Antônio Luiz Pereira
IME-USP



Introdução

Tive, por algum tempo, o prazer de colaborar com a RPM na seção O Leitor Pergunta. Um dos assuntos recorrentes nas perguntas recebidas pela seção é o de Probabilidade e, mais especificamente, problemas envolvendo Probabilidade Condicional. Alguns desses problemas têm, aparentemente, o condão de gerar mal-entendidos e discussões acirradas. Como isso pode ocorrer em uma disciplina na qual o consenso deveria ser obtido por uma discussão "racional"? Meu objetivo aqui é argumentar que, pelo menos em alguns casos, a dificuldade principal não é a parte estritamente matemática e sim a "interpretação" e "modelagem" do problema. É claro que uma discussão ampla do assunto estaria fora do escopo de um artigo como este e também muito além de minha competência técnica. Creio, porém, que alguns comentários sobre dois exemplos específicos podem ser interessantes e de leitura relativament simples. O que segue é uma elaboração da resposta que foi enviada à pergunta, reproduzida abaixo, do leitor Álvaro de Matos Ramos.

"Amigos da RPM: Lendo o artigo Onde está a chave do carro? (RPM 71), confesso que fiquei surpreso. O caso é semelhante (ou não) ao Problema das três portas, conforme famoso programa de TV dos EUA, Lets Make a Deal, apresentado por Monty Hall (ver Internet)? A grande polêmica em torno do problema é contada no agradável livro O andar do bêbado de Leonard Mlodinow. Vocês poderiam fazer uma análise comparativa entre as duas situações?"

Ambos os problemas já foram tema de artigos da RPM, mas serão abordados aqui de um ponto de vista um pouco diferente, de maneira a melhor permitir a comparação solicitada pelo leitor.

 

Enunciado dos problemas

O problema das chaves do carro

Este problema foi apresentado e discutido com muita graça e competência por Laura Riffo na RPM 71. Meu enunciado sacrifica o charme do original em troca da brevidade.

O Sérgio (marido da Laura) foi a quatro lojas: padaria, mercearia, frutaria e açougue, todas dentro de um mercado, e depois à banca de jornal, fora do mercado. Logo após, constatou ter perdido a chave do carro em alguma das lojas. O casal resolveu procurar a chave, começando pelas lojas situadas dentro do mercado. Foram primeiro à padaria, à mercearia e à frutaria, sem sucesso. Antes de continuar a busca, Laura observou que a probabilidade de que a chave estivesse no açougue tinha aumentado para 50%, já que faltavam duas lojas para visitar. Foi, porém, prontamente contestada pelo Sérgio: "Não, a probabilidade de que a chave esteja no açougue é de 80%. Afinal, se inicialmente a banca de jornal tinha 20% de chance, então o mercado tinha 80%, dividida igualmente entre as quatro lojas. Como no mercado só restou o açougue, então a chance de que a chave esteja lá é de 80%".

O problema das três portas

Se o leitor gosta de polêmicas, este problema é uma excelente escolha. Desde sua apresentação em programa da TV americana, como menciona o leitor, ele parece não ter perdido seu potencial de provocar discussões e controvérsias. O enunciado pode variar um pouco; escolhemos aqui a versão apresentada pelo prof. Morgado na RPM 33.

Suponha que um convidado está em um programa de televisão e deve escolher entre três portas, uma das quais esconde um automóvel e as outras duas, dois bodes. O convidado escolhe uma das portas. Em seguida, o apresentador, que sabe o que as portas escondem, escolhe uma das duas restantes mostrando um bode. Ele então pergunta ao convidado: você quer trocar de porta? O problema é: é vantajoso para o convidado fazê-lo? Se o fizer, qual é sua probabilidade de ganhar o automóvel?

 

Uma solução para o problema das chaves do carro

Aqui e na seção seguinte, vamos proceder de maneira bem "cautelosa". Primeiro explicitamos um "espaço amostral" como candidato a modelo matemático para a situação. Depois "traduzimos" as condições determinadas pelo enunciado em um problema matemático preciso e resolvemos este último. Finalizamos com uma breve discussão sobre a adequação do modelo proposto.

