Sérgio Alves – IME-USP
Luiz Carlos dos Santos Filho –
UNIESP

 

Em 1983, a RPM publicou, em seu segundo número, um artigo assinado pelo Prof. Waldyr Oliva intitulado A independência do axioma das paralelas e as Geometrias Não- Euclidianas. Nesse trabalho o autor apresenta, de modo resumido, um dos episódios mais fascinantes da História da Matemática cuja principal consequência foi o surgimento das primeiras geometrias não euclidianas.

Passados nove anos, o saudoso Prof. Geraldo Ávila volta ao assunto na RPM 22 onde nos descreve a busca obsessiva, por parte do grande matemático francês Adrien Marie Legendre, de uma demonstração do quinto postulado de Euclides a partir dos postulados anteriores.

Apesar da importância e curiosidade que o assunto desperta, não encontramos na revista novas considerações significativas sobre o tema, exceto talvez, por algum comentário esparso. Essa ausência se justifica, a nosso ver, pela dificuldade de, em poucas páginas, escrever sobre geometrias não euclidianas (sem se restringir apenas aos seus aspectos históricos) tendo como público alvo os professores do ensino básico.

Embora a Geometria, quando ensinada no ensino superior, seja considerada o protótipo de uma teoria axiomática, nota-se que, em geral, o papel dos seus postulados não transparece e a dependência entre axiomas e ideias importantes que surgem em diversas provas não é realçada. Somente o estudo de uma geometria não euclidiana permite não apenas uma discussão mais ampla desses problemas como também uma análise mais crítica do significado dos postulados; enfim, é a geometria não euclidiana que nos faz compreender a real natureza da geometria euclidiana. Infelizmente, muitos dos licenciados em Matemática no Brasil jamais tiveram contato com alguma geometria não euclidiana e isso nos motivou a trazer de volta esse fascinante tópico.

Por volta de 300 a.C. Euclides, no seu famoso Os Elementos, enunciou o quinto postulado da seguinte maneira:

Se, num plano, uma reta t corta duas outras r e s fazendo com elas ângulos internos do mesmo lado de t tais que sua soma é menor do que dois retos, então as retas r e s se encontram nesse mesmo lado.

Durante mais de 2000 anos diversos matemáticos julgaram que essa afirmação não tinha, segundo a concepção grega, a concisão e auto-evidência exigidas para um postulado e procuraram por uma prova que atestasse sua validade a partir dos postulados anteriores. A luta que se travou na busca de tal prova é digna de um filme épico e está relatada na maioria dos livros de História da Matemática.

A afirmação descrita no quinto postulado é, na presença dos postulados anteriores, equivalente a outra, conhecida nos tempos modernos como o postulado das paralelas:

Seja r uma reta qualquer e P um ponto fora de r; então, no plano determinado por r e P, há no máximo uma reta que passa por P e é paralela a r.

A utilização da expressão "no máximo uma" no axioma acima requer uma pequena explicação: assumindo tacitamente a infinitude da reta (no sentido que esta contém segmentos de comprimento arbitrário) Euclides prova, sem a utilização do seu quinto postulado, a existência de pelo menos uma paralela de modo que o postulado acima nos garante a unicidade da paralela.

Quando Gauss, Lobachevsky e Bolyai desenvolveram, nas primeiras décadas do século XIX, a chamada geometria hiperbólica em que o quinto postulado de Euclides é substituído pela sua negação (ou seja, assume-se a existência de pelo menos duas paralelas a r passando por P), a reação da maioria dos matemáticos contemporâneos foi de certa incredulidade. Tal descoberta liberava a geometria de seus moldes tradicionais, pois até então se acreditava que seus postulados e teoremas constituíam uma descrição inequívoca do espaço físico e, portanto, apenas uma geometria era possível. Evidentemente, a geometria euclidiana e a hiperbólica não podem, cada uma por si, fornecer essa descrição uma vez que vários teoremas de uma dessas geometrias contradizem teoremas da outra. Um novo ponto de vista sobre a natureza da Geometria precisava ser desenvolvido. Não apenas isso, mas os fundamentos da teoria tinham de ser cuidadosamente reconstruídos e uma análise mais apurada dos Elementos de Euclides tornou-se crucial.

