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Chico Nery
Lecionar é um ato de ensinar, mas é também um ato de aprender. Em qualquer turma de alunos com as quais nós, professores, trabalhamos, não é incomum existir pelo menos um aluno com certo pendor para matemática. Esses alunos geralmente nos surpreendem não somente pelas suas respostas, mas principalmente pelas suas perguntas. Certo dia, durante uma aula, um aluno desses, que chamarei de Gabriel, trouxe-me a seguinte curiosidade: − Professor, eu percebi que os números naturais ímpares podem ser escritos como a diferença dos quadrados de dois naturais consecutivos. Veja: 1 = 12 − 02, 3 = 22 − 12, 5 = 32 − 22, 7 = 42 − 32, ... Desconfio que isso é sempre verdade. Como provar? Com esse tipo de colocação, Gabriel estava demonstrando não apenas gostar de números, mas também ser um observador de padrões, que são duas características típicas de um matemático. Depois de pensar um pouco, respondi: Um número natural ímpar é da forma 2k + 1, sendo k um número natural. Repare que 2k + 1 = k2 + 2k + 1 − k2 = (k + 1)2 − k2. Pronto, está provada sua "desconfiança" (tese). Como exemplo, tomemos o número ímpar 71. Sendo 2k + 1 = 71, temos k = 35 e k + 1 = 36. Portanto, 71 = 362 − 352. A sala toda acompanhava nossa conversa quando Alan, um outro desses bons alunos em matemática, interpelou-nos com a seguinte observação: − Professor, eu consegui escrever o 15 como diferença de quadrados de duas maneiras distintas: 15 = 82 − 72 e 15 = 42 − 12. Gabriel, atento como é, levantou a seguinte curiosidade: − Será que todo número natural pode ser escrito assim, como diferença de quadrados de dois números naturais? Alan, que é habilidoso nos cálculos, acrescentou a seguinte dúvida: − Escolhi dois números pares, o 8 e o 10, um eu consegui e o outro não: 8 = 32 − 12, mas 10 = ? Será que nem os todos números pares podem ser escritos assim? A aula estava pegando fogo, quando fomos interrompidos pelo sinal. Estando em casa, estômago satisfeito e banho tomado, refugiei-me no escritório, a fim de pensar com calma nos problemas levantados pelo Gabriel e pelo Alan. Relatarei a seguir quais conclusões tirei e que na aula seguinte comentei com os meninos, claro que procurando utilizar uma linguagem acessível a eles. 1. Primeiramente escolhi um número ímpar primo, por exemplo o 5. Estamos querendo: 5 = a2 − b2 ou 5 = (a + b) (a − b). Sendo 5 um número primo, a única forma de fatorá-lo em dois fatores positivos é: 5 = 5 × 1. Temos, então: 5 × 1 = (a + b) (a − b), a e b naturais, (podemos supor a > b) que nos leva ao sistema: , que tem solução a = 3, b = 2, que leva a 5 = 32 − 22. Se, no lugar de 5, colocarmos um primo p, diferente de 2, o sistema fornecerá a solução: , que leva a , (a e b são naturais, já que p é primo ímpar), que me levou à 1ª conclusão. 1ª conclusão: Quando um número natural ímpar é primo, ele pode ser escrito na forma a2 – b2, com a e b inteiros, e de uma única maneira. Para o que vem a seguir, informo que em aulas anteriores já havia comentado com os alunos as seguintes propriedades: P1 – Ao escrevermos todos os produtos de dois fatores naturais que resultam num natural n, teremos escrito todos os divisores naturais de n. P2 – Se um número natural n tem decomposição em fatores primos positivos: a quantidade de divisores naturais de n é igual a (α1 +1)(α2 +1)...(αm +1). P3 – Se um número natural n com decomposição em primos igual , é um quadrado perfeito, então, os números α1, α2, ..., αm são todos pares; logo, a quantidade de seus divisores naturais (α1 +1)(α2 +1)...(αm +1) é ímpar. 2. Em seguida, escolhi dois números ímpares compostos, isto é, não primos, sendo um deles quadrado perfeito: o 21 e o 81. Decompus os dois números em produtos de dois fatores de todas as formas possíveis: 21 = 21 . 1 = 7 . 3 (os divisores do 21 são: 1, 3, 7 e 21) 81 = 81 . 1 = 27 . 3 = 9 . 