Antônio Luiz Pereira
IME/USP
Ernesto Rosa

Apresentação

O professor Ernesto Rosa enviou para a RPM alguns trechos, retirados de livros didáticos do ensino médio, sobre continuidade de funções reais. Ciente das falhas existentes, sugeriu que o tema fosse abordado pela RPM. O presente artigo, escrito em coautoria com o professor Antônio Luiz Pereira, do Comitê Editorial da RPM, incorpora as ideias expressas por Ernesto Rosa e amplia um pouco seu escopo.

Limite versus continuidade em um ponto

A função f: * ® , definida por y = 1/x, é uma função contínua que é descontínua no ponto x = 0. Contraditório? Não necessariamente. Veremos que, dependendo de como os conceitos são defi nidos, a frase pode ser verdadeira.

As definições modernas de limite e continuidade de funções reais em um ponto a expressam, de forma precisa, a ideia de que os valores da função devem se aproximar de um certo valor L quando a variável independente se aproxima de a. No caso da continuidade, esse limite deve ser igual a f(a). Essas definições são um tanto sofisticadas e sugerimos ao leitor que quiser se aprofundar no tema a consulta a qualquer bom texto introdutório de Análise (por exemplo [1] ou [2]). Para facilitar a leitura deste artigo, apresentaremos essas definições mais à frente. O que queremos enfatizar é que, sendo esses dois conceitos estreitamente ligados, não é surpreendente que, sob certas condições, um deles possa ser definido a partir do outro. Surge aqui, porém, uma dificuldade: os dois conceitos NÃO estão, em geral, definidos no mesmo conjunto de pontos. De fato, se f : A ® é uma função real, na definição de continuidade exige-se, em geral, que o ponto a esteja, de saída, no domínio A de f. A menos que haja menção explícita em contrário, vamos supor que isso foi feito, ou seja, admitiremos que, na definição de continuidade, apenas os pontos do domínio são considerados. Definimos aqui, para x0 pertencente ao domínio de f:

f é continua em x0

(Alguns autores tomam inicialmente um ponto real x0 qualquer e colocam a condição de esse pertencer ao domínio A como uma das exigências para a continuidade no ponto. Consideramos brevemente essa alternativa na última seção.)

Por outro lado, a defi nição de limite se aplica aos pontos de um outro conjunto, o conjunto dos pontos de acumulação de A em , geralmente denotado por A. Um ponto a Î está em A’ quando qualquer intervalo aberto contendo a contém também pontos de A distintos de a (o próprio a não precisa estar em A). Por exemplo: se A = (0;1] È {2}, então A' = [0;1]. Observe que, nesse caso, não temos A' A, nem A A'. O ponto 2, que está em A mas não em A’, é denominado um ponto isolado de A.

Definimos para a pertencente a A’:

Consideremos agora f: A ® e suponhamos que a seja um ponto na interseção A A' . Pode-se então demonstrar que f é contínua em a (segundo as definições dadas anteriormente) se, e somente se:

(1) existe L = f(x) e

(2) f(a) = L.

Nos pontos de A A’, isto é, nos pontos isolados de seu domínio, f é sempre contínua (novamente, segundo as definições dadas).

Uma vez definida a continuidade de funções em um ponto, costuma-se dizer que f é contínua em um subconjunto, B, de A se é contínua em todos os pontos de B. No caso B = A, frequentemente se diz apenas que f é contínua. Vamos apresentar a seguir alguns exemplos de funções contínuas.

 

Pontos de descontinuidade

Consideremos novamente uma função f :A ® e vejamos o que se quer dizer com a frase: “A função f é descontínua em a”.

Uma palavra de cautela antes de prosseguir: tendo em vista o significado das palavras em português, podemos ser levados a acreditar que isso já está claro: a função será descontínua em a se ela não for contínua em a. Porém, precisamos distinguir claramente uma definição matemática de um termo de seu eventual significado em uma língua “natural”. A dificuldade aqui é que a noção de continuidade não está, em geral, definida para todos os pontos. Precisamos então considerar duas situações distintas. Se a for um pontodo domínio de f, a definição consensual é exatamente como a sugerida pelo senso comum, ou seja: f é dita descontínua em a se for falso que ela é contínua em a.

Se, por outro lado, o ponto a não estiver no domínio de f, então essa definição não é aplicável, já que esses pontos não foram sequer examinados na definição de continuidade que adotamos. Assim, a frase “f é contínua em a” não é falsa nem verdadeira para esses pontos.

A maioria dos autores prefere não falar em descontinuidade nesses pontos e f não será então contínua nem descontínua em pontos fora de seu domínio. Nesse caso, a função f(x) = 1/x definida em * será contínua (pois é contínua em todos os pontos de seu domínio) e não será contínua nem descontínua no ponto x = 0.

Complemento: alternativas encontradas na literatura

Em alguns textos, a noção de continuidade é definida somente para pontos do domínio (como fizemos), mas ainda se quer falar em descontinuidade para pontos fora dele. Nesse caso, é preciso dar uma definição que não seja simplesmente a negação da continuidade.

Temos novamente dois casos a considerar, conforme a seja ou não um ponto de acumulação de A. No segundo caso, não há uma razão forte para introduzir tal definição. Os conceitos de limite e continuidade procuram descrever o comportamento da função f em pontos próximos de a, mas, nesse caso, f não está sequer definida para valores suficientemente próximos de a. Informalmente, podemos dizer que “não se enxerga” a função olhando apenas em um pequeno intervalo em torno de a.

A situação é bem diferente quando a Î A'. Nesse caso, se existe L = f(x), f pode ser “estendida” a uma função contínua em A È {a}, isto é, podemos definir uma função contínua em A È {a} que coincide com f em A simplesmente fazendo f(a) = L. Se o limite não existir, também não existirá uma tal extensão. Alguns autores entendem ser útil dizer que f é descontínua em a nesse último caso, para distinguir as duas situações.

Note-se que, se essa terminologia for adotada, a função f(x) = 1/x definida em * será ainda contínua (pois é contínua em todos os pontos de seu domínio), porém descontínua no ponto x = 0 (que está fora de seu domínio).

Como já mencionamos, alguns autores preferem, na definição de continuidade, considerar inicialmente pontos em e colocar a pertinência ao domínio como uma das condições exigidas. Nesse caso, a frase “f é descontínua em a” será falsa sempre que a estiver fora do domínio de f. É natural então, embora não obrigatório, definir a descontinuidade em qualquer ponto em como a negação da continuidade. Em particular, uma função será sempre descontínua nos pontos fora de seu domínio. Adotada essa definição, a função f: *® , definida por y = 1/x, será novamente uma função contínua que é descontínua no ponto x = 0.

 

 

Referências

[1] Lima, Elon Lages. Análise Real, vol I. IMPA, 1989.
[2] Rudin, Walter. Princípios de Análise Matemática. Ao Livro Técnico S.A. e Editora Universidade      de Brasília.