No caso do problema das chaves, o espaço amostral será simplesmente um conjunto com 5 elementos M = {a, b, c, d, e}, correspondendo a cada uma das lojas: padaria, mercearia, frutaria, açougue e banca de jornal, respectivamente. A cada um dos "pontos" de M atribuímos a probabilidade que corresponde à probabilidade de que a chave tenha sido esquecida em cada loja. Vamos, por ora, aceitar que esse modelo é apropriado para a situação descrita. O evento "a chave não está na padaria, nem na mercearia, nem na frutaria" corresponde ao complementar do conjunto A = {a, b, c}, ou seja, ao conjunto B = {d, e}. O evento "a chave está no açougue" corresponde ao conjunto unitário C = {d}. Uma vez que aceitamos essa "tradução" do problema, a probabilidade pedida é calculada usando as "regras do jogo" probabilístico, ou seja, ela é igual à probabilidade condicional P(C|B) da ocorrência de C dado que B ocorreu, a qual é dada por

 

Alternativamente, podemos considerar B como um novo espaço amostral reajustando proporcionalmente as probabilidades dos eventos elementares em B. Teremos então P({d}) = P({e}) = e a probabilidade pedida é igual a P({d}) = . Em outras palavras, a probabilidade de que a chave esteja no açougue, admitindo que o modelo "retrate fielmente" a situação real, é de 50% e, como o leitor já deve ter desconfiado desde o início, a mulher tem razão.

Podemos, é claro, discutir se o modelo escolhido é realmente adequado. Em particular, o problema original menciona que algumas das lojas têm a propriedade comum de estarem localizadas em um mercado e poderíamos entender que isso deve ser levado em conta. Porém, uma vez aceito que os "eventos elementares" correspondem a terem as chaves sido esquecidas em alguma das lojas e que eles têm a mesma probabilidade, tudo o mais segue e o fato de que algumas lojas estejam localizadas no mercado é tão irrelevante quanto o fato de que o nome de algumas delas não contém a letra "g". Poderíamos também entender que a atribuição de probabilidades aos eventos elementares não é a mais razoável: quem sabe o Sérgio tenha ficado muito mais tempo na banca de jornal do que no açougue e que queiramos levar isso em consideração. Além disso, se o Sérgio for parecido comigo, a probabilidade de que a chave esteja, afinal, no bolso de suas calças é definitivamente não desprezível. Enfim, podemos propor uma infinidade de modelos diferentes para o problema. A escolha do modelo adequado está, definitivamente, fora do escopo da Matemática e pode levar a discussões e controvérsias infindáveis. Entretanto, no caso deste problema, a "tradução" escolhida é muito simples e natural. Parece claro (bem, pelo menos assim me parece) que a probabilidade condicional calculada traduz, de fato, a quantidade que se pretende calcular no "problema real". A situação no problema das portas é um pouco diferente, como veremos.

 

Uma solução para o problema das três portas

Neste problema, a dificuldade é maior, especialmente porque muita coisa é deixada implícita e o modelo probabilístico correto a ser adotado pode ser objeto de controvérsias. Há pelo menos duas interpretações plausíveis para a probabilidade que se pretende calcular: a probabilidade a priori de que o participante ganhe o carro usando a estratégia de trocar de porta, isto é, sua probabilidade de sucesso antes do início do programa e sua probabilidade de sucesso diante de uma situação específica, depois que ele escolheu uma determinada porta e o apresentador abriu uma outra. A falta de uma distinção clara entre as duas situações é a fonte de muitas das polêmicas em torno desse problema. Na maioria das análises (por exemplo, no artigo citado do prof. Morgado), adota-se implicitamente a primeira interpretação. Vamos aqui adotar a segunda. Para isso é necessário antes explicitar algumas das "hipóteses escondidas". Suponhamos que o carro está em qualquer uma das portas com igual probabilidade, que o participante escolhe uma das portas com igual probabilidade em qualquer caso, que o apresentador nunca abre a porta com o carro e que, tendo a opção de abrir uma de duas portas, escolhe uma delas com igual probabilidade. Feito isso, podemos resolver o problema de maneira semelhante ao problema das chaves. É conveniente usar como espaço amostral o conjunto das triplas com cada componente igual a 1, 2 ou 3 e a terceira componente diferente das outras duas, ou seja:

M = {(1, 1, 2), (1, 1, 3), (1, 2, 3), (1, 3, 2), (2, 2, 1), (2, 2, 3), (2, 1, 3), (2, 3, 1),
(3, 3, 1), (3, 3, 2), (3, 1, 2), (3, 2, 1)}

A primeira entrada corresponde à porta onde está o carro, a segunda corresponde à porta escolhida pelo participante e a terceira corresponde à porta aberta pelo apresentador.

