Sérgio L. Netto
Departamento de Eletrônica e de Computação da UFRJ

 

Resumo

Este artigo apresenta a solução de Descartes para um problema encontrado na obra de Pappus1. Essa solução de Descartes é uma das origens, talvez a principal delas, da nossa conhecida Geometria Analítica.

 

Introdução

Em 1637, René Descartes publicou sua obra mais famosa, popularmente conhecida como Discurso do Método, contendo uma síntese de seu pensamento filosófico até então. Nesse livro, Descartes propõe o uso da razão como guia para o desenvolvimento das “novas ciências”, que surgiam naquela época em resposta ao ensino tradicional apresentado nas escolas. Descartes ilustra a utilidade de seu método aplicando-o em diferentes áreas científicas, anexando, para isso, três apêndices intitulados A Dióptrica, Os Meteoros e A Geometria [1]. É justamente neste último, cuja sinopse foi vista na RPM 19 [2], que podemos encontrar a semente principal da Geometria Analítica. Boas discussões sobre o papel de Descartes nesse contexto, assim como o de outros matemáticos eminentes, podem ser encontradas, por exemplo, em [3] e [4]. Mais especificamente, nos interessa a solução geral de Descartes para um problema geométrico analisado por Pappus com a qual o filósofo-matemático francês recai numa equação algébrica bem caracterizada. Para entendermos como ele fez isso, tudo que precisamos saber é tão somente a conhecida lei dos senos! Vejamos o problema e a respectiva solução e tiremos nossas conclusões a respeito disso tudo.

 

O problema de Pappus

Problema: Sejam N retas r1, r2, ... , rN dadas em posição e r um número dado. Pede-se o lugar geométrico dos pontos P, a partir dos quais podemos traçar N segmentos PP1, PP2,..., PPN   com P1 r1, P2  r2, ..., PN rN, perfazendo ângulos dados com as retas r1, r2, ... , rN, respectivamente, e tais que

        (1)

Note que os pontos Pi, com i = 1, 2, ..., N, não são fixos, mas sim tais que os segmentos PPi definem ângulos ai, estes sim especificados pelo problema, com as respectivas retas ri dadas em posição.

Na análise desse problema, Pappus cita que Apolônio não conseguiu avançar além do que Euclides havia conseguido, o que seria a solução para N 4, quando o lugar geométrico desejado consiste numa determinada seção cônica. Por meio de sua correspondência, sabemos hoje que Descartes se debruçou no problema por pouco mais de um mês em 1633, obtendo uma solução que pode ser generalizada para qualquer valor de N, como veremos.

O entendimento do problema em si não é uma tarefa trivial. Um exemplo simples, com N = 3, isto é, com apenas 3 retas, fixadas nas posições ilustradas na figura (posições determinadas pelos ângulos 30o e 60o e pela distância 1 entre os pontos de encontro de r1 com r2 e r3), pode nos ajudar. Vamos considerar a1 = 90o, a2 = a3 = 45o e r = 1, de modo que é pedido o lugar geométrico dos pontos P tais que = 1.     (2)

 

A solução de Descartes

Seja I2 a interseção das retas r1 e r2 dadas. Considere os segmentos principais = x e PP1= y, que servirão de referência para os demais segmentos do problema.

Estendendo as retas dadas, determinamos suas respectivas interseções I2 e I3 com a reta suporte de e I2 e I3 com a reta suporte de PP1, como indicado, para o nosso exemplo, na figura ao lado.

No triângulo P1I2I2, temos o lado = x e os ângulos I21I'2 = 90o e P1Î2I'2 = 60o, de modo que = tg60o =    (3)

Com isso, aplicando a lei dos senos no triângulo PP2I2, tem-se

(4)

Já para o segmento PP3 , consideremos, inicialmente, o triângulo P1I3I3, do qual temos o lado = (x + 1) e os ângulos I31I'3 = 90o e P1Î3I'3 = 30o, de forma que

(5)

Logo, aplicando a lei dos senos no triângulo PP3I3, obtemos

(6)

Substituindo na equação (2) os valores de PP1, PP2 e PP3 obtidos anteriormente,o lugar geométrico de P no nosso exemplo é caracterizado por

que leva a 3y2 + xy = 0.     (7)

Essa equação (7) corresponde a uma hipérbole passando pela origem, no caso, a interseção I2 das retas r1 e r2.

