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José Paulo Carneiro
Introdução As figuras 1 e 2 mostram um salame cortado por uma faca. Na primeira, ele foi cortado “certinho” e na segunda, “enviesado”. Geometricamente, o que se fez foi seccionar um cilindro circular reto por um plano. No primeiro caso, o plano é perpendicular ao eixo do cilindro. No segundo, ele é oblíquo, isto é, nem paralelo nem perpendicular ao eixo do cilindro. É provável que a maioria das pessoas familiarizadas com Geometria reconheça que a seção, no primeiro caso, é um círculo e, no segundo, uma elipse, mesmo que, na figura 1, o círculo “pareça” uma elipse, devido à perspectiva necessária para representar figuras tridimensionais num papel plano. Que a seção da figura 1 seja um círculo decorre da própria defi nição de cilindro circular reto. Sua superfície lateral é gerada por uma reta (geratriz) que gira em torno de uma reta paralela (eixo), de modo que cada ponto da superfície descreve uma circunferência em um plano perpendicular ao eixo (figura 3). E, no segundo caso, será que se pode justificar que a seção é, de fato, uma elipse? A resposta é sim, como vamos mostrar.
Primeira justificativa Na figura 4, temos uma superfície cilíndrica S, de eixo e e raio r, cortada por um plano π, oblíquo em relação ao eixo. A seção é a curva C. Queremos provar que C é uma elipse. Há várias definições equivalentes de elipse (veja, por exemplo, RPM 68, p. 44). Vamos utilizar a mais usual: dados, em um plano, dois pontos F1 e F2 e um comprimento 2a > F1 F2 , então a elipse de focos F1 e F2 e eixo maior 2a é o lugar geométrico dos pontos X desse plano tais que XF1 + XF2 = 2a. Suponha agora que, na figura 4, você introduza uma esfera S1 tangente internamente ao cilindro, até que ela toque o plano π “por cima” no ponto T, e outra esfera S2 tangente internamente ao cilindro toque o plano π “por baixo” no ponto W (figura 7). Para prosseguir nossa demonstração, precisamos recordar alguns fatos sobre tangência. Em primeiro lugar, dada uma circunferência de centro O num plano e um ponto P desse plano (figura 6), se construirmos as retas tangentes por P à circunferência obtendo os pontos de contato X e Y, então os comprimentos PX e PY são iguais. De fato, os triângulos POX e POY são congruentes. Pensando no espaço, traçando as tangentes por um ponto P a uma esfera, os segmentos determinados por P e pelos pontos de tangência na esfera são todos iguais (PX = PY = PZ ...). Voltando ao nosso cilindro, se agora tomarmos um ponto G qualquer da curva C, então GT é tangente à esfera S1. Por outro lado, o segmento GU, ao longo da geratriz do cilindro que passa por G, é também tangente a S1 (figura 8). Logo, GT = GU. Analogamente, GW é tangente à esfera S2. Por outro lado, o segmento GV ao longo da geratriz do cilindro que passa por G é também tangente a S2. Logo, GW = GV. Finalmente, GT + GW = GU + GV, que é a distância entre os centros das esferas S1 e S2, a qual é a mesma para qualquer posição do ponto genérico G. Logo, todos os pontos da curva C pertencem à elipse de focos T e W com comprimento do eixo maior igual à distância entre os centros das duas esferas. Nota histórica: A ideia dessa demonstração é devida ao matemático belga Dandelin (1794–1847), que a utilizou em seções de um cone.
Segunda justificativa No ensino médio, é comum apresentar pela primeira vez a elipse (assim como as outras cônicas) no contexto da Geometria de Coordenadas. Pode-se fazer uma outra demonstração de que a seção em causa é uma elipse, usando coordenadas. Chamando de O o ponto em que o plano π corta o eixo e do cilindro, consideremos o plano Π, perpendicular ao eixo e passando por O. Os planos π e Π se intersectam segundo a reta p, a qual determina na superfície S os pontos A e B (figura 9), que pertencem à curva C. Como as geratrizes do cilindro são perpendiculares ao plano Π, a curva C se projeta ortogonalmente sobre o plano Π segundo a circunferência de diâmetro AB e, enquanto o ponto genérico G descreve a curva C, sua projeção ortogonal K sobre Π descreve essa circunferência. A reta perpendicular a AB por G no plano π corta AB no ponto J, de modo que a razão é constante e igual a m = cosa, sendo a o ângulo agudo entre os planos π e Π. Imaginemos que o plano π gire em torno de AB do ângulo a até coincidir com Π. A curva C se transformará na curva C’, o ponto G em G’, e vamos obter, no plano π, a figura 10. Fixando no plano Π o eixo das abscissas como sendo AB e o eixo das ordenadas perpendicular passando por O, então, se G’ tiver coordenadas (x, y), o ponto K terá coordenadas (x, my), já que KJ = mGJ = mG’J = my. Porém, à medida que G’ descreve a curva C’, o ponto K descreve a circunferência de centro na origem e raio r. Logo: x2 + (my)2 = r2, isto é: que é reconhecidamente a equação de uma elipse com centro na origem e semieixos de comprimentos r e r/m. (Observação: O raciocínio foi feito para o caso de coordenadas positivas; para o caso de coordenadas negativas, basta usar o valor absoluto, que desaparecerá pela elevação ao quadrado.) Mas, se a curva C’ é uma elipse, também o é a curva C, já que C’ foi obtida de C por uma rotação, que é uma isometria, ou seja, um movimento rígido, que preserva distâncias. Conclusão: Da próxima vez que você cortar um salame enviesado, ele poderá ter o mesmo gosto que antes, mas você se sentirá mais sábio...
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Matemático russo recusa prêmio de US$ 1 milhão Em junho deste ano o Instituto Clay de Matemática promoveu uma conferência em Paris para comemorar a resolução da conjectura de Poincaré pelo matemático russo Grigory Perelman. Posteriormente, Dr. Perelman informou ter decidido não aceitar o prêmio de um milhão de dólares oferecido pelo Instituto. Perelman, tido com excêntrico e recluso, solucionou a conjectura em artigos publicados na internet nos anos de 2002 e 2003. Quando a solução do problema foi confirmada, em 2006, ele foi indicado para receber a Medalha Field - considerada o Nobel da Matemática - mas recusou o prêmio. Na ocasião, o matemático afirmou que a medalha era irrelevante para ele e que o fato de a solução estar correta já seria reconhecimento suficiente. Ele não compareceu à entrega da medalha, programada para ser feita pelo do Rei Juan Carlos, da Espanha, durante o Congresso Internacional de Matemáticos, em Madri, em 2006. O congresso é realizado a cada quatro anos. A conjectura de Poincaré era um dos sete desafios levantados pelo Instituto Clay para os chamados Prêmios do Milênio, lançados no ano 2000. Os prêmios foram criados para chamar a atenção e recompensar a solução de alguns dos problemas mais difíceis enfrentados pelos matemáticos na virada do milênio. A conjectura de Poincaré foi o único dos problemas solucionado até agora. Ainda neste ano, o Instituto Clay anunciará como o dinheiro do prêmio vai ser utilizado para beneficiar a Matemática. |