Seria realmente notável se os Elementos de Euclides, sendo uma tentativa tão antiga e colossal de aplicar o método postulacional, não apresentasse defeitos lógicos à luz do rigor matemático exigido em nossos dias. Não é nenhum descrédito a esse magnífico trabalho que investigações subsequentes revelassem defeitos na sua estrutura lógica e, de todos eles, talvez o mais grave seja o emprego, nas deduções, de certas suposições tácitas que não estão garantidas pelos postulados de Euclides.

O trabalho de aprimorar as premissas iniciais de Euclides de modo que toda a sua geometria pudesse ser rigorosamente provada ocupou a mente de vários matemáticos e somente no final do século XIX e início do século XX é que surgiram diversos conjuntos de postulados logicamente satisfatórios para embasar a geometria euclidiana.

Sem sombra de dúvida, o tratamento axiomático moderno da geometria euclidiana que teve a melhor aceitação é o devido ao eminente matemático alemão David Hilbert (1862 – 1943). Após um curso sobre tópicos de Fundamentos de Geometria na Universidade de Göttingen, suas notas de aula foram organizadas e publicadas, em 1899, sob o título Grundlagen der Geometrie (Fundamentos de Geometria). Esse pequeno livro, com noventa e duas páginas em sua primeira edição, sofreu ao longo dos anos algumas alterações além da introdução de apêndices e suplementos alcançando mais do que o dobro de páginas da versão original em sua décima primeira edição de 1972. Ao lado dos Elementos de Euclides, é considerada uma das obras mais importantes escritas até hoje no campo da Geometria e, escorado pela grande autoridade do autor em Matemática, o trabalho implantou firmemente o método postulacional da axiomática formal não só no campo da Geometria como também em quase todos os ramos da Matemática do século XX. Como referência, utilizaremos neste trabalho a versão apresentada em [2].

Uma das dificuldades na crença de que a geometria hiperbólica era tão "boa" quanto a geometria euclidiana residia no fato que não se tinha, na época de sua descoberta, uma "visualização concreta" da não unicidade da paralela. Para se obter esse intento foi preciso, no desenvolvimento da Geometria, uma mudança de ênfase: dos objetos em estudo para as suas propriedades. Por exemplo, é irrelevante o que são os pontos e as retas propriamente ditos. O importante são as propriedades e relações entre eles enunciadas nos postulados e nas proposições que deles decorrem. A partir dessa ideia surgem os chamados modelos da Geometria (considerada como um sistema axiomático) que nada mais são do que uma interpretação para os seus conceitos primitivos de modo que seus postulados se tornem afirmações verdadeiras.

Os primeiros modelos da geometria hiperbólica foram descobertos a partir de 1868 com os trabalhos de Beltrami, Klein, Poincaré, entre outros, e por meio deles constatou-se definitivamente que o quinto postulado de Euclides é independente dos anteriores e, portanto, a tão procurada prova não existe!

Descrevemos a seguir o modelo de geometria hiperbólica plana conhecido como Disco de Poincaré. Será fixado um plano euclidiano E e indicaremos por AB a distância (euclidiana) entre dois pontos A e B pertencentes a E.
Definição 1. Seja a E uma circunferência de centro O e raio a, e P E um ponto arbitrário, P distinto de O. O inverso de P em relação a a é o único ponto P' pertencente à semirreta OP tal que (OP).(OP') = a2.

Como obter, com régua e compasso, tal inverso P'? Suponha inicialmente que P está no interior de a. Sendo T a de modo que a reta PT é perpendicular à reta OP em P, o ponto procurado P' é a intersecção da semirreta OP com a tangente t à circunferência a no ponto T. Para justificar essa construção basta observar que OPT e OTP' são ângulos retos e, portanto, os triângulos OPT e OTP' são semelhantes.

Logo, , ou seja, . Segue que (OP).(OP') = a2 e P' é o inverso de P em relação a a.

Se P está no exterior de a, seu inverso P' é obtido revertendo-se a construção acima. Finalmente, se P a então P' = P.

Definição 2. Dadas duas circunferências a, b E diremos que a e b são ortogonais se, num de seus pontos de intersecção, os raios de a e b por aquele ponto são perpendiculares.

Note que essa afirmação também vale no outro ponto de intersecção uma vez que esses pontos e os respectivos raios são simétricos em relação à reta que passa pelos centros de a e b, O e O1. Sendo a e b os raios de a e b, respectivamente, e c a distância entre O e O1 temos que a e b são ortogonais se, e somente se, c2 = a2 + b2.

Em particular, se a e b são ortogonais então o centro de uma das circunferências está no exterior da outra.