Descartes conclui então que o procedimento anterior pode ser usado repetidamente para determinar os segmentos PPi , e que o resultado, para qualquer valor de N, é sempre da forma PPi = (aiy + bix + ci), onde ai, bi e ci são valores reais que dependem das condições do problema. Substituindo essas expressões na equação (1), tem-se uma equação, relacionando as grandezas (variáveis) x e y, que caracteriza o lugar geométrico desejado.

Para um número N 5 de retas, não paralelas duas a duas, por exemplo, Descartes observou que a relação entre x e y tem grau maior que 2 em pelo menos uma dessas variáveis, de modo que a construção do lugar geométrico correspondente requer instrumentos mecânicos mais elaborados que a régua e o compasso.

 

Comentários gerais

Boa parte do sucesso alcançado pelo Discurso do Método se deu por sua publicação em francês, em vez do latim, este sim a língua oficial utilizada pelos textos científicos da época. Com isso, Descartes garantiu a circulação de sua obra fora dos meios exclusivamente acadêmicos, alcançando um público mais amplo, o que certamente ajudou no fato de ele ser considerado hoje o principal criador da Geometria Analítica. Além disso, a organização da obra, com ênfase nos apêndices científicos, foi a forma que Descartes encontrou para se precaver do julgamento por parte da Igreja, que poucos anos antes havia condenado Galileu por questionar alguns pontos do ensino tradicional.

Podemos observar ainda que alguns aspectos que aparecem no desenvolvimento algébrico de Descartes estão presentes até hoje em nossos livros de Matemática:

· O uso da notação x e y para indicar os eixos coordenados. Na solução descrita neste texto, os    eixos de referência são ortogonais, pois a1 = 90o, o que nem sempre ocorre no problema de    Pappus. Através de sua ampla correspondência, porém, sabemos que Descartes aplicou seu    método na solução de outros problemas geométricos, escolhendo sempre que possível eixos    ortogonais, como os que utilizamos atualmente na Geometria Analítica.

· O uso das letras a, b, c, ... para indicar grandezas conhecidas e x, y, z para denotar grandezas    desconhecidas ou variáveis. A partir da obra de Descartes, essa notação tornou-se padrão nos    livros e artigos de Matemática.

A solução encontrada por Descartes indica que em alguns casos é bastante interessante algebrizar um problema geométrico. No problema em questão, por exemplo, o método facilitou a generalização da solução para qualquer número N de retas. Outros bons exemplos do uso da Geometria Analítica são vistos em [5]. Nem sempre, porém, essa técnica facilita a solução de um problema geométrico, de modo que o(a) estudante deve encarar a Geometria Analítica como uma ferramenta a mais, e não a única, com a qual ele(a) deve se familiarizar. Uma excelente discussão sobre esse tema é encontrada em [6].

 

Referências

[1] Descartes, R. The Geometry of Rene Descartes. Trad. D. E. Smith e M. L. Latham. New York:       Dover, 1954.
[2] Wagner, E. Um pouco sobre Descartes. RPM 19.
[3] Freitas, J. O. G. A Geometria torna-se Álgebra. RPM 27.
[4] Garbi, G. G. A Rainha das Ciências. Livraria da Física, 2008.
[5] Wagner, E. Sobre o ensino de Geometria Analítica. RPM 41.
[6] Shine, C. Y. Geometria com contas. 21 Aulas de Matemática Olímpica. SBM, 2009.

1 Matemático alexandrino do século IV, comentarista das obras de Euclides e Apolônio, que exerceu grande influência no ressurgimento da Matemática no século XVII.

 

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Recreação

Preencha o interior das bolinhas com os números 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9, sem repeti-los, de modo que as bolinhas das linhas fbcdg, abcde e hbcdi tenham a mesma soma 19. Refaça a brincadeira para obter as somas 21, 23, 25, 27, 29 ou 31.

Enviado por Albérico Henrique dos Santos.