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José Paulo Carneiro
Introdução A chamada “fórmula de Euler” (uma dentre muitas) eiq = cosq + i senq tem sido objeto de várias citações na RPM (ver RPM 3, p. 18, e RPM 63, p. 1). Especialmente famoso é o caso em que q = p, obtendo-se: eip = cosp + i senp = –1 + 0i = –1, geralmente colocado na forma: eip + 1 = 0, uma bonita expressão que reúne numa fórmula sintética os números 0, 1, i, e, p. Porém muita gente sente falta de uma explicação convincente para a fórmula de Euler. Ocorre que uma justificativa completa dessa fórmula só pode ser feita utilizando os instrumentos do Cálculo Diferencial e Integral. Mas vamos expor os resultados, na convicção de que não é impossível entender o que se passa, mesmo sem reproduzir todos os detalhes técnicos.
Complexos unitários Comecemos pelo lado direito da igualdade. Ao trabalhar com números complexos, cada complexo x + yi será identificado com o par ordenado (x; y), ou com o ponto do plano P de coordenadas do plano (x; y), ou com o vetor . O módulo do número complexo x + yi é a sua distância à origem . Portanto, o número complexo cosq + i senq tem módulo =1, ou seja, é um complexo unitário. Vamos representar provisoriamente cosq + i senq por cisq (comentaremos mais adiante a questão da notação). O número (ou ângulo) q é chamado um argumento do unitário cisq. A definição do produto de dois complexos: (a + bi)(c + di) = ac – bd + (ad + bc)i acarreta que o produto de dois complexos unitários é dado por: cisa.cisb = (cosa + i sena)(cosb + i senb) = (cosacosb – senasenb) + (senacosb + senbcosa)i. Porém, pelas conhecidas fórmulas trigonométricas: cosacosb – senasenb = cos(a + b) senacosb + senbcosa = sen(a + b). Logo, cisacisb = cis(a + b). Em palavras: multiplicando dois complexos unitários, obtém-se outro complexo unitário que tem por argumento a soma dos argumentos dos fatores. O complexo 1 = 1 + 0i = (1; 0) = cos 0 + i sen 0 = cis 0 exerce o papel de neutro na multiplicação de unitários (e de complexos em geral). Além disso, cisa.cis (– a) = cis(a – a) = cis 0 = 1, o que acarreta cis(– a) = o inverso de cisa. A tabela a seguir faz uma comparação entre essas propriedades e as propriedades das potências (por exemplo, de números reais).
Essa analogia já sugere que os complexos unitários talvez possam ser escritos como potências de alguma base. Mas por que exatamente eiq? Vamos então agora analisar o lado esquerdo da fórmula de Euler.
O número e O número e que aparece na fórmula de Euler é aquele mesmo no qual o leitor deve estar pensando, e que tem esse nome em homenagem à inicial do próprio Euler. Ele já foi abordado várias vezes na RPM (ver, por exemplo, RPM 31, p. 22, RPM 2, p. 6, RPM 50, p. 15). O número e é um número irracional que pode ser definido de muitas maneiras equivalentes. Por exemplo, uma maneira de “enxergar” geometricamente o número e é a seguinte: faça o gráfico da função real y = 1/x. Nesse gráfico, para cada t > 1, chame de A(t) a área delimitada pelo eixo x, o gráfico da função e as retas x = 1 e x = t. Essa área começa valendo 0, quando t = 1, e vai aumentando quando t aumenta. Por definição de e, essa área será exatamente igual a 1 quando t for igual a e. Em outras palavras, e é o único número que satisfaz A(e) = 1. Essa definição não parece muito prática para calcular valores aproximados de e ou determinar suas propriedades, embora isso seja perfeitamente possível. Por exemplo, a figura ao lado mostra que A(t) < t – 1, já que t – 1 é a área do retângulo indicado. Então, por exemplo, A(2) < 1. Como A(e) = 1 e A é uma função crescente, necessariamente e > 2. O número e também pode ser definido a partir da sequência de termo geral an = (1 + ), uma sequência que aparece de forma natural em Matemática Financeira (ver, por exemplo, [1]). Os três primeiros termos dessa sequência são (verifique): a1 = 2; a2 = 2,25; a3 @ 2,37. O leitor pode verificar numa calculadora, por exemplo, que a100 @ 2,705, bem como experimentar outros valores de n. Pode-se mostrar que os termos dessa sequência crescem à medida que n aumenta, mas nunca ultrapassam um certo “limite”, do qual aproximam-se cada vez mais, e dele se aproximam tanto quanto for necessário. Esse limite é o número e (ver RPM 31). Um valor aproximado de e com 4 decimais exatas é 2,718.
