Laurito Miranda Alves

 

Segundo o dicionário Houaiss, a gematria é uma regra hermenêutica que consiste em explicar uma palavra ou um conjunto de palavras conferindo um valor numérico convencionado a cada letra. Essa é uma prática muito antiga, usada para interpretar principalmente textos religiosos, como a Bíblia. A passagem bíblica mais famosa que levou ao uso da gematria está no Apocalipse de São João, cujo versículo 18 do capítulo 13 diz: “Aqui há sabedoria. Aquele que tem entendimento, calcule o número da besta; porque é o número de um homem, e o seu número é seiscentos e sessenta e seis”. [2]

Durante a Idade Média, vários matemáticos afirmavam ter descoberto quem era a besta, usando a gematria. Por exemplo, Stifel não só deduziu que Cn-1,p-1 + Cn-1,p = Cn,p (conhecida como relação de Stifel), mas também, como ex-monge convertido a reformador fanático e apoiador de Lutero, mostrou que o papa Leão X era a besta. Seu argumento era que o nome do papa, em latim, escrevia-se como LEO DECIMVS. Destacando as letras que têm significado numérico no sistema de numeração romano, obtemos L D C I M V. Ainda segundo Stifel, devemos ignorar o M, pois ele representa Mistério, e acrescentar 10, pois o nome do papa tem 10 letras. Somando tudo, obtemos 666. [1]

Uma acusação tão grave como a de que o papa seria a besta não poderia ficar sem resposta. Um certo padre Bongus, algum tempo depois de Stifel, associou letras e números da seguinte forma: as letras de A até I representam os números de 1 a 9; de K a S, temos os números de 10 a 90, de 10 em 10; e de T até Z, os números de 100 a 500, de 100 em 100. Com essa associação, temos MARTIN LVTERA (o nome de Lutero em latim), que representaria 30 + 1 + 80 + 100 + 9 + 40 + 20 + 200 + 100 + 5 + 80 + 1, ou seja, 666. Vários outros personagens da história já foram associados ao número 666, como o Kaiser Guilherme, durante a 1 Guerra Mundial, ou Adolf Hitler,durante a 2 Grande Guerra. [1]

Nossa ideia, neste texto, é resolver um problema menos religioso e mais matemático: seria possível atribuir um valor diferente a cada uma das letras do alfabeto, de modo que a soma das letras que compõem um número seja o próprio número? Explicando melhor, assim como fez o padre Bongus, queremos atribuir um valor a cada letra do alfabeto, de tal forma que U + M = 1, D + O + I + S = 2, T + R + E + S = 3, e assim, sucessivamente o máximo possível.

Começamos a solução dessa questão considerando os números 6, 7 e 8, por repetirem muitas letras em seus nomes. Considere o sistema:

Ao resolvê-lo, obtemos os valores das letras S, I e O em função de E e T:

S = 7 – 2E T, I = –8 + 3E + 2T, O =

Agora, podemos determinar facilmente o valor de D e R, pois

D + O + I + S = 2, logo D =

T + R + E + S = 3, logo R = E – 4.

Usando o valor de D, determinamos Z, pois

D + E + Z = 10, logo Z =

Agora podemos determinar N, pois

O + N + Z + E = 11, logo N = 2E + 2T – 12.

Observe que conseguimos determinar o valor de várias letras em função de E e T. Sabemos o valor de S, I, O, D, R, Z e N.

Para determinar o valor de E e T, vamos utilizar o sistema:

Resolvendo o sistema, temos E = 0 e T = 4. Substituindo esses valores de E e T no que descobrimos anteriormente, temos:

E = 0, T = 4, S = 3, I = 0, O = 2, D = –3, R = –4, Z = 13 e N = –4.

Podemos, agora, determinar C e V, pois

C + I + N + C + O = 5, logo, C = 7/2.

N + O + V + E = 9, logo, V = 11.

O valor de A ficou fácil de ser determinado agora, pois

C + A + T + O + R + Z + E = 14, logo A = –9/2.

Usamos catorze e não quatorze, pois, como Q + U + A + T + R + O = 4 e D + E + Z =10, deveríamos ter Q + U + A + T + O + R + Z + E = Q + U + A + T + R + O + D + E + Z, o que implicaria D = 0, um absurdo, pois já deduzimos que D = –3.

Temos, agora, que tomar uma decisão. É impossível ter Q + U + A + T + R + O = 4 e Q + U + I + N + Z + E = 15, pois, da primeira igualdade, deduzimos que Q + U = 13/2 e da segunda deduzimos que Q + U = 6. Assim, decidimos que a igualdade que deve ser levada em consideração é a do número 4, pois desejamos que nossa gematria seja correta para os números de 1 até o máximo possível, consecutivamente. Falta ainda usar os números 1 e 4.

Do sistema obtemos M = 1 – U e Q = .

Assim, podemos estabelecer um valor qualquer para o U, por exemplo, U = 2, e temos M = –1 e Q = 9/2.

Concluindo, atribuindo os valores E = 0, T = 4, S = 3, I = 0, O = 2, D = –3, R = –4, Z = 13, N = –4, C = 7/2, V = 11, A = –9/2, U = 2, Q = 9/2 e M = –1, a soma dos algarismos correspondentes às letras dos nomes de qualquer número de 1 a 14, em língua portuguesa, é o próprio número. Assim, U + M = 1, D + O + I + S = 2, T + R + E + S = 3, ..., T + R + E + Z + E = 13 e C + A + T + O + R + Z + E = 14. Infelizmente, Q + U + I + N + Z + E = 31/2.

Como um bônus, observe que D + E + Z + O + I + T + O = (D + E + Z) + (O + I + T + O) = 18 e, como E = 0, D + E + Z + E + N + O + V + E = (D + E + Z) + E + (N + O + V + E) = 19.

 

Referências bibliográficas

[1] Eves, Howard. Introdução à História da Matemática. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1997.
[2] http://www.bibliaonline.com.br/acf/ap/13 (acesso em 15/03/2011).