Geraldo Ávila
Comitê Editorial da RPM


Introdução

A RPM 68 publicou um valioso artigo de Gilberto Garbi, em que ele critica as ideias e métodos que têm sido adotados no ensino da Geometria. E com muita razão; tanto assim que seu artigo teve uma excelente repercussão entre os leitores da Revista. Muitos deles escreveram, ou diretamente ao autor ou à própria Revista, elogiando e aplaudindo suas críticas. Realmente, os hábitos que atualmente prevalecem no ensino da Geometria são muito diferentes dos que eram utilizados há décadas, quando então se valorizavam as demonstrações dos teoremas. Por que as coisas mudaram tanto e hoje em dia vários livros abandonaram as demonstrações, limitando-se tão somente a enunciar teoremas e defi nições, num receituário monótono de enunciados e fórmulas sem a menor justificativa?

Como veremos, isso se deve em grande parte a uma reforma do ensino da Matemática que ocorreu em meados do século passado e que ficou conhecida como “Matemática Moderna”. Como já se passaram cinco décadas, muitos dos professores de hoje já nem sabem dessa reforma, por isso julgamos conveniente refletir sobre uma experiência que deixou sequelas até os dias atuais.

A Geometria e a axiomática

Ironicamente, a Geometria, que foi a parte da Matemática que mais se prejudicou com a referida reforma, está na raiz dessa reforma. Para entender isso devemos lembrar que os fundamentos da Geometria, que nunca tinham sido questionados desde os tempos de Euclides, passaram por um cuidadoso estudo nas últimas décadas do século XIX, estudo esse que culminou num memorável livro publicado por David Hilbert (1862 - 1943). A partir de então a Geometria passou a ser um modelo de estrutura axiomática, ou seja, uma teoria matemática fundamentada em certos conceitos primitivos e axiomas, a partir dos quais os resultados são deduzidos num perfeito encadeamento lógico.1

Ao mesmo tempo outras estruturas matemáticas foram surgindo durante a maior parte do século XIX. Primeiro foram os grupos na Álgebra; depois vieram anéis, corpos e outras estruturas mais. O desenvolvimento de todas essas estruturas foi infl uenciado pelo que estava acontecendo na Geometria. Aliás, essa infl uência da Geometria cresceu ainda mais com o referido livro de Hilbert, intensificando a axiomatização da Matemática no século XX, a qual seria o carro-chefe da reforma do ensino que estava por acontecer.


Uma grande reforma do ensino

Na década dos anos 1950 começou a crescer um movimento de reforma do ensino da Matemática, sobretudo nos Estados Unidos, na França e na Bélgica, movimento esse que foi se espalhando por muitos outros países do mundo. Um dos pontos centrais da reforma era o currículo. Os promotores da reforma consideravam que a Matemática ensinada nas escolas era antiquada e se limitava aos conhecimentos adquiridos antes de 1700. Segundo eles o currículo deveria incluir progressos mais recentes, como álgebra moderna, lógica simbólica, noções de topologia e teoria dos conjuntos. E tudo deveria ser apresentado como estruturas axiomáticas, o que significava uma grande ênfase nos axiomas, nos conceitos fundamentais (como ponto, reta e plano na Geometria) e no rigor das demonstrações. Segundo os reformistas, isso teria a virtude adicional de promover a integração das várias partes da Matemática, quando no ensino tradicional essas partes eram ensinadas de maneira isolada umas das outras.

Essa reforma do ensino ficou conhecida como “Matemática Moderna”. Nos Estados Unidos o nome era new math, abreviação de new mathematics. Considerava-se essa terminologia apropriada pela introdução de novos tópicos no currículo e pela linguagem e notação de conjuntos, que passou a permear todas as séries do ensino. Até as crianças da primeira série do ensino fundamental tinham de aprender o que era conjunto vazio!... Hoje em dia ainda vários livros se ocupam de conjuntos mais do que o necessário e conveniente.