Se as duas primeiras componentes da terna são iguais, então o participante escolheu a porta onde o carro está e o apresentador escolheu abrir qualquer uma das duas portas restantes, com probabilidade . Por exemplo, a tripla (1, 1, 2) corresponde à situação na qual o carro está na porta 1 (evento que tem probabilidade de ocorrer), o participante escolheu a porta 1 (probabilidade ) e o apresentador abriu a porta 2 (probabilidade de ocorrer). Esse "evento elementar" tem, portanto, probabilidade . Se as duas primeiras componentes da terna são diferentes, então o participante escolheu uma porta diferente da que esconde o carro e o apresentador não tem alternativa, ele tem que abrir obrigatoriamente a única porta restante. Por exemplo, o evento (1, 2, 3) corresponde à situação na qual o carro está na porta 1, o participante escolheu a porta 2 e o apresentador abriu a porta 3 e tem probabilidade .

Suponhamos dado que:

(1) O participante indicou uma das portas, digamos a 1,

(2) O apresentador abriu uma das portas não abertas pelo participante, digamos a 2.

Qual é a probabilidade de que o participante ganhe o carro, nessa situação específica, se ele trocar de porta? Para calculá-la, observamos primeiro que o espaço amostral reduzido tem apenas duas triplas: (1, 1, 2) e (3, 1, 2), já que o carro não pode estar atrás da porta 2, que foi aberta pelo apresentador e as duas últimas componentes estão determinadas por (1) e (2). No espaço amostral original, o primeiro evento tem probabilidade (pois o apresentador poderia ter escolhido abrir a porta 3 em vez da 2) e o segundo evento tem probabilidade (pois o apresentador não tem alternativa, só pode abrir a porta 2). O espaço amostral reduzido tem probabilidade total

Reajustando as probabilidades para o espaço reduzido, teremos P(1,1,2) = 6 . e P(3,1,2) = 6 . . O participante ganha então o carro no segundo caso e perde no primeiro. Assim, é vantajoso trocar de porta e a probabilidade de que ele ganhe, nesse caso, é igual a .

Finalmente, observamos que, com as hipóteses acima de "equiprobabilidade", o cálculo seria o mesmo em qualquer situação específica. (Faço uma discussão um pouco mais extensa do problema, incluindo generalizações em http://www.ime.usp.br/~alpereir/artigos/eureka.)

 

Conclusão

Tentando responder à questão do leitor, creio que se pode dizer que os problemas são semelhantes, no sentido de que ambos envolvem uma modelagem probabilística usando o conceito (um tanto delicado) de probabilidade condicional. Como espero ter ilustrado, uma maneira bastante "segura" de lidar com problemas desse tipo é descrever, tão explícita e pormenorizadamente quanto possível, o espaço amostral relevante e "traduzir" nele as condições dadas no enunciado. Essa não é uma receita infalível, pode não ser muito óbvio como fazer isso na prática. Entretanto, esse procedimento, mesmo quando não completamente bem-sucedido, tem a virtude de propiciar um melhor entendimento da situação e delimitar claramente as difculdades. Dos dois exemplos tratados, o problema das chaves é, sem dúvida, o mais simples. Em primeiro lugar, fica mais claro, nesse último caso, saber qual deve ser "o modelo probabilístico" que é, além disso, bem mais simples do que no caso do problema das três portas. Em particular, os eventos elementares não são equiprováveis no problema das portas; a diferença nas opções do apresentador nos casos em que o participante acertou ou errou na escolha inicial introduz uma "assimetria" que pode parecer pouco intuitiva, à primeira vista. Como consequência, os eventos elementares, no segundo caso, não são equiprováveis, o que pode ser a fonte de um erro frequentemente cometido. Admite-se muitas vezes que, após a abertura da porta pelo apresentador, restam apenas duas portas (o que é correto) e que a probabilidade de que o carro esteja atrás de qualquer uma delas é a mesma, o que é falso! Neste, como em muitos outros problemas envolvendo probabilidade condicional, o passo mais difícil (e eventualmente controverso) é a "matematização", ou seja, a descrição completa de um espaço amostral e dos eventos que traduzam os dados do problema. Um vez que o problema está claramente "matematizado", o cálculo da probabilidade relevante segue "automaticamente" das definições e propriedades do cálculo de probabilidades.

 

Nota

Mantive o Sérgio (Wechsler) como personagem no problema da chave do carro, apenas para entrar na brincadeira da Laura. Ele é um dos candidatos mais improváveis que eu conheço a cometer o engano a ele atribuído.

 

Referências bibliográficas

[1] Morgado, C. M. Os dois bodes. RPM 33, p. 26-29.
[2] Morgan, J. P. V.; Chaganty, N. R.; Dahiya, R. C.; Doviak, M. J. Let's Make a Deal:
The Player's Dilemma. The American Statistician, November 1991, v. 45 n 4, p. 284-287.

 

X-burguer

Sabe como um matemático come um X-burger?
Ele come primeiro o pão e o hambúrguer para isolar o X.