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Geraldo Ávila Introdução O conceito de continuidade é apresentado em alguns livros do ensino médio, às vezes até com a definição que é geralmente utilizada em cursos de Análise. Trata-se de uma definição sofisticada e difícil, que só começou a aparecer setenta anos após as primeiras ideias de continuidade. E isso só foi possível depois que os matemáticos haviam lidado com vários tipos de funções defi nidas por séries infinitas e que, surpreendentemente, exibiam descontinuidades de vários tipos. Como esses exemplos não são acessíveis aos estudantes do ensino médio, eles não têm o devido preparo para entender o porquê dessa definição de continuidade. Pretendemos, no presente artigo, prestar alguns esclarecimentos sobre o assunto. Nosso tratamento é feito de um ponto de vista histórico, e nesse sentido ele complementa o artigo dos professores Antônio Luiz Pereira e Ernesto Rosa na RPM 72.
Euler e d’Alembert
função contínua seria aquela dada por uma única fórmula ou expressão analítica, como, por exemplo (figura 1), y = x2 – 1 em x A divergência de pontos de vista entre Euler e d’Alembert não pôde ser resolvida na época, simplesmente porque o próprio Cálculo carecia de uma fundamentação adequada, a qual só começaria a se desenvolver por volta de 1820. E durante todo esse tempo nunca ficou bem claro o que era realmente uma função contínua além do que concebiam d’Alembert e Euler.
O trabalho de Bolzano Foi num memorável trabalho de 1817, de autoria de Bernardo Bolzano (1771-1848), que a definição moderna de continuidade começa a aparecer pela primeira vez. Essa definição é a seguinte: Uma função f (x) [definida num intervalo] varia segundo a lei da continuidade se a diferença f (x +w) – f (x) pode tornar-se [em valor absoluto] menor que qualquer valor [positivo] dado, tomando w > 0 bastante pequeno. Ele utilizou essa definição para demonstrar o chamado teorema do valor intermediário, que tem o seguinte enunciado (veja a figura 2): Se uma função f definida num intervalo [a, b] varia segundo a lei da continuidade e é tal que f (a) Trata-se de um teorema geometricamente tão evidente que ninguém antes de Bolzano pensou em demonstrá-lo. Como Bolzano vivia em Praga, afastado de Paris, que era o centro científico e intelectual da Europa nessa época, seu trabalho ficou praticamente ignorado por décadas.
O trabalho de Bolzano é um marco importante no desenvolvimento da Análise, embora contenha falhas, principalmente porque na época ainda não havia uma teoria dos números reais. Hoje em dia esse teorema figura em todos os livros introdutórios de Análise, e sua demonstração utiliza a teoria dos números reais e a definição moderna de continuidade que se inicia com Bolzano e se aperfeiçoa com Weierstrass (1815-1897). Não há como apresentar a demonstração desse teorema no ensino médio, nem num primeiro curso de Cálculo, justamente pela falta desse embasamento sobre os números reais.
Cauchy e o exemplo de Abel Augustin Louis-Cauchy (1789-1857) foi o matemático mais influente na Paris da primeira metade do século XIX. Num livro de 1823 ele anuncia um programa de tornar rigorosos os métodos da Análise (que era o Cálculo que vinha sendo praticado havia mais de um século). Nesse livro ele define continuidade praticamente como Bolzano e utiliza esse conceito para provar que uma série infinita de funções contínuas é uma função contínua. Logo a seguir, em 1826, o ilustre norueguês Niels Henrik Abel (1802-1829) deu um exemplo de uma tal série, provando que Cauchy estava errado. A série é e a sua soma é a função periódica de período 2p, dada por f(x) = Uma vez definida no intervalo –p
Valor intermediário e continuidade O teorema do valor intermediário parece ser equivalente a dizer que o gráfico de uma função contínua num intervalo não apresenta “ruptura”, ou seja, como também se costuma dizer, pode ser desenhado sem tirar o lápis do papel. Embora isso não seja verdade, os matemáticos do século XIX pensavam que fosse; e que sua recíproca fosse verdadeira, isto é, que uma função cujo gráfico não apresentasse rupturas seria contínua. E eles adotaram essa definição (gráfico sem rupturas) de continuidade por muitas décadas. Henri Lebesgue (1875-1941), em seu livro (Leçons sur l’Integration, p. 96 da edição de 1926), conta que essa crença na equivalência das duas definições de continuidade prevaleceu na França pelo menos até 1875, quando Jean-Gaston Darboux (1842-1917) mostrou que isso não era verdade; e realmente é possível construir funções definidas em intervalos cujos gráficos satisfazem a propriedade do valor intermediário e que, no entanto, são descontínuas em todos os pontos de seus domínios. Não obstante isso, consideramos perfeitamente natural explicar aos alunos do ensino médio que a ideia de continuidade é muito parecida – mas não equivalente – à propriedade do valor intermediário. Isso permite dar aos alunos uma ideia do que os matemáticos esperavam que fosse a continuidade de uma função definida em todo um intervalo. É claro que se deve explicar a eles que continuidade implica a propriedade do valor intermediário, mas a recíproca não é verdadeira. Isso tem a virtude adicional de mostrar-lhes que em Matemática é comum o progresso acontecer por erros e acertos; que matemáticos ilustres, como Bolzano e Cauchy, também cometeram erros, que só os avanços posteriores puderam revelar. Isso também é muito educativo.
Alguns exemplos concretos Alguns livros do ensino médio, depois de darem a definição moderna de continuidade (praticamente a mesma de Bolzano e Cauchy), explicam que uma função f(x) é descontínua num ponto x0 se, ou não é definida nesse ponto, ou não tem limite com x tendendo a x0, ou esse limite existe mas não coincide com o valor da função em x0. Vejamos um exemplo simples: a função real y = Outro exemplo: a função y = 1/x está definida e é contínua em todos os valores x Uma função como Mas f(x) = x + 3 faz sentido mesmo para x = 3, e x + 3 = 6 quando x = 3; e 6 é o limite de f(x) quando x tende a 3. Portanto, é natural incorporar o número 3 ao domínio da função, definindo f nesse ponto como sendo 6, isto é, f (3) = 6. Daí dizermos que x = 3 é uma descontinuidade removível. O mais natural é definir a função mediante f (x) = x + 3 desde o início, e assim ela estará definida e será contínua para todo x, mesmo x = 3. Um exemplo mais significativo, que ocorre num primeiro curso de Cálculo, é o da função f (x) = sen x/x, que está definida para todo x ≠ 0; e, como se demonstra, o limite dessa função com x tendendo a zero é igual a 1. Temos aqui uma descontinuidade removível, pois a função passa a ser contínua para todo x, desde que ponhamos f (0) = 1; e trata-se de uma autêntica descontinuidade removível, em que não é visível para os iniciantes um fator x no numerador para cancelar o do denominador. Tal fator só aparece quando utilizamos a série infinita que representa sen x, qual seja, senx = x – Esses exemplos são dados aqui apenas para esclarecer o professor que deseja passar a seus alunos uma primeira noção de descontinuidade, não necessariamente para ser discutida com eles em profundidade. A propósito, é bom notar que deixamos sem demonstração vários dos fatos mencionados, como a continuidade de y =
1 A demonstração que Cauchy pensou estar correta exige que a série convirja uniformemente, um outro conceito que só cabe ser explicado num curso de Análise.
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