Nosso primeiro teorema estabelece um dos principais critérios de ortogonalidade entre duas circunferências e na sua prova usaremos um conhecido resultado da geometria euclidiana relacionado com a noção de potência de ponto, assunto já abordado nesta revista (veja [5]). No enunciado dado a seguir destacamos o uso da expressão "se, e somente se" ressaltando que a recíproca de tal resultado também é válida, fato este que comumente não aparece nos textos didáticos.

Lema. Sejam t e AB duas retas concorrentes num ponto P com A e B do mesmo lado de P. Sendo T t, T distinto de P, considere a circunferência b que passa por A, B e T. Nessas condições, t é tangente a b em T se, e somente se, PA.PB = (PT)2.

Prova. Suponha, sem perda de generalidade, que o ponto A está entre P e B como na figura ao lado. A igualdade PA.PB = (PT)2 é equivalente ao fato que os triângulos PBT e PTA são semelhantes que, por sua vez, é equivalente à congruência dos ângulos PBT e PTA. Mas, pelo teorema do ângulo inscrito, temos PBT @ PTA se, e somente se, a reta t é perpendicular ao raio O1T da circunferência b.

Teorema 1. Seja P um ponto no interior de uma circunferência a E, P distinto do seu centro O, e b E uma circunferência passando por P. Então a e b são ortogonais se, e somente se, b passa pelo inverso de P em relação a a.

Prova. Suponha que a circunferência b passe pelo ponto P e pelo seu inverso P' em relação a a (figura ao lado). Logo, o ponto O está no exterior de b e considere a reta OQ tangente a b no ponto Q. Pelo Lema, sabemos que (OQ)2 = (OP).(OP'). Mas, como P' é o inverso de P, temos (OP).(OP') = a2, sendo a o raio de a. Portanto, OQ = a e concluímos que o ponto Q também pertence à circunferência a. Como o raio OQ de a é perpendicular ao raio O1Q de b, segue que a e b são duas circunferências ortogonais.

Reciprocamente, suponha que a e b sejam ortogonais. Logo, o centro O de a está no exterior de b e a semirreta OP intersecta b num segundo ponto U. Sendo Q um dos pontos de intersecção de a e b temos que a reta OQ é tangente a b no ponto Q de modo que, novamente pelo Lema, a2 = (OQ)2 = (OP).(OU). Concluímos que o ponto U coincide com o inverso P' de P em relação a a e, portanto, P' b.

Podemos agora dar um significado concreto para os termos ponto e reta, que são conceitos primitivos da geometria hiperbólica plana considerada como um sistema axiomático (veja [2], páginas 149 a 152). Fazer isso é o que chamamos de interpretar o sistema. Mais ainda. Para que tenhamos um modelo do sistema axiomático essa interpretação deve ser tal que os postulados se tornem afirmações verdadeiras.

Para obtermos o modelo do Disco de Poincaré interpretamos os pontos como sendo os pontos euclidianos localizados no interior de uma circunferência G E de centro O e raio r. A própria G não está incluída e, portanto, os pontos R e S da figura a seguir não são considerados pontos hiperbólicos. Já os pontos O, A, B são exemplos de pontos hiperbólicos.

As retas serão interpretadas como os diâmetros de G e os arcos de circunferências ortogonais a G, ambos restritos ao interior de G.

Na figura ao lado são apresentados alguns exemplos de retas hiperbólicas: tanto o diâmetro RS, excluídos os extremos R e S, quanto os arcos R1S1 e R2S2 contidos no interior de G são retas hiperbólicas (b1 e b2 são circunferências ortogonais a G).

Uma pergunta que o leitor pode estar se fazendo é: Por que tais diâmetros e tais arcos ortogonais a G podem ser considerados como retas? A resposta é que os postulados que dizem respeito a esses conceitos primitivos, os chamados postulados de incidência, estão verificados.

Considere, por exemplo, os axiomas I1 e I2 de [2] que correspondem ao primeiro postulado de Euclides: por dois pontos distintos passa uma única reta. Na interpretação acima essa afirmação se traduz no seguinte fato: dados dois pontos distintos P e Q no interior de G, existe um único diâmetro de G ou um único arco de circunferência ortogonal a G que contém P e Q.

