Geraldo Ávila
CE da RPM

Introdução

O conceito de continuidade é apresentado em alguns livros do ensino médio, às vezes até com a definição que é geralmente utilizada em cursos de Análise. Trata-se de uma definição sofisticada e difícil, que só começou a aparecer setenta anos após as primeiras ideias de continuidade. E isso só foi possível depois que os matemáticos haviam lidado com vários tipos de funções defi nidas por séries infinitas e que, surpreendentemente, exibiam descontinuidades de vários tipos. Como esses exemplos não são acessíveis aos estudantes do ensino médio, eles não têm o devido preparo para entender o porquê dessa definição de continuidade.

Pretendemos, no presente artigo, prestar alguns esclarecimentos sobre o assunto. Nosso tratamento é feito de um ponto de vista histórico, e nesse sentido ele complementa o artigo dos professores Antônio Luiz Pereira e Ernesto Rosa na RPM 72.

 

Euler e d’Alembert

A noção de continuidade aparece pela primeira vez em meados do século XVIII, numa discussão entre Euler (1703-1783) e d’Alembert (1717-1783) em torno de um problema matemático sobre as vibrações de uma corda esticada, como a corda de um violino. Eles não se entendiam sobre o tipo de função que poderia ser admitida para descrever o perfil inicial da corda; e nessa discussão a palavra continuidade foi usada várias vezes:

função contínua seria aquela dada por uma única fórmula ou expressão analítica, como, por exemplo (figura 1),

y = x2 – 1 em x 0 e y = x – 1 em x 0.

A divergência de pontos de vista entre Euler e d’Alembert não pôde ser resolvida na época, simplesmente porque o próprio Cálculo carecia de uma fundamentação adequada, a qual só começaria a se desenvolver por volta de 1820. E durante todo esse tempo nunca ficou bem claro o que era realmente uma função contínua além do que concebiam d’Alembert e Euler.

 

O trabalho de Bolzano

Foi num memorável trabalho de 1817, de autoria de Bernardo Bolzano (1771-1848), que a definição moderna de continuidade começa a aparecer pela primeira vez. Essa definição é a seguinte:

Uma função f (x) [definida num intervalo] varia segundo a lei da continuidade se a diferença f (x +w) – f (x) pode tornar-se [em valor absoluto] menor que qualquer valor [positivo] dado, tomando w > 0 bastante pequeno.

Ele utilizou essa definição para demonstrar o chamado teorema do valor intermediário, que tem o seguinte enunciado (veja a figura 2):

Se uma função f definida num intervalo [a, b] varia segundo a lei da continuidade e é tal que f (a) f (b), então, dado qualquer número d compreendido entre f (a) e f (b), existe pelo menos um ponto c compreendido entre a e b tal que f (c) = d.

Trata-se de um teorema geometricamente tão evidente que ninguém antes de Bolzano pensou em demonstrá-lo. Como Bolzano vivia em Praga, afastado de Paris, que era o centro científico e intelectual da Europa nessa época, seu trabalho ficou praticamente ignorado por décadas.


figura 2

O trabalho de Bolzano é um marco importante no desenvolvimento da Análise, embora contenha falhas, principalmente porque na época ainda não havia uma teoria dos números reais. Hoje em dia esse teorema figura em todos os livros introdutórios de Análise, e sua demonstração utiliza a teoria dos números reais e a definição moderna de continuidade que se inicia com Bolzano e se aperfeiçoa com Weierstrass (1815-1897). Não há como apresentar a demonstração desse teorema no ensino médio, nem num primeiro curso de Cálculo, justamente pela falta desse embasamento sobre os números reais.

 

Cauchy e o exemplo de Abel

Augustin Louis-Cauchy (1789-1857) foi o matemático mais influente na Paris da primeira metade do século XIX. Num livro de 1823 ele anuncia um programa de tornar rigorosos os métodos da Análise (que era o Cálculo que vinha sendo praticado havia mais de um século). Nesse livro ele define continuidade praticamente como Bolzano e utiliza esse conceito para provar que uma série infinita de funções contínuas é uma função contínua. Logo a seguir, em 1826, o ilustre norueguês Niels Henrik Abel (1802-1829) deu um exemplo de uma tal série, provando que Cauchy estava errado. A série é

e a sua soma é a função periódica de período 2p, dada por

f(x) = se – p < x < p e f(–p) = f(p ) = 0

Uma vez definida no intervalo –p x p, essa função f se estende a toda a reta por periocidade de período 2p, como ilustra a figura 3. Esse exemplo de Abel é notável, porque mostra pela primeira vez o quanto os matemáticos se enganavam (e matemáticos de primeira linha, como Cauchy) ao lidar com séries infinitas1. E foram essas séries que começaram a exibir fenômenos de descontinuidade de maneira natural, não como os exemplos artificiais que se costumam apresentar no ensino médio ou mesmo em disciplinas de Cálculo. Isso estava a exigir uma conceituação mais adequada da própria ideia de descontinuidade. Vale dizer que Fourier (1768-1830), em seus estudos sobre propagação do calor em sólidos, já vinha lidando com tais séries desde o final do século XVIII, de forma que por volta de 1820 já era sabido que as somas de certas séries infinitas apresentavam descontinuidades inesperadas. É importante atentar para esses fatos para bem entender que os matemáticos em geral não inventam conceitos novos enquanto não são devidamente motivados pelos problemas que encontram em suas investigações. Daí também ser importante no ensino só introduzir conceitos novos quando eles realmente são relevantes nos tópicos que estejam sendo estudados.


figura 3

Valor intermediário e continuidade

O teorema do valor intermediário parece ser equivalente a dizer que o gráfico de uma função contínua num intervalo não apresenta “ruptura”, ou seja, como também se costuma dizer, pode ser desenhado sem tirar o lápis do papel. Embora isso não seja verdade, os matemáticos do século XIX pensavam que fosse; e que sua recíproca fosse verdadeira, isto é, que uma função cujo gráfico não apresentasse rupturas seria contínua. E eles adotaram essa definição (gráfico sem rupturas) de continuidade por muitas décadas.

