Suely Druck – UFF
Diretora Acadêmica da OBMEP

 

EXPLORANDO ALGUMAS QUESTÕES

Um hábito importante, mas difícil de ser implementado entre os alunos, é o de refletir sobre a solução encontrada de um problema, se perguntar se existem outras ou mesmo testar se foram usadas as hipóteses fornecidas. Enfim: qual é a matemática que está por trás de um enunciado e de uma solução? Em geral a garotada considera que uma vez encontrada a solução, então “Inês é morta”, e o assunto está liquidado. Procurar outras soluções e principalmente entender por que uma determinada ideia conduz à solução ou por que uma hipótese é essencial são exercícios produtivos para o desenvolvimento do raciocínio matemático.

Vamos ilustrar esse comportamento com duas questões da OBMEP 2010: a QUESTÃO 2 – NÍVEL 1, 2 fase, e a QUESTÃO 19 – NÍVEL 3, 1 fase.

Apresentamos as soluções publicadas no site www.obmep.org.br seguidas de comentários.

QUESTÃO 2 – NÍVEL 1. Um “matemágico” faz mágicas com cartões verdes, amarelos, azuis e vermelhos, numerados de 1 a 13 para cada cor. Ele mistura os cartões e diz para uma criança: “Sem que eu veja, escolha um cartão, calcule o dobro do número do cartão, some 3 e multiplique o resultado por 5. Depois

• some 1, se o cartão for verde;
• some 2, se o cartão for amarelo;
• some 3, se o cartão for azul;
• some 4, se o cartão for vermelho.

Diga-me o resultado final e eu lhe direi a cor e o número do cartão que você escolheu.”

a) Joãozinho escolheu o cartão vermelho com o número 3. Qual é o número que ele deve dizer ao matemágico?

Solução: Para saber o número que deve dizer ao matemágico, Joãozinho deve fazer quatro contas: multiplicar o número no cartão escolhido por 2; somar 3 ao resultado da primeira conta; multiplicar por 5 o resultado da segunda conta; somar 1, 2, 3 ou 4 ao resultado da terceira conta, dependendo da cor do cartão escolhido.

Como o número no cartão escolhido por Joãozinho foi 3, o resultado da primeira conta é 3 × 2 = 6; o resultado da segunda é 6 + 3 = 9 e o da terceira é 9 × 5 = 45. Por fim, como a cor do cartão escolhido por Joãozinho é vermelha, o resultado da quarta e última conta é 45 + 4 = 49. Assim, Joãozinho deve dizer “quarenta e nove” ao matemágico.

b) Mariazinha disse “setenta e seis” para o matemágico. Qual é o número e a cor do cartão que ela escolheu?

1 solução: Ver site da OBMEP.

2 solução: Essa solução não difere essencialmente da anterior, mas é mais precisa e permite uma solução imediata do item c). Como antes, vamos analisar o que acontece com o número de um cartão quando fazemos as operações indicadas. Qualquer que seja esse número, ao multiplicar por 2 obtemos um número par; ao somar 3 ao resultado, obtemos um número ímpar (esse é o detalhe em que essa solução difere da anterior). Ao multiplicar por 5, obtemos um número cujo algarismo das unidades é 5. Concluímos então que, todas as contas estando corretas, o último algarismo do número dito ao matemágico é

• 6, se o cartão escolhido é verde;
• 7, se o cartão escolhido é amarelo;
• 8, se o cartão escolhido é azul;
• 9, se o cartão escolhido é vermelho.

Desse modo, se Mariazinha disse 76 ao matemágico, seu cartão era verde e o resultado da terceira conta realizada por ela foi 76 – 1 = 75; o resultado da segunda conta foi 75 ÷ 5 = 15; o resultado da primeira conta foi 15 – 3 = 12 e o número no cartão escolhido por Mariazinha foi 12 ÷ 2 = 6. Conferindo: (2 × 6 + 3) × 5 + 1 = 76.

