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Sérgio L. Netto
Neste texto, colocamos o significado original da palavra “Matemática”, e procuramos entendê-lo a partir de um breve episódio do diálogo Mênon de Platão [1]. A palavra (lê-se “mátema”) indica aquilo que é aprendido, em geral se referindo a todo campo de conhecimento passível de ensino [2]. Iamblicus e Porfírio, em suas respectivas Vida de Pitágoras [3], citam que os membros efetivos da Escola de Pitágoras, que estudavam de forma plena os ensinamentos do mestre, eram chamados de aprendizes (, ou seja, matemáticos); enquanto aqueles que eram apenas apresentados às regras de conduta da escola eram chamados de ouvintes (). De fato, para os pitagóricos, o termo “Matemática” ( já se aplicava apenas aos campos de ‘geometria’ e ‘aritmética’, possivelmente englobando também suas extensões como ‘astronomia’ e a ‘teoria musical’. Na obra de Platão, o termo costuma assumir o sentido mais amplo, de um campo qualquer de conhecimento, mas também é usado no contexto atual mais específico. De fato, o uso técnico do termo “Matemática”, para identificar a ciência que trata das quantidades e das formas, parece ter sido estabelecido de forma definitiva somente por Aristóteles e seus discípulos. Diálogo de Sócrates e o escravo de Mênon Segundo Proclus [4], os pitagóricos entendiam o processo de aprendizado () como uma recordação de algo que existe dentro de nós, implantado em nossa alma, e não de aquisição de algo novo, de fora para dentro. Essa interpretação está presente ainda na obra de Platão, como é ilustrado no diálogo entre Sócrates e um escravo (sem qualquer instrução prévia de conceitos matemáticos) descrito em Mênon [1] e sintetizado a seguir: figuras utilizadas por Sócrates em seu diálogo com o escravo de Mênon Sócrates: Reconhece esta figura como sendo a de um quadrado, contendo estas quatro linhas iguais? [figura (a)] Se os lados desta figura forem de 2 pés, a área da mesma não seria duas vezes 2 pés? E quanto é duas vezes 2 pés? Faz o cálculo e diz. Escravo: 4, Sócrates. Sócrates: E não é verdade que pode haver outra figura deste tipo, mas com Escravo: Claro que pode haver. A área seria igual a 8 e o lado, evidentemente, seria o dobro do lado desta, isto é, 4 pés. Neste ponto, o escravo comete um erro e Sócrates explicita para o leitor que o escravo pensa que sabe a resposta correta. Isso é importante para o desenvolvimento que se segue. Sócrates: Quer dizer que para se gerar uma figura de área 8, precisamos dobrar o tamanho do lado, como fazemos nesta nova figura? [figura (b)] Completando o quadrado com o novo lado, não temos um total de quatro quadrados iguais ao anterior? Quer dizer que quatro vezes o quadrado anterior corresponde ao dobro da área? Escravo: Não, por Zeus! Sócrates: Logo, menino, dobrando-se o lado não se duplica, mas sim se quadruplica a área do quadrado. Com efeito, quatro vezes o novo lado de 4 pés corresponde a uma área de 16. Assim, pergunto novamente: Qual será o lado do quadrado de área igual a 8? Sabemos que tal quadrado tem o dobro da área do quadrado original de lado 2 pés e metade da área no novo quadrado de lado 4 pés. Logo, o lado do quadrado de área 8 deve ser maior do que 2 pés e menor do que 4 pés, não é isso? Tenta, pois, me dizer a medida do lado do quadrado de área 8. Escravo: 3 pés?! [A essa altura o escravo já não demonstra muita certeza em sua resposta] Sócrates: Se for realmente de 3 pés, basta acrescentarmos, ao lado inicial de 2 pés, a metade do que havíamos acrescentado antes. Correto? [figura (c)] Mas a área deste quadrado de lado 3 pés não seria três vezes 3 pés? Quanto é isso? É igual a 8? Escravo: A área é 9 e não 8. [Nesse ponto todas as certezas do escravo caem por terra] Sócrates: Logo, o lado do quadrado de área 8 também não é 3 pés. Qual é então o lado do quadrado de área 8? Escravo: Por Zeus, Sócrates, eu não sei! Os argumentos de Sócrates levam o escravo a admitir que não sabe a resposta do problema. Esse estágio é chamado de aporia. Nesse ponto, o próprio Sócrates argumenta que o escravo ainda não sabe a resposta, mas já admite que não sabe, o que em si já é um aprendizado. Essa argumentação é usada por Platão para mostrar que a aporia não é um estágio estéril ou inútil, e que ela pode, se corretamente explorada, levar ao aprendizado desejado, como ocorre na continuação do diálogo. Sócrates: Vamos voltar ao quadrado de lado 4 pés que engloba quatro quadrados originais. Se tomarmos uma linha (diagonal) unindo os cantos opostos, não dividimos ao meio a área de cada um dos quadrados de lado igual a 2 pés? [figura (d)] E estas quatro novas linhas não são iguais e formam um novo quadrado? Qual é então a área deste novo quadrado? Não seria a metade da área total do quadrado de lado 4 pés? Quanto é isso? Escravo: Sim, as linhas são iguais e a área do quadrado resultante é quatro vezes a metade da área de cada um dos quadrados de lado 2 pés, isto é, quatro vezes a metade de 4, o que é igual a 8. Sócrates: Assim, descobrimos o lado do quadrado de área 8: é esta diagonal que traçamos em cada quadrado de lado 2 pés. Escravo: Perfeitamente, Sócrates! Por que o termo “Matemática” se restringiu para o sentido atual? Para os gregos antigos, o que diferencia a nossa Matemática das outras artes, como poesia, retórica, canto ou mesmo a arte de tocar um instrumento, seria a efetiva recordação das ideias impressas em nossa alma requerida por essa ciência, como ilustrado no diálogo anterior. A Matemática seria, então, a ciência da arte de aprender, no seu sentido mais puro, pelo menos na forma antiga de interpretar esse processo. Assim, o termo “Matemática” já evoca desde suas origens a dificuldade que se tem de ensinar seus conceitos [2], não constituindo de modo algum um privilégio de nossos tempos. Para o professor atual de Matemática, fica o alento de saber que não está sozinho nesse desafio, mas sim acompanhado por mestres como Pitágoras, Platão, Aristóteles e outros ilustres professores.
Referências bibliográficas [1] Platão. Mênon. 5 edição. Editora PUC-Rio, julho de 2009.
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