Um impulso decisivo na reforma

No dia 4 de outubro de 1957 a União Soviética lançou o primeiro satélite artificial, chamado Sputnik. Isso surpreendeu os Estados Unidos, que se preparavam para lançar um satélite havia mais de ano, o qual era muito esperado, enquanto nada se sabia do que preparava a União Soviética. O Sputnik caiu como uma bomba no orgulho americano; iniciou-se então um acalorado debate na imprensa e no Congresso daquele país sobre o que havia acontecido que eles estavam perdendo a liderança em tão importante setor de atividade científi ca e tecnológica! Os que propunham a reforma do ensino da Matemática entraram em cena, explicando que era urgente que se fizesse a reforma para que se melhorasse o aprendizado de Matemática e de ciências nas escolas. E eles contaram com o apoio dos congressistas e da imprensa. Que o ensino de Matemática não ia bem era coisa sabida. Já na 2 guerra mundial os chefes militares haviam notado a grande deficiência em Matemática e Ciências nos recrutas de baixo e alto nível intelectual. O resultado foi imediato: as agências financiadoras de pesquisa, as sociedades de Matemática, as universidades, enfim, todos se uniram nos esforços para apressar a reforma, supostamente muito necessária. Dinheiro não faltava e vinha de todas as fontes, sobretudo das agências ligadas ao Exército, à Marinha e à Aeronáutica. Esse intenso movimento de reforma nos Estados Unidos alastrou-se rapidamente pelos países das Américas e da Europa.

Mas a tão desejada reforma não vingou, e por uma razão muito simples: ela violava os princípios mais elementares do aprendizado.2 Afinal, a com preensão das formulações axiomáticas requer muita maturidade. É como no aprendizado de línguas: as crianças aprendem uma língua, não porque são submetidas a estudos de gramática, mas sim pelo convívio na família, no contato com os amiguinhos, dentro e fora da escola. Só muito depois é que podem entender o porquê de certas regras de gramática. O mesmo é verdade em relação ao ensino da Matemática, particularmente o da Geometria, onde as demonstrações só podem ser iniciadas na 7 série, após anos de aprendizado intuitivo de fatos geométricos simples.


A Matemática Moderna e a Geometria

A apresentação de certos ramos da Matemática em estruturas logicamente organizadas, como os números racionais e os complexos, a Aritmética e a Álgebra, ainda que mais fácil se comparada com a da Geometria, é ainda impraticável no ensino fundamental. Mais impraticável ainda é o ensino da Geometria axiomatizada com rigor. Euclides necessitou de cinco axiomas em sua estruturação axiomática da Geometria, mas Hilbert precisou de vinte para livrar o trabalho de Euclides de suas imperfeições. Não é de estranhar, portanto, que os reformistas do ensino nunca conseguissem achar um modo de apresentar os fatos geométricos segundo seus critérios de rigor, e que fosse, ao mesmo tempo, didaticamente viável nas escolas. Foi por causa disso que aquela geometria antiga, que, com todos os seus defeitos, tinha também muitas virtudes, foi sendo descartada. Vários reformistas propuseram uma drástica redução do que se devia ensinar de Geometria, e alguns grupos chegaram ao absurdo de propor que a Geometria fosse totalmente abolida.

As tentativas de axiomatizar rigorosamente a Geometria eram (e ainda são!) difíceis para os próprios professores. O resultado é que, no cumprimento dos programas, a Geometria ia sendo relegada para o final do ano e acabava não sendo ensinada devidamente. Desde então, depois de muitas outras reformas do ensino que têm sido implementadas até os dias de hoje, o ensino da Geometria nunca mais foi contemplado com a atenção que deve receber. Do pretenso rigor que os reformistas de 50 anos atrás recomendavam, o que ainda resta hoje em vários livros é um excesso de linguagem e notação de conjuntos. Tivemos oportunidade de examinar vários textos de uso corrente nas escolas; e notamos que muitos deles chegam ao exagero de enunciar teorema após teorema sem ao menos mencionar que tais proposições precisam ser demonstradas! Do mesmo modo, outros resultados, como as fórmulas de áreas e volumes, são apresentadas como simples “decorebas”, num verdadeiro insulto à inteligência dos leitores.


A Geometria e as demonstrações

Não podemos dizer que antigamente tudo era melhor do que hoje. Sim, é verdade que havia mais ênfase em teoremas e demonstrações, mas não havia muita preocupação com uma boa didática e com um estilo de escrever direcionado ao jovem, como acontece hoje. Assim, embora registremos o lado negativo de muitos livros que encontramos no mercado, devemos reconhecer o que eles têm de bom. Infelizmente não temos condições de ver o que se passa dentro das salas de aula nas escolas, pois muitas vezes o professor dispõe de um bom livro, mas não o utiliza da maneira mais adequada, ou utiliza o livro apenas para atribuir exercícios e problemas a seus alunos.