3 solução (algébrica): Seja x o número de um cartão; então o número dito ao matemágico é 5(2x + 3) + y = 10x + 15 + y, sendo y um número inteiro de 1 a 4 correspondendo à cor do cartão. Temos aqui 10x + 15 + y = 76, ou seja, 10x + y = 61. Como o dígito das unidades de 10x é 0, vemos que y só pode ser 1; logo, 10x = 60, x = 6 e concluímos que o cartão escolhido foi o verde.

c) Após escolher um cartão, Pedrinho disse “sessenta e um” e o matemágico respondeu: “Você     errou alguma conta”. Explique como o matemágico pôde saber isso.

1 solução (de acordo com a 1 solução do item b)): Ver site da OBMEP.

2 solução (de acordo com a 2 solução do item b)): Dizer ao matemágico um número cujo algarismo das unidades é diferente de 6, 7, 8 ou 9 indica que houve algum erro de conta.

3 solução: Para simplificar, vamos chamar de “resultado” de um cartão o número que deve ser dito ao matemágico por uma criança que escolha esse cartão. Observamos que entre cartões de mesmo número, o verde tem o menor resultado e o vermelho o maior. Por outro lado, o resultado do cartão 1 vermelho é (1 × 2 + 3) × 5 + 4 = 29 e o do 2 verde é (2 × 2 + 3) × 5 + 1 = 36, o resultado do 2 vermelho é (2 × 2 + 3) × 5 + 4 = 39 e o do 3 verde é (2 × 3 + 3) × 5 + 1 = 46 e assim por diante; isso mostra que, entre cartões de números diferentes, o cartão que tem o maior número tem também o maior resultado, independente da cor. Como o resultado do cartão 4 vermelho é (2 × 4 + 3) × 5 + 4 = 59 e o do 5 verde é (2 × 5 + 3) × 5 + 1 = 66, um cartão cujo resultado fosse 61 deveria ter número maior que 4 e menor que 5, o que não pode acontecer.

Comentários: Essa é uma linda questão envolvendo álgebra e um dos principais resultados da Aritmética, o algoritmo de divisão euclidiana para números inteiros, com uma contextualização interessantíssima e instigante para os alunos. Uma ótima oportunidade para rever esse algoritmo, que estabelece que numa divisão entre os números inteiros, D e d, d ≠ 0, temos Dividendo = divisor × quociente + resto, sendo 0 resto < divisor, ou melhor: Algoritmo da divisão euclidiana: dados inteiros D e d, d ≠ 0, existe um único par de inteiros q e r tais que D = d × q + r com 0 r < d.

É importante entender a unicidade, consequência de 0 r < d. Por exemplo, podemos escrever 37 de várias maneiras na forma 37 = 5 × q + r :

37 = 5 × 4 + 17 (17 > 5); 37 = 5 × 5 + 12 (12 > 5);
37 = 5 × 6 + 7 (7 > 5); 37 = 5 × 7 + 2.

No entanto, existe apenas uma maneira de escrever 37 = 5 × q + r com 0 r < d, que é 37 = 5 × 7 + 2. Assim, podemos afi rmar que 37 dividido por 5 dá resto 2.

Voltando à questão do matemágico, a mágica está toda baseada na estratégia de controlar o algarismo das unidades dos números que aparecem na sequência – ideia da 2ª solução do item b). Detalhando, se x é o número que está no cartão, x = 1, 2, 3, 4, ..., 13, então, pelas instruções do mágico, podemos obter um dos quatro números:

Esses números satisfazem o algoritmo de divisão euclidiana, já que 1 < 5, 2 < 5, 3 < 5 e 4 < 5. Podemos, então, concluir que a cor do cartão é o resto de divisão por 5 do número obtido:

Na verdade nem todos esses números entram na brincadeira: o controle total que o mágico tem sobre os algarismos das unidades dos números da sequência permite que o mágico diga à queima-roupa quando a criança errou os cálculos. Vamos olhar o que acontece apenas com o algarismo das unidades:

Logo, as instruções do mágico conduzem apenas aos números terminados em 6, 7, 8 e 9. Assim, do grupo acima, temos que excluir os terminados em 1, 2, 3 e 4.

Uma boa pergunta: Onde foi usada a informação de que os cartões são numerados de 1 a 13?

