Antônio Luiz Pereira –
IME-USP
Severino Toscano Melo
– IME-USP

 

Introdução

Consideremos um polígono P no plano cartesiano. Se os vértices de P têm todos coordenadas inteiras, então a Fórmula de Pick para sua área é

(1)                 A = i + -1,

sendo i e f o número de pontos com coordenadas inteiras no interior e no bordo do polígono, respectivamente.

Essa não é, em geral, uma fórmula prática para o cálculo da área de polígonos, já que a hipótese é, usualmente, falsa ou desconhecida. Não obstante, ela é bastante interessante, por várias razões. Em primeiro lugar, há um apelo intrínseco pelo seu aspecto curioso de transformar o problema (em geral difícil) do cálculo de áreas, em uma “mera” contagem de pontos. A fórmula pode também ser explorada de várias formas e níveis de profundidade pelo professor. Presta-se, por exemplo, a atividades de caráter basicamente lúdico. Ao mesmo tempo, um exame mais atento revela sutilezas e conexões entre vários assuntos de interesse para o ensino de Matemática. Em particular, qualquer tentativa de demonstração evidencia a necessidade de formular de maneira clara e precisa os conceitos envolvidos, o que deve ser, em nossa opinião, um dos objetivos do ensino da Matemática. A demonstração que apresentaremos é ainda uma boa aplicação do princípio de indução em um contexto um pouco diferente dos usuais.

Antes de iniciar uma apresentação mais rigorosa, vamos alinhavar as ideias centrais da demonstração. Em primeiro lugar, mostraremos que a fórmula (1) tem um caráter aditivo, isto é: se o polígono P for a união de dois outros P1 e P2 que se intersectam em uma aresta comum, então a fórmula para P segue se ela vale para P1 e P2. A ideia central, então, é dividir o polígono dado em dois outros com um número menor de lados. Repetindo esse procedimento, podemos decompor o polígono em triângulos para os quais o teorema pode ser demonstrado diretamente (essa é a estratégia escollhida, por exemplo, em [2]). Essa decomposição não será perseguida até o final aqui. Em vez disso, usaremos o princípio de indução. Mostraremos que o resultado vale para triângulos (o que dá o passo inicial para o processo de indução) e então usaremos a aditividade mencionada acima, para completar o argumento de indução.

Como já mencionamos, para transformar essas ideias em um argumento rigoroso é necessário formular de maneira adequada o que se quer demonstrar. Para evidenciar essa necessidade, observemos que a fórmula (1) não vale se a definição de polígono for demasiado geral, como ilustra a figura ao lado.

Tendo isso em mente, definimos linha poligonal e polígono, de forma adequada para os nossos propósitos, na Seção 1. Provamos que, dado um polígono simples com mais de três vértices, dois desses vértices podem ser unidos por um segmento que não o intersecta. Apesar da demonstração da fórmula para triângulos ser conhecida, e mesmo previsível para quem não a conheça, ela é apresentada na Subseção 2.2 para tornar o texto mais completo. Na última subseção, explicitamos os argumentos que levam, a partir dos resultados das duas seções anteriores, à conclusão da demonstração de (1). Finalmente, no apêndice, demonstramos um lema técnico.

 

1. Linhas poligonais e polígonos planos

Dados dois pontos A e B no plano, denotamos por AB o segmento de reta que tem A e B como extremos. Chamamos de interior de AB o conjunto dos pontos de AB que são distintos de A e de B. Dado um número finito de pontos distintos do plano, V1, V2, ... , Vn, chamamos de linha poligonal com extremos em V1 e Vn a união dos segmentos (chamados de arestas) . Supomos que três vértices consecutivos nunca são colineares.

Chamamos de linha poligonal fechada, ou simplesmente polígono, com vértices V1, V2, ..., Vn, a união dos segmentos (neste caso, também chamados de lados) . Supomos que três vértices consecutivos de um polígono não são colineares, entendendo agora que {Vn-1,Vn,V1} e {Vn,V1,V2} também são conjuntos de vértices consecutivos.

Diremos que o polígono é simples se a interseção de um par de arestas não consecutivas é sempre vazia (um par de arestas consecutivas é determinado por cada conjunto de três vértices consecutivos).

