoentes respectivamente ímpar, par e ímpar) correspondem respectivamente aos fatores 40, 31 e 8 de (*) (e estes são números respectivamente par, ímpar e par).

A argumentação acima é mais forte do que parece. Para fixar ideias, vamos usá-la para mostrar que nenhum ímpar quadrado perfeito pode ser um número perfeito: de fato, se n = é um quadrado perfeito em sua decomposição em fatores primos os expoentes ai são todos números pares, de onde segue que d é ímpar uma vez que todos os fatores de (*) são ímpares. Se (*) é ímpar, então não pode ser igual a 2n e n não pode ser perfeito. Simples, não?

Indo além, podemos usar o raciocínio anterior para mostrar que se um natural ímpar possui decomposição em fatores primos com pelo menos dois fatores com expoentes ímpares, então ele não pode ser perfeito, o que é um resultado bastante interessante: tomemos n = suponhamos a1 e a2 ímpares e os demais expoentes com qualquer paridade. Então os dois primeiros fatores de (*) serão pares e, portanto, (*) será múltiplo de 4. Logo, não pode ser igual a 2n se n é ímpar, o que mostra que n não é perfeito.

Infelizmente, a argumentação que usamos com sucesso nos casos anteriores falha no caso em que é ímpar apenas um dos expoentes em n = . Nesse caso, apenas um dos fatores de (*) será par. Assim sendo, (*) será múltiplo de 2, mas não de 4. Como n é ímpar, não há contradição em admitir a igualdade (*) = 2n verdadeira. Então não podemos concluir que um número ímpar não pode ser perfeito no caso em que apenas um dos expoentes da fatoração seja ímpar.


Referência bibliográfica
[1] DOMINGUES, Hygino H. Fundamentos de Aritmética. São Paulo: Atual, 1991