Tomemos, portanto, dois pontos distintos P e Q no interior da circunferência G. Se P, Q e o centro O de G são, na geometria euclidiana, pontos colineares (o que inclui o caso de P ou Q coincidir com O) então a única reta euclidiana que passa por P e Q determina um diâmetro de G contendo P e Q. Para estabelecer a unicidade desejada observe que não há nenhuma circunferência b ortogonal a G que passe por P e Q uma vez que, pelo Teorema 1, b teria que passar por P' , o inverso de P em relação a G. Porém, neste caso, P, Q e P' são três pontos distintos colineares e, portanto, tal circunferência b não existe.

Supondo, como na figura a seguir, que P, Q e O são pontos não colineares, mostraremos que existe um único arco de circunferência ortogonal a G contendo P e Q. Com efeito, sendo P' o inverso de P em relação a G, trace a (única) circunferência b que passa pelos pontos não colineares P, P' e Q (o centro O1 de b é a intersecção das mediatrizes euclidianas dos segmentos PQ e PP').

Pelo Teorema 1, G e b são circunferências ortogonais e, portanto, a intersecção de b com o interior de G é, na interpretação dada, uma reta hiperbólica passando por P e Q.

Para mostrar que essa reta hiperbólica é única, observe que se P e Q pertencem a uma circunferência b1 e esta é ortogonal a G então, ainda pelo Teorema 1, o ponto P' inverso de P em relação a G também pertence a b1. Logo, b1 = b.

O Disco de Poincaré nos permite visualizar a negação do postulado das paralelas, ou seja, a possibilidade de termos mais do que uma paralela a uma reta dada, todas passando por um ponto fora dela; isso nada mais é do que a verificação, na interpretação acima, do axioma IV de [2]. Lembramos que tanto na geometria euclidiana como na hiperbólica, uma reta m é paralela a uma reta n se m = n ou m n = .

Na figura ao lado considere a reta hiperbólica AQB e o ponto P fora dela. Existe uma infinidade de retas paralelas a essa reta, todas passando por P. Citamos como exemplos, as retas hiperbólicas CPD e EPF que são arcos de circunferências ortogonais a G e a reta hiperbólica GPH que é um diâmetro de G.

Aquilo que antes parecia impossível de se visualizar está agora a nossa frente!

Para finalizar ressaltamos que, com adequadas interpretações para os conceitos primitivos "estar entre" e "congruência", tanto os axiomas de ordem quanto os de congruência também se tornam afirmações verdadeiras provando assim que o Disco de Poincaré é um modelo de geometria hiperbólica plana.

Vários fatos interessantes que decorrem da não unicidade da paralela podem ser visualizados neste modelo, entre eles o de que a soma das medidas dos ângulos de qualquer triângulo é menor que 180o e a possibilidade das mediatrizes de um triângulo serem retas paralelas (consequentemente, nem sempre existe a circunferência circunscrita a um triângulo). Os detalhes encontram- se, por exemplo, em [4].

 

 

Referências bibliográficas

[1] Ávila, G. Legendre e o postulado das paralelas, RPM 22 (1992), 16-28.
[2] Hilbert, D. Fundamentos da Geometria, Coleção Trajectos Ciência, Gradiva, Portugal, 2003.
[3] Oliva, W. M. A independência do axioma das paralelas e as Geometrias Não-Euclidianas, RPM 2       (1983), 28-31.
[4] Santos, Filho L.C. Encontro com o mundo não Euclidiano Elementos para uma abordagem       didática, Projeto de Ensino Matemática, IME - USP, 2004.
[5] Wagner, E. Potência de um ponto em relação a uma circunferência, RPM 45 (2001), 29-34.

 

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HERON PARA CEVIANAS ESPECIAIS

É bem conhecida a fórmula de Heron de Alexandria (~120 a. C.) dada por S = para cálculo da área de um triângulo de lados a, b e c e semiperímetro p.

Na RPM 65, o Painel I apresenta o texto Heron para medianas com a fórmula S = sendo 2M = ma + mb + mc, que permite calcular a área S do triângulo, sabendo-se os comprimentos das medianas, ma, mb e mc, em vez dos lados, como na fórmula de Heron.

A RPM recebeu de José Cloves V. Saraiva um texto no qual ele demonstra a generalização dessas fórmulas, considerando três cevianas que dividem o lado oposto numa mesma razão: No triângulo ABC, considere os pontos D, E, F, pertencentes aos lados CB, BA e AC, respectivamente, e tais que: , sendo 0 < < 1. Então, a área S do triângulo pode ser dada por

S =

sendo ka = AD, kb = BF, kc = CE e 2K = ka + kb + kc.

O texto completo com a demonstração da fórmula está disponível na página da RPM: www.rpm.org.br