Ela não foi usada porque é desnecessária para responder às perguntas propostas. No entanto, se, no item (b), 76 fosse substituído por 996, essa informação seria usada: já saberíamos que o cartão é verde (resto 1) e, resolvendo a equação 5(2x + 3) + 1 = 996, obteríamos x = 98, que não está em nenhum cartão.

É bom notar que a informação que o mágico tem apenas 13 cartões de cada cor não infl uencia em nada a solução do problema. O mágico poderia ter quantos cartões quisesse de cada cor, 1 milhão ou mais, que ele saberia decidir a cor e o número escolhidos – apenas se o número final for muito grande, para resolver a equação ele poderia usar uma calculadora, afi nal mágicos modernos devem usar calculadoras!

Duas sugestões: (1) Exercitar com os alunos outras “mágicas” que necessitem do controle dos algarismos das unidades. (2) Um bom material sobre o algoritmo da divisão euclidiana pode ser encontrado na Apostila 1 do material do Programa de Iniciação Científica da OBMEP (disponível no site da OBMEP).

QUESTÃO 19 – NÍVEL 3 – 1 fase. Duas folhas de papel, uma retangular e outra quadrada, foram cortadas em quadradinhos de 1 cm de lado. Nos dois casos obteve-se o mesmo número de quadradinhos. O lado da folha quadrada media 5 cm a menos que um dos lados da folha retangular. Qual era o perímetro da folha retangular?

a) 48 cm         b) 68 cm         c ) 72 cm         d) 82 cm         e) 100 cm

Solução: Sejam m e n as medidas dos lados do retângulo e l a do lado do quadrado (em centímetros); supomos que l = m – 5. Da igualdade das áreas segue a expressão (m – 5)2 = mn, que implica

Como m e n são números inteiros, é necessário que também seja inteiro; isso só acontece quando m é um divisor de 25, ou seja, quando m é igual a 1, 5 ou 25. Os casos m = 1 e m = 5 não podem acontecer, pois l = m – 5 é positivo. Logo, m = 25, donde l = 20 e a área do quadrado é l2 = 202 = 400. Como essa é também a área do retângulo, temos mn = 25n = 400 e segue que n = 16. O perímetro do retângulo é 2m + 2n = 2 × 25 + 2 × 16 = 82 e a alternativa correta é a d).

Comentários: Inicialmente é importante ficar claro que toda a questão matemática do problema se resume ao seguinte: Dado um quadrado de lado inteiro l, construir um retângulo com comprimento igual a l + 5 e largura igual a um inteiro, que tenha a mesma área do quadrado.

Se para formar o retângulo aumentamos o lado do quadrado de 5 unidades, então, para obter a mesma área, a outra dimensão tem que ser diminuída (ver figura).

Logo, o comprimento do retângulo será l + 5 e chamemos a largura de n.

Da igualdade das áreas segue l 2 = n(l + 5), que implica n = .

Essa é uma equação com duas incógnitas e não temos uma “fórmula à mão” para resolvê-la. Uma maneira de resolver é primeiro, usar uma antiquíssima esperteza matemática: somar e subtrair um mesmo número a uma expressão. Assim, a expressão não se altera, apenas ela fi ca com outra cara, exatamente, no nosso caso, a que resolve a questão. Depois, vamos lembrar que procuramos apenas números inteiros (essa é a estratégia usada na solução apresentada, mas com outro algebrismo). Vejamos:

Como n e l – 5 são inteiros, então é inteiro, e a única possibilidade para isso é l + 5 = 25. Logo, l = 20 e n = 16.

Uma pergunta: É necessário colocar no enunciado proposto que a largura também tem que ser um número inteiro? Note que n ser inteiro foi usado de modo fundamental para concluir que também é inteiro. A resposta é sim para termos solução única. Caso contrário, o problema teria infi nitas soluções, como, por exemplo: o quadrado de lado 5 e o retângulo de comprimento 10 e largura 2,5; o quadrado de lado 10 e o retângulo de comprimento 15 e largura 20/3, etc.

Uma sugestão: Examinar com os alunos se é possível resolver o mesmo problema substituindo 5 por qualquer outro número inteiro.