Henri Lebesgue (1875-1941), em seu livro (Leçons sur l’Integration, p. 96 da edição de 1926), conta que essa crença na equivalência das duas definições de continuidade prevaleceu na França pelo menos até 1875, quando Jean-Gaston Darboux (1842-1917) mostrou que isso não era verdade; e realmente é possível construir funções definidas em intervalos cujos gráficos satisfazem a propriedade do valor intermediário e que, no entanto, são descontínuas em todos os pontos de seus domínios.

Não obstante isso, consideramos perfeitamente natural explicar aos alunos do ensino médio que a ideia de continuidade é muito parecida – mas não equivalente – à propriedade do valor intermediário. Isso permite dar aos alunos uma ideia do que os matemáticos esperavam que fosse a continuidade de uma função definida em todo um intervalo. É claro que se deve explicar a eles que continuidade implica a propriedade do valor intermediário, mas a recíproca não é verdadeira. Isso tem a virtude adicional de mostrar-lhes que em Matemática é comum o progresso acontecer por erros e acertos; que matemáticos ilustres, como Bolzano e Cauchy, também cometeram erros, que só os avanços posteriores puderam revelar. Isso também é muito educativo.

 

Alguns exemplos concretos

Alguns livros do ensino médio, depois de darem a definição moderna de continuidade (praticamente a mesma de Bolzano e Cauchy), explicam que uma função f(x) é descontínua num ponto x0 se, ou não é definida nesse ponto, ou não tem limite com x tendendo a x0, ou esse limite existe mas não coincide com o valor da função em x0. Vejamos um exemplo simples: a função real y = só está definida para x 0 e é contínua em todo esse domínio. Mas não é útil dizer que essa função é descontínua em x = – 3 ou em qualquer valor negativo de x, em que ela não está definida. Pois esses pontos nada têm a ver com a função considerada!

Outro exemplo: a função y = 1/x está definida e é contínua em todos os valores x 0. Ela goza da propriedade do valor intermediário em qualquer intervalo todo contido no semieixo positivo (0, + ¥) ou no semieixo negativo (– ¥, 0), em particular, em cada um desses semieixos, que também são intervalos; mas não é contínua em intervalos contendo a origem, pois a função não está definida em x = 0. No entanto, é costume dizer que ela é descontínua nesse ponto. Isso é um abuso de linguagem, aliás, muito conveniente, pois é um modo de dizer que a função não pode ser estendida ao ponto x = 0 de modo a se tornar contínua nesse ponto. Isso porque a função tende a +¥ quando x tende a zero pela direita e a –¥ quando x tende a zero pela esquerda. A razão de privilegiar x = 0 no caso presente, e não os números negativos no exemplo anterior da função y = , é que agora o ponto em questão está muito “encostado” no domínio da função, o que não acontece com os números negativos em relação à função anterior. Muito encostado significa que em qualquer intervalo contendo x = 0 existem infinitos pontos do domínio da função.

Uma função como está definida para todo x ≠ 3. Mas esse é um exemplo muito artificial, pois é fácil ver que o fator x – 3 pode ser fatorado no numerador, portanto, cancelado. Assim, enquanto x for diferente de 3,

Mas f(x) = x + 3 faz sentido mesmo para x = 3, e x + 3 = 6 quando x = 3; e 6 é o limite de f(x) quando x tende a 3. Portanto, é natural incorporar o número 3 ao domínio da função, definindo f nesse ponto como sendo 6, isto é, f (3) = 6. Daí dizermos que x = 3 é uma descontinuidade removível. O mais natural é definir a função mediante f (x) = x + 3 desde o início, e assim ela estará definida e será contínua para todo x, mesmo x = 3.

Um exemplo mais significativo, que ocorre num primeiro curso de Cálculo, é o da função f (x) = sen x/x, que está definida para todo x ≠ 0; e, como se demonstra, o limite dessa função com x tendendo a zero é igual a 1. Temos aqui uma descontinuidade removível, pois a função passa a ser contínua para todo x, desde que ponhamos f (0) = 1; e trata-se de uma autêntica descontinuidade removível, em que não é visível para os iniciantes um fator x no numerador para cancelar o do denominador. Tal fator só aparece quando utilizamos a série infinita que representa sen x, qual seja,

senx = x+... = x(1 – +...).

Esses exemplos são dados aqui apenas para esclarecer o professor que deseja passar a seus alunos uma primeira noção de descontinuidade, não necessariamente para ser discutida com eles em profundidade. A propósito, é bom notar que deixamos sem demonstração vários dos fatos mencionados, como a continuidade de y = , y = 1/x, y = sen x e mesmo y = x + 3. Reiteramos que não consideramos conveniente, no ensino médio, ir além daquela definição ainda ingênua de continuidade como função definida em intervalos, cujo gráfico não apresenta rupturas.

 

1 A demonstração que Cauchy pensou estar correta exige que a série convirja uniformemente, um outro conceito que só cabe ser explicado num curso de Análise.