Ricardo Avelar Sotomaior Karam

Para muitos, o título deste artigo lembra a belíssima Canção do exílio de Gonçalves Dias e sua continuação seria: “As aves, que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá”. Porém, outros tantos se lembrariam de alguns professores de Matemática que tiveram ao longo de sua vida escolar, provavelmente durante os tempos de “cursinho”, e continuariam o poema da seguinte forma: “seno a cosseno b, seno b cosseno a”. Essa procura por regras mnemônicas para a simples memorização de fórmulas matemáticas, os conhecidos “macetes”, é, infelizmente, muito mais comum do que o incentivo à busca por suas deduções lógicas ou demonstrações. A ideia implícita nessa prática é a seguinte: basta que meu aluno conheça a fórmula, não é necessário que ele saiba por que a fórmula é assim! Naturalmente, essa postura não contribui em nada para fazer com que nossos estudantes entendam e, consequentemente, aprendam a gostar de Matemática1.

No presente artigo, apresento três maneiras distintas − e, a meu ver, perfeitamente compreensíveis para um aluno do ensino médio − de demonstrar as fórmulas do seno e cosseno da soma e diferença de arcos. Espero poder contribuir para que esse tipo de “macete” seja definitivamente banido de nossas aulas e também para distinguir a beleza de uma poesia da beleza de uma dedução lógica da Matemática.

A princípio, estamos interessados em demonstrar as quatro fórmulas que fornecem expressões para: sen(a + b), sen(a b), cos(a + b) e cos(a b). Porém, considerando que o seno de um ângulo é igual ao cosseno de seu complemento (sen x = cos(90ox)), que o seno é uma função ímpar (sen(−x) = −sen x) e que o cosseno é uma função par (cos(–x) = cos x), basta demonstrarmos uma delas e então será possível deduzir as outras.

 

Demonstração da fórmula para sen(a + b) pelo teorema de Ptolomeu

Pela conhecida lei dos senos para um triângulo qualquer de lados a, b e c, e ângulos A, B e C, respectivamente, temos: 2 sendo R o raio da circunferência circunscrita ao triângulo. Portanto, em uma circunferência de diâmetro unitário, ficamos com a = senA, b = senB e c = senC. (Esse fato já foi usado em [1], onde também se encontra uma demonstração de que sen(B + C) = senB cosC + senC cosB.)

Isso permite a interpretação do seno de um ângulo como o comprimento da corda defi nida por ele em uma circunferência de diâmetro unitário, como na figura 1. Com essa interpretação para o seno, consideremos o quadrilátero ABCD inscrito na circunferência como na figura 1, sendo a diagonal AC um diâmetro. O teorema de Ptolomeu (para uma demonstração, ver, por exemplo, RPM 14, seção O Leitor Pergunta) afi rma que, para qualquer quadrilátero inscrito em uma circunferência, tem-se o produto das diagonais igual à soma dos produtos dos lados opostos: AC.BD = BC.AD + CD.AB.

figura 1

Assim, a igualdade do teorema de Ptolomeu fica:

1.sen(a + b) = senacosb + senbcosa,

obtendo-se o que queríamos demonstrar:

sen(a + b) = senacosb + senbcosa.

 

Demonstração da fórmula para sen(a b) por áreas de triângulos

Em [2], o próprio título destaca a ideia de que “uma imagem vale mais do que mil palavras”. Observe a decomposição da área do triângulo da figura 2.

figura 2

A área do primeiro triângulo é (base x altura)/2 = [a b sen(ab)]/2.

E essa área é equivalente à diferença das áreas dos outros dois triângulos:

(a sena)(b cosb)/2 – (b senb)(a cosa)/2.

Assim,

[a b sen(ab)]/2 = (a sena)(b cosb)/2 – (b senb)(a cosa)/2.

Ou, sen(ab) = sena cosb – senb cosa, como queríamos demonstrar.2

A poesia de Gonçalves Dias é sem dúvida belíssima, mas, convenhamos, isso também não é lindo?

 

Demonstração da fórmula para cos(a b) pela distância entre dois pontos

Considere quatro pontos pertencentes à circunferência trigonométrica (raio unitário) como na figura 3. Suas coordenadas são P1 = (1, 0); P2 = (x2, y2); P3 = (x3, y3) e P4 = (x4, y4). Perceba que x2 = cosb, y2 = senb, x3 = cos(ab), y3 = sen(ab), x4 = cosa e y4 = sena.

Note que a distância entre os pontos P2 e P4 é igual à distância entre P3 e P1. Essa igualdade pode ser obtida da congruência entre os triângulos P2OP4 e P1OP3 (Lado − Ângulo − Lado).

figura 3

Aplicando a fórmula da distância entre dois pontos (Pitágoras!), temos:

Substituindo os valores das coordenadas:

cos2(ab) − 2cos(ab) + 1 + sen2(ab) =

cos2b− 2cosb cosa + cos2a + sen2b− 2senb sena + sen2a.

Como cos2(ab) + sen2(ab) = cos2b + sen2b = cos2a + sen2a = 1, temos:

−2cos(ab) + 2 = −2cosb cosa − 2senb sena + 2.

O que resulta na igualdade que queríamos demonstrar:

cos(ab) = cosa cosb + sena senb.

 

Referências bibliográficas

[1] CARNEIRO, J .P. Demonstrações visuais. RPM 27.

[2] NELSEN, R. Proofs without words: Exercises in visual thinking. Classroom Resource Materials. The Mathematical Association of America, 1993.

 

 

1 Sobre o papel fundamental das demonstrações nas aulas de Matemática recomendo a leitura do     inspirador artigo – decorar é preciso. Demonstrar também é – de Gilberto Garbi, publicado na     RPM68.

2 As duas primeiras demonstrações são válidas somente para a + b < 180º.