As potências de e Em primeiro lugar, é possível definir as potências ex para todo x real. De fato, a função definida por f(x) = ex é uma das mais importantes da Matemática e sua inversa é a função logaritmo natural, ou na base e (ver, por exemplo, [2]). Em seguida pode-se deduzir que para todo x real vale a igualdade ex = 1 + . (1) Essa expressão com “pontinhos” significa uma “soma infinita”, na realidade o limite de uma soma, conhecido como série. Fazendo x = 1 nessa igualdade, temos: e = 1 + , fórmula que também pode ser usada como mais uma definição do número e. Quantos mais termos se retêm nessa soma, mais nos aproximamos de e, podendo nos aproximar de e tanto quanto for necessário. Por exemplo,1; 1 + = 2; 1 + = 2,5; 1 + @ 2,667; são aproximações cada vez melhores de e, por falta.
Aproximação de funções por polinômios Quando começamos a estudar funções reais, em geral se começa pelas funções polinomiais de primeiro grau, f(x) = ax + b, ou segundo grau f(x) = ax2 + bx + c. De um modo geral, as funções polinomiais de qualquer grau apresentam a inegável simplicidade de que seus valores podem ser calculados usando apenas somas (ou diferenças) e multiplicações (ou potências de expoente inteiro positivo) envolvendo a variável independente. Isso é muito importante do ponto de vista computacional. Por exemplo, sabe-se que um computador ou uma calculadora, em última análise, só fazem contas de somar e multiplicar (com números binários). Quando progredimos um pouco no estudo de funções, ainda no ensino médio, nos deparamos, por exemplo, com as funções trigonométricas. Como é que fazemos para calcular um seno ou um cosseno? Fazemos figuras, porque nossas definições de seno e cosseno são geométricas. Mas o que acontece quando colocamos na nossa calculadora científica um número qualquer e apertamos a tecla seno? Será que a calculadora faz figuras para esse cálculo? É claro que não. O que ela faz é justamente aproximar a função seno por um polinômio e calcular os valores desse polinômio usando só somas e produtos. Podemos olhar a igualdade de (1) como fornecendo uma aproximação da função f (x) = ex por funções polinomiais, a saber, as funções: 1; 1 + ; 1 + ; ... 1 + + ... + , e assim por diante. O mesmo pode ser feito para as funções seno e cosseno, obtendo: cos x = 1 – + ... (2) sen x = + ... (3) como o leitor pode verificar em qualquer livro de Cálculo Diferencial e Integral. Essas fórmulas são deduzidas no contexto dos números reais, mas observe que o lado direito da igualdade (1) faz perfeito sentido para complexos, já que só usa somas, produtos e limites (atenção para os pontinhos!). Assim, ela é tomada como definição de ex para x complexo. Aceitando esse fato, podemos fazer x = iq em (1), obtendo: eiq = 1 + + ... Levando em conta que i2 = –1, i3 = –i, etc., grupando termos e usando (2) e (3), obtemos: eiq = (1 – + ...) + i( + ...) ou eiq = cosq + i senq, mostrando finalmente a exatidão da fórmula de Euler.
Observação Esse tipo de grupamento de termos em séries (infinitas) nem sempre é válido, mas, no caso, pode ser justificado.
A questão da notação No início do artigo, dissemos que iríamos adotar a notação “provisória” cisq para cos q + isen q. Temos que reconhecer que essa notação é muito pouco usada. O motivo é simples. Ela não aparece nos livros “sérios” de Matemática. Para que os matemáticos precisam usar uma notação que mais adiante vai ser substituída por eiq, que é, como vimos, muito mais do que uma notação? Porém, não achamos que eiq deva ser usada como uma notação no Ensino Médio. Em primeiro lugar, não é de modo nenhum necessário o uso da fórmula de Euler num primeiro estudo dos números complexos. Segundo, a introdução precoce do número e, um irracional que só pode ser bem entendido com a noção de limite, dá a falsa impressão de que é avançado e difícil o estudo da “forma trigonométrica” dos números complexos. Finalmente, alguns gostam de usar eiq como uma notação, para dela tirar propriedades do tipo cisa.cisb = cis(a + b), que agora se escreve eia eib = ei(a + b) e decorre da aplicação automática da “lei dos expoentes”. Mas ao invés de uma vantagem, esta nos parece ser uma desvantagem do ponto de vista didático, já que (mais uma vez no estudo de complexos!) o aluno é levado a aplicar algebrismos mecanicamente, quando podia estar visualizando geometricamente que a soma dos argumentos dos fatores é um argumento para o produto.
Referências bibliográficas [1] Morgado, Augusto C.; Wagner, Eduardo; Zani, Sheila C. Progressões e Matemática Financeira. Coleção do Professor de Matemática. SBM. [2] Lima, Elon Lages. Logaritmos. Coleção do Professor de Matemática. SBM.
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