Um polígono simples P divide o plano em duas regiões: o interior I e o exterior E de P. Essas regiões são caracterizadas pelas propriedadades seguintes. Dois pontos do plano fora de P são extremos de alguma linha poligonal que não intersecta P se e somente se ou os dois pertencem a I ou os dois pertencem a E. Além disso, I é limitada e E é ilimitada e P é fronteira comum de ambas. Este é um caso particular do célebre Teorema de Jordan, para o qual uma prova elementar pode ser encontrada em [1, Seção V.3.1]. Entenderemos por área de P a área do seu interior I.

Para a demonstração da fórmula (1) precisaremos do resultado técnico abaixo que, embora intuitivamente óbvio, não é tão fácil de provar. A prova está no apêndice deste artigo.

 

Lema 1

Num polígono simples com mais de três vértices, existe um par de vértices que são extremos de um segmento cujo interior não intersecta o polígono.

Com algum esforço adicional poderíamos provar uma versão mais forte desse lema que permitiria dispensar o segundo caso da propriedade aditiva que vem logo a seguir. Remetemos o leitor interessado a uma versão mais completa deste artigo [3], disponível na página da RPM (www.rpm.org.br).

 

2. Polígonos com vértices em 2

Como é usual em Geometria Analítica, introduzindo coordenadas cartesianas ortogonais, podemos identificar os pontos do plano com 2. Os pontos com coordenadas inteiras estão, dessa forma, identificados com 2.

2.1. Propriedade aditiva da fórmula. Sejam P e Q polígonos simples no plano cuja interseção é igual a uma aresta comum. Fazendo permutações dos vértices de P e de Q, podemos sem perda de generalidade supor que os vértices de P são V1, V2, ..., Vn e os de Q são V1, V2, U1, U2, ..., Um. Denotemos por P Q o polígono de vértices V2, V3, ..., Vn, V1, Um, Um-1, ..., U2, U1.

Suponhamos que todos os vértices de P, assim como os de Q, pertencem a 2. Nesta subseção, nosso objetivo é provar que, se a fórmula (1) vale para P e Q, então ela vale também para P Q. Denotemos por i1, i2 e i o número de pontos de 2 contidos no interior de P, de Q e de P Q, respectivamente. E por f1, f2 e f o número de pontos de 2 contidos nas poligonais fechadas P, Q e P Q, respectivamente.

Denotemos por Q’ o complementar da aresta . em Q. Como Q’ é uma união crescente de linhas poligonais com extremos pertencentes ao complementar de P, então ou Q’ está inteiramente contido no interior de P ou está inteiramente contido no exterior de P.

Consideremos primeiramente o caso em que Q’ está contido no exterior de P. Neste caso, os interiores IP e IQ de P e de Q não se intersectam e o interior de P Q é igual a união IP Ia IQ' onde Ia denota o interior da aresta . Essas afirmações, intuitivamente óbvias, podem ser demonstradas usando as propriedades do interior e do exterior de um polígono, enunciadas logo antes Lema 1 (ver [3]). Temos então que a área do polígono P Q é igual à área do polígono P somada à área do polígono Q. Queremos mostrar, portanto, que

(2)                                     i + -1 = (i1 + -1) + (i2 + -1).

Como o interior de P Q é igual à união disjunta de IP , Ia e IQ' temos que i = i1 + i2 + f3, sendo f3 o número de pontos de 2 contidos em Ia. A linha poligonal P Q é igual à união de P com Q subtraída de Ia. Como P Q = , o número de pontos de 2 contidos em P Q é igual a f3 + 2 (lembrando que, por hipótese, V1 e V2 pertencem a 2). Assim,
f = f1 + f2 - ( f3 + 2) - f3 = f1 + f2 - 2(f3 + 1). Daí vem:

i + - 1 = (i1 + i2 + f3) + - 1,o que demonstra (2).

Consideremos agora o caso em que Q’ está contido no interior de P (ver figura da página anterior). Queremos então provar que

(3)                                     i + -1 = (i1 + -1) - (i2 + - 1).

O interior de P é igual à união disjunta do interior de P Q com o interior de Q com o complementar de . em Q.

Com o mesmo f3 que usamos no primeiro caso, obtemos

i1 = i + i2 + f2 - (f3 + 2), logo i = i1- i2 - f2 + (f3 + 2).

Como no caso anterior, vale também agora que f = f1 + f2 - 2(f3 + 1). Daí:

i + - 1 = (i1 - i2 - f3 + f3 +2) + = 1, o que demonstra (3).

