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Um
dia, estava eu tranqüilamente na faculdade pensando na vida quando chegou
um colega e fez-me uma inusitada proposta: —
Você quer comprar de graça (?!) um sapato? É
claro que eu topei de cara comprar de graça(?!) um sapato embora eu
desconfiasse que houvesse algum rolo. As condições eram: —
primeiro comprar um selinho desse meu amigo. Preço Cr$ 2.000. —
juntar mais Cr$ 18.000 e o selinho e levar a uma loja próxima. Eu
receberia um par de sapatos de valor de mercado de Cr$ 20.000 e mais dez
selinhos no valor de Cr$ 2.000. —
bastaria então eu vender os dez selinhos que eu seria restituído dos Cr$
2.000 iniciais de compra do selinho do meu amigo e dos Cr$ 18.000 que
anexei para retirar o sapato da loja. Expostas
as condições topei o desafio. Dei Cr$ 2.000 ao meu colega para o inicio
do processo, juntei mais Cr$ 18.000 e fui à loja. Efetivamente retirei um
par de sapatos de valor de mercado de cerca de Cr$ 20.000 e ganhei os dez
selinhos que me iriam restituir tudo o que investira. Saí
então a vender os dez selinhos. Vendi-os com alguma facilidade. Fiz então
um balanço. Eu tinha até então gasto Cr$ 20.000, recebido Cr$ 20.000 e
mais um par de sapatos. Um par de sapatos de graça, portanto. Quando se
fechou o ciclo tive um estalo, teria ganho mesmo um sapato de graça? Como
isso seria possível? Não estaria essa promoção violando a Lei de
Lavoisier ou a Segunda Lei da Termodinâmica? Fiquei estarrecido com o
problema. Como interpretá-lo?
Aturdido
com o problema que aparentemente violava leis naturais nunca dantes
questionadas saí a conversar com meus colegas de faculdade. O primeiro a
tentar responder foi Altarimando. Ele se entusiasmou. “—
Não se preocupe se essa promoção fere ou não as leis da natureza. O
importante é que funciona. Assim como você conseguiu comprar sapatos de
graça vamos expandir o negócio para comprar arroz de graça, roupa de
graça, etc. Talvez esse seja o perdido caminho para a humanidade alcançar
o Nirvana, o tão desejado Shangrilá. Não se esqueça que as Leis de
Mercado são superiores à Lei de Lavoisier.” Desconfiei
que ele estava mais para poeta transcendental que crítico de Matemática
e Física e fui procurar o Souzinha. Souzinha era um crítico de tudo.
Logo deu seu parecer, claro e taxativo, incisivo e demolidor, característico
de todo o jovem de menos de quarenta anos: “—
Estamos diante da chamada Bola de Neve, Conto da Venda Sucessiva ou ainda
da Corrente da Felicidade. É um estratagema que favorece barbaramente os
compradores iniciais e é altamente desvantajoso para os finais.” Pode-se
concluir facilmente que o número de compradores numa etapa x é: F(x)
= 100 + 101 + 102 +...10x
O
universo possível de compradores é N -
número finito inteiro. Logo a corrente se estabiliza antes da etapa y ou
em y quando y é tal que: 100 + 101 + 102
+...10y
N Quando
o somatório se iguala ou excede N os últimos compradores serão
prejudicados. Logo
essa artimanha é tão simplesmente uma falácia. Continuam válidos
portanto a Lei de Lavoisier e o Segundo Principio da Termodinâmica. Fiquei
feliz, confesso, por essa explicacão do Souzinha. Quem
como nós, matemáticos e engenheiros, tem toda a sua mente criada e
disciplinada por critérios lógico-formais cartesianos tem verdadeiro
horror a situações que fujam desse modo, e o que é pior, funcionem. Se
isso pudesse ocorrer ficaríamos inseguros e toda uma vida ficaria
questionada. E
o caro leitor, o que achou da historieta contada até aqui? Com qual
explicação fica? Com a do feliz Altarimando ou com a do crítico
Souzinha? Ou haveria uma terceira, inesperada e surpreendente alternativa?
É o que veremos a seguir.
Quando
eu já estava disposto a encerrar o assunto encontrei um velho amigo, Adão,
estudante de Economia na Getúlio Vargas. Apesar
de jovem, Adão é crítico ponderado e profundo em seus conhecimentos. Só
como curiosidade expus a ele o problema e as duas respostas que eu tinha,
ouvido até então. Adão,
filosoficamente, começou a raciocinar Socraticamente. —
Quanto é mesmo que a loja recebe por par de sapatos vendido? Ora
Adão respondi, o enunciado é claro. Ela recebe Cr$ 20.000 por par de
sapatos. —
Acho que aí temos uma pista. Acho que não é esse o valor, ponderou Adão.
E continuou: —
Admitamos uma ilha com 1.111 pessoas potencialmente clientes dos sapatos e
mais uma pessoa que é o dono da loja totalizando pois 1.112 pessoas. O dono
da loja propõe o negócio a um primeiro cliente. Compre este selo por Cr$
2.000 e adicione Cr$ 18.000 e deflagre o processo. Esse primeiro cliente vende
dez selos. Dez compradores vendem depois para 100 outros compradores. Já
são 111 compradores. Os cem compradores vendem agora para 1.000
compradores. Esses últimos 1.000 compradores que já gastaram cada Cr$ 2.000
cruzeiros pelo selo não têm mais para quem vender. Uma de suas opções
é perder esse selo. Outra (mais razoável) é acrescentar Cr$ 18.000 e ir
buscar o seu par de sapatos que, como sabemos, vale no mercado Cr$ 20.000.
Logo esses últimos compradores não serão prejudicados financeiramente
(só não terão o seu sonho de sapatos grátis). Agora
façamos um raciocínio. Quanto recebeu a loja de sapatos e quantos pares
de sapatos foram entregues? Curiosamente você verá que a loja não
recebe Cr$ 20.000 por par de sapatos vendido.
A
loja recebeu em dinheiro:
Total
de pares de sapatos vendidos = 1.111
Conclusão
— A loja vende cada par de sapatos a Cr$ 20.000 e recebe na prática Cr$
18.001 e não Cr$ 20.000 como supostamente se poderia pensar. Vê-se
portanto que cada pessoa para ganhar um par de sapatos precisa entregar o
sinal (entrada) e ter o trabalho de vender dez outros sapatos. O caso em estudo
é um processo que traz embutido um trabalho de venda como custo. Custo esse
que é pago pela loja (20.000 - 18.001) = Cr$ 1.999 por par de sapatos. É
uma comissão de venda. Tudo claro, Botelho? Fiquei
a pensar. Como
as coisas ainda estão algo confusas dentro de mim peço apoio aos leitores
da Revista do Professor de Matemática. Vejam
se existe alguma outra explicação. Mas por favor, prefiro receber
respostas que não ponham em cheque Leis que até agora acreditei como válidas
tanto como a Lei de Lavoisier, Teorema de Pitágoras, etc. Ok? NR: Uma resposta já temos
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