Encontramos falhas em bons livros que examinamos. Alguns apresentam certos teoremas e demonstrações de maneira satisfatória mas, ao mesmo tempo, enunciam outros teoremas sem qualquer justificativa. Exemplo disso encontramos num livro que trata a área do círculo de maneira muito adequada, decompondo o círculo em setores circulares, arrumados à maneira de um retângulo; e chega à fórmula da área A = πr2 utilizando a do retângulo e passando ao limite com o crescer do número de setores do círculo. Mas para fazer isso o autor utiliza a fórmula que dá o comprimento da circunferência C = 2πr sem qualquer demonstração ou justificativa; e é mais fácil estabelecer esta fórmula do que a da área!

Temos visto livros muito benfeitos, começando a Geometria nas primeiras séries do ensino fundamental com figuras geométricas apresentadas de modo simples e intuitivo, e só começando as demonstrações na 7 série. A nosso ver o professor deve começar com demonstrações de teoremas que não sejam verdades evidentes ao senso comum para que o aluno possa entender a necessidade de demonstrações. Sendo exposto ao encadeamentodas demonstrações, o aluno vai adquirindo maturidade para entender que a sequência de definições, teoremas e demonstrações não pode continuar indefinidamente. Assim ele vai se preparando para entender que alguns conceitos têm de ficar sem definição e algumas proposições, dentre as mais evidentes por simples exame de uma boa figura, têm de ser escolhidas para ficar sem demonstração. Estas proposições são os postulados ou axiomas. É preciso também ficar claro que nem todas as proposições evidentes são axiomas, desde que possam ser inseridas no encadeamento dedutivo. Como antigamente, toda a Geometria Plana pode e deve ser desenvolvida no ensino fundamental, ficando para o ensino médio toda a Geometria Espacial, sem omitir as demonstrações dos teoremas.

As demonstrações devem ser feitas de maneira compreensível para os alunos, e nem sempre com todo o rigor lógico, sendo necessário atentar para os requisitos didáticos. Exemplos são os dois teoremas já comentados anteriormente, o que afirma que a razão do comprimento da circunferência para o diâmetro é a mesma em todos os círculos, um resultado que leva à fórmula C = 2πr; ou o que afirma que a área de um círculo de raio r é dada por A = πr2. A demonstração possível desses teoremas no ensino básico requer o uso de passagem ao limite, e isso tem de ser feito de maneira intuitiva, não sendo necessário ou conveniente insistir numa definição precisa de limite, o que exigiria também a utilização de propriedades dos números reais que não estão ao alcance desse nível de ensino. Mas o que não se pode admitir é que essas coisas sejam ensinadas dogmaticamente, sem qualquer justificativa. Em casos como esses da circunferência e da área do círculo, as demonstrações possíveis seriam perfeitamente aceitas como rigorosas nos tempos de Euler ou Legendre, mas não pelo rigor vigente nos dias de hoje.

É preciso atentar para outro fato muito importante: embora a Geometria seja a disciplina onde melhor se retrata o aspecto dedutivo da Matemática, teoremas e demonstrações não são coisas restritas à Geometria, mas estão presentes em todas as disciplinas matemáticas. Por exemplo, quando o professor utiliza a técnica de completar quadrados para deduzir a fórmula de solução da equação do 2 grau, ele está demonstrando um teorema. O fato de não tê-lo enunciado explicitamente na clássica forma de hipótese tese não importa, pois realmente muitas vezes é melhor essa informalidade que o figurino dos enunciados formais. Esperamos que essas reflexões sejam de utilidade para quem ensina ou se prepara para ensinar. Devemos nos lembrar de que a primeira qualidade de um bom professor é conhecer bem o que vai ensinar; aliás, saber mais do que aquilo que vai ensinar.

 

1 Já falamos um pouco sobre o método axiomático na RPM 45 (também no capítulo 8 de nosso livro Várias faces da Matemática, publicado pela Editora Blücher).

2 Há um livro muito informativo sobre o que foi a reforma nos Estados Unidos, de autoria do Professor Morris Kline. Ele foi traduzido no Brasil com o título de O fracasso da Matemática Moderna, publicado pela IBRASA em 1976. O título do original inglês é Why Johnny can’t add.