2.2. O caso de triângulos

Seja T um triângulo retângulo com vértices em 2 e catetos paralelos aos eixos coordenados e seja R o retângulo que tem os catetos de T como dois de seus lados. Sejam m e n os comprimentos dos catetos de T, i o número de pontos de 2 no interior de T e fh o número de pontos de 2 no interior da hipotenusa de T. O número de pontos de 2 no interior de R é (m - 1)(n - 1). Daí vem i = .

O número de pontos f de 2 em T é igual a m + n + fh + 1. Assim

e segue que a fórmula (1) vale para triângulos retângulos com catetos paralelos aos eixos coordenados.

Todo retângulo R pode ser escrito como R = T1 T2, onde T1 e T2 são triângulos retângulos. Segue então do que provamos na subseção anterior que a fórmula (1) vale para todo retângulo com vértices em 2 e lados paralelos aos eixos coordenados.

Convidamos agora o leitor a reler a seção anterior para se convencer de que o mesmo argumento que lá usamos mostra também que, se a fórmula (1) vale para P1 P2 e para P1, então vale também para P2.

Seja agora T um triângulo qualquer com vértices em 2. Podemos encontrar triângulos retângulos T1, T2 e T3 com vértices em 2 e catetos paralelos aos eixos coordenados tais que R = T T1 T2 T3 é um retângulo com lados paralelos aos eixos coordenados. Como a fórmula (1) vale para R, T1, T2 e T3, ela vale para T.


2.3. O caso geral

A demonstração de (1) será por indução sobre o número de vértices de P. Na subseção anterior, vimos que a fórmula é válida se P tiver três vértices. Suponhamos que a fórmula já foi provada se o número de vértices for menor que n. Provemos então que ela é válida para a linha poligonal P de vértices V1, V2, ..., Vn. Pelo Lema 1, P possui um par de vértices que são extremos de um segmento cujo interior não intersecta P. Sem perda de generalidade, podemos supor que um desses vértices é V1. Seja Vp o outro vértice. Seja P1 o polígono de vértices V1, V2, ..., Vp e seja P2 o polígono de vértices V1, Vp, Vp+1, ..., Vn. A fórmula (1) vale para P1 e para P2, pois ambas têm menos de n vértices. Pelo resultado da Subseção 2.1, ela vale também para P = P1 P2.


Apêndice

Demonstração do lema 1. Sejam {A, B, C} vértices consecutivos, nessa ordem, do polígono simples P. O segmento AC não é uma aresta porque P tem mais de três vértices. Se o interior de AC não intersecta P, o problema está resolvido. Suponhamos então que alguma aresta de P intersecta o interior de AC. Ela deve então, ou intersectar um dos outros dois lados do triângulo ABC, ou ter um extremo contido no interior do triângulo unido com o segmento AC . A primeira possibilidade está excluída pois os outros dois lados são arestas de P, que não tem auto-intersecção. Segue que existem vértices {U1, U2, ... , Uk}da poligonal P no interior do triângulo ABC unido com o segmento AC. As retas paralelas ao segmento AC passando por Ui , i = 1, 2, ..., k, intersectam os lados AB e BC em pontos Ri e Qi, respectivamente, formando triângulos: T1 = BR1Q1, T2 =BR2Q2 , ... , Tk = BRkQk. Seja Tm o menor deles, na ordem dada pela inclusão, isto é, Tm = Ti.

O segmento não é uma aresta, une dois vértices de P e, por argumento similar ao anterior, seu interior não intersecta P. De fato, o interior de está contido no interior do triângulo BRmQm que, por construção, não contém nenhum vértice de P. Se alguma aresta de P intersectasse ela teria que intersectar um dos segmentos ou o que não pode ocorrer, pois eles estão contidos em arestas de P.

 

 

Referências bibliográficas

[1] Courant, R. e Robbins, H. O que é Matemática? - Uma abordagem elementar de métodos e       conceitos, Ciência Moderna.
[2] Lima, Elon L. Como calcular a área de um polígono se você sabe contar, em: Meu Professor de       Matemática e outras histórias, p. 101-114, IMPA e Fundação Vitae, 1991.
[3] Melo, S. T. e Pereira, A. L. Contando áreas - o teorema de Pick em www.rpm.org.br