9 (os divisores do 81 são: 1, 3, 9, 27 e 81). Cada uma das formas de fatorar esses números gera um sistema linear do tipo: , com c1 e c2 ímpares (supomos a > b e c1 > c2) e, portanto, os sistemas são sempre possíveis, já que, por adição e subtração, encontramos No caso do 21, temos: ou a = 11 e b = 10 e, portanto, 21 = 112 - 102, ou a = 5 e b = 2 e, portanto, 21 = 52 - 22. No caso do 81, temos: ou a = 41 e b = 40 e, portanto, 81 = 412 – 402, ou a = 15 e b = 12 e, portanto, 81 = 152 – 122, ou a = 9 e b = 0 e, portanto, 81 = 92 – 02. Como qualquer número natural n ímpar e composto ao ser escrito como produto de dois fatores naturais, n = c3 . c2, obriga os dois fatores a serem ímpares, o sistema linear gerado por c1 e c2 (como os exemplificados anteriormente) é sempre possível. Se n não é um quadrado perfeito, então n tem um número par de divisores naturais, digamos 2k divisores, k natural, que vão gerar k sistemas lineares possíveis. Se n é um quadrado perfeito, então terá um número ímpar de divisores naturais, digamos 2k + 1, k natural, divisores que irão gerar k + 1 sistemas lineares possíveis, como sugerem os dois exemplos considerados anteriormente. Tentando evitar maiores formalizações, mantendo as ideias extraídas dos dois exemplos, vislumbrei a seguinte conclusão. 2 conclusão: Quando um número natural ímpar é composto, ele possui 2k ou 2k + 1 divisores naturais, conforme não seja ou seja um quadrado perfeito, e ele pode ser escrito na forma a2 – b2, com a e b naturais, de k ou k + 1 maneiras diferentes, respectivamente. 3. Por fim, procurei analisar o que ocorre quando o número natural escolhido é par. Percebi primeiramente que o sistema , que por adição gera 2a = c1 + c2, torna-se impossível, quando c1 e c2 apresentam paridades diferentes. Depois, escolhi os mesmos dois números que o Alan havia escolhido, 8 e 10 e os decompus como havia feito com os números anteriores, 8 = 8 . 1 = 4 . 2 e 10 = 10 . 1 = 5 . 2, e assim percebi por que para o, 10 é impossível a escrita na forma a2 – b2, pois, em todas as suas fatorações, os dois fatores têm paridades diferentes. Isso acontece com qualquer número par não divisível por 4: se os dois fatores fossem pares, o número seria divisível por 4 e, se ambos fossem ímpares, o número seria ímpar. Já com o 8, uma das fatorações gera um sistema possível: , implicando a = 3 e b = 1 e, portanto, 8 = 32 – 12. É importante notar que, numa das fatorações do 8, os dois fatores sendo pares, revela a sua divisibilidade por 4. Em seguida, considerei mais dois números pares, sendo um deles quadrado perfeito, 60 e, 36, e os decompus em dois fatores, de todos os modos possíveis, deixando explícito todos os divisores naturais de cada um deles. 60 = 60 . 1 = 30 . 2 = 20 . 3 = 15 . 4 = 12 . 5 Notei que, em ambos os casos, as duplas de fatores nas quais um dos divisores é ímpar geram um sistema linear impossível. No caso do 60, que possui dez divisores, e, portanto, podemos formar cinco duplas de fatores, quatro delas são eliminadas e que são justamente aquelas nas quais aparecem os divisores ímpares do 60: 1, 3, 5, 15. E no caso do 36, que possui nove divisores, e, portanto, também temos cinco duplas de fatores, da mesma maneira eliminamos aquelas nas quais aparecem os divisores ímpares de 36: 1, 3, 9. Realizadas essas observações, em relação ao 60, temos apenas o seguinte caso: ou a = 16 e b = 14 e, portanto, 60 = 162 – 142 E no caso do 36, temos os seguintes casos: ou a = 10 e b = 8 e, portanto, 36 = 102 – 82 ou a = 6 e b = 0 e, portanto, 36 = 62 – 02. Enfim, percebendo que as ideias sugeridas nos exemplos são gerais, uma vez que qualquer número natural par ou é ou não é divisível por 4, vislumbrei a última conclusão: 3 conclusão: Quando um número natural par não é múltiplo de 4, ele não pode ser escrito na forma a2 – b2, com a e b naturais; quando ele é múltiplo de 4, mas não é quadrado perfeito, ele possui 2k divisores naturais e poderá ser escrito na forma a2 – b2 de k – di maneiras, onde di é a quantidade de divisores ímpares desse número e, finalmente, quando o número é par e quadrado perfeito, ele possui 2k + 1 divisores naturais e poderá ser escrito na forma a2 – b2 de k + 1 – di maneiras. E assim dei o assunto por encerrado. Esses dois alunos, Gabriel e Alan, acabaram contribuindo para que eu aprendesse um pouco mais sobre essa parte da Matemática, o estudo dos números inteiros, que anda tão apagada no Ensino Médio e que tanto apaixonou matemáticos como Diofanto, Euler e muitos outros.
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