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Há
uns dez anos atrás, um aluno, cujo nome infelizmente não recordo,
apareceu na escola com algumas peças de seu artesanato. Trabalhando com
madeira, pregos e linhas de várias cores, ele compunha paisagens, figuras
humanas e motivos geométricos. Lembro-me de um Cristo na Cruz, que me
impressionou bastante. Foi a primeira vez que vi esse tipo de artesanato.
Depois disso vi muitos outros trabalhos na mesma linha (sem trocadilho!).
Certo
dia, folheando um livro, vi o desenho de um decágono regular e suas 35
diagonais:
A
figura, que parece um bordado, me trouxe à lembrança o artesanato de meu
ex-aluno. As duas coisas cruzaram-se e veio a idéia de juntar o
artesanato com a Matemática. Antes de fazer a proposta aos alunos,
resolvi brincar um pouco. E aí tive a companhia dos filhos. Brincando, fui
descobrindo coisas interessantes. Trabalhando com os alunos foram
aparecendo idéias mais interessantes ainda. Apresentei essas idéias a
diversos colegas professores, em diferentes cursos e eles contribuíram
com novos problemas, novas situações e novas idéias. Esse relato tem
portanto muitos autores. Posteriormente vim a descobrir que não há nada
de original nessas idéias. Elas são apresentadas em publicações
antigas e já foram exploradas por muitas outras pessoas. Entretanto,
a ausência de originalidade, em nada diminuiu o prazer da descoberta (ou
re-descoberta).
Tenho
proposto essa atividade aos alunos na forma de um jogo. Apresento-a também
como uma atividade artesanal envolvida com a Matemática. Os
materiais necessários são: um pedaço de madeira, de forma quadrada, com
aproximadamente 30 cm de lado; de 15 a 24 pregos com cabeça, de
comprimento aproximado 15 mm; um rolo de tinha de qualquer cor, para
construir as diagonais e uns 3 m de linha de outra cor para representar os
lados do polígono. Convém usar uma linha resistente. São necessários
ainda um martelo e instrumentos de desenho: compasso, transferidor e régua. O
primeiro passo é desenhar sobre a tábua um polígono regular de n lados.
É preciso que, numa mesma classe, apareçam polígonos com diferentes números
de lados. Para isso estipulo que, para cada aluno: n = 15 + algarismo das
unidades do dia do seu aniversário. (Por exemplo, para os alunos que
aniversariam nos dias 7, 17 ou 27 temos n = 15 + 7 = 22). Com esse critério
resulta: 15
n
24 e, em geral, numa classe com cerca de 30 alunos, temos 10 polígonos
diferentes. Essa variedade é importante, como você perceberá mais
adiante. Para
desenhar o polígono o aluno começa desenhando uma circunferência com
aproximadamente 10 cm de raio. A seguir divide-a em n partes iguais,
desenhando ângulos
desenhamos um ângulo central com 15º e o outro com 16º, alternadamente.
Pequenas aproximações não prejudicam a estética desse artesanato. Tendo
dividido a circunferência em n partes iguais, nos pontos de divisão, o
aluno fixa os pregos. É importante que esses fiquem bem firmes. Se depois
um deles se soltar, o trabalho estará perdido. O
passo seguinte é construir, com a linha, as diagonais do polígono. Nesse
momento apresento as quatro regras do jogo. 1.ª
Regra: é preciso construir todas as diagonais do polígono. Se ficar faltando alguma, não
valeu. 2.ª
Regra: lado não é diagonal e por isso, quando estiver construindo as
diagonais, não é permitido passar a linha de um prego para um de seus
vizinhos. 3.ª
Regra: não vale construir a mesma diagonal duas vezes, isto é,
não vale ir e vir pelo mesmo caminho. 4.ª
Regra: também não vale, num dado momento, amarrar a linha num prego,
cortá-la, amarrá-la novamente em outro prego, e prosseguir com o
trabalho. A linha só pode ser cortada quando a última diagonal tiver
sido construída. Agora,
mãos à obra. Amarre a linha num prego qualquer e comece. Antes de prosseguir
a leitura desse artigo você não gostaria de executar essas idéias? Posso
lhe garantir que vale a pena!
Algumas
observações: 1.
Dependendo das circunstâncias, peço aos alunos que preparem, em casa, a
tábua com o polígono regular desenhado sobre ela e os pregos já fixados
também. Com isso, evita-se uma barulheira danada! 2.
Essas idéias podem ser trabalhadas só com material de desenho, sem a
madeira, os pregos, a linha e o martelo. Isso facilita as coisas por um
lado mas cria algumas dificuldades, como veremos logo mais. Além disso,
sem pregos e linha, desaparece o artesanato...
Passo
a relatar algumas das observações que faço, quando os alunos iniciam a
construção das diagonais com a linha. Alguns
se põem a construí-la sem um critério definido. Puxam a linha de um
prego a outro qualquer e deste a um outro caoticamente, sem qualquer
preocupação com rotina, lei de formação ou tática de construção.
Logo percebem que assim não dá. São muitas diagonais e daí a pouco estão
perdidos, sem saber o que já está feito e o que falta fazer. Desmancham
tudo e começam novamente. Outros
alunos, desde o início, preocupam-se em fazer as construções seguindo alguma
regra, alguma lei de formação. Alguns optam por esgotar as diagonais que
partem de um certo vértice e também acabam desistindo. No
fim de pouco tempo, a maioria dos alunos chega à seguinte regra de
construção: partindo de um primeiro prego (aquele em que ele amarrou a
linha) e caminhando sempre num mesmo sentido, constrói-se a menor diagonal,
que não foi construída ainda. Assim por exemplo, se n = 18, passa-se a
linha de um prego a outro, nessa seqüência: 1-3-5-7-9-11-13-15-17-1, e estamos
de volta ao prego 1. Como a diagonal 1-3 já está construída, vai-se de
1 a 4. Em 4, a menor diagonal ainda não construída é 4-6. a seqüência
agora, então é: 4-6-8-10-12-14-16-18-24. Com
as construções realizadas, todas as diagonais menores desse polígono
estio prontas. Essas diagonais menores são obtidas pulando-se um só vértice. Prosseguindo,
a seqüência é: 4-7-10-13-16-1-5-8-11-etc.
Mais
algumas observações 3.
A tática que estamos apresentando não é exclusiva. É possível
construir as diagonais do polígono por outros caminhos. Entretanto, razões
estéticas recomendam a construção descrita. O bordado resultante
apresentará um bonito relevo. 4.
Nesse processo todo, é importante poder errar, voltar atrás, tentar
outro caminho, poder desmanchar e começar de novo.
É bem menos trabalhoso fazer isso com a linha do que desenhando:
Se necessário, leia novamente a observação 2. 5.
É preciso estar atento, percorrendo a classe. Alguns alunos se esquecem
das regras do jogo e passam pela mesma diagonal duas vezes, ou ligam um
prego a seu vizinho.
Uma
das regras do jogo estabelece que todas
as diagonais precisam ser construídas. Inevitavelmente aparece a
pergunta: —
Professor, como sei que já fiz todas? —
Descubra um jeito! Espontaneamente
ou, quando necessário, conduzidos pelo professor, a maior parte dos
alunos acaba percebendo que, se por exemplo, n = 20, de cada prego devem
partir 17 diagonais. Nem sempre generalizam esse resultado com facilidade,
concluindo que o número de diagonais que partem de cada vértice é igual
a n -
3. Mas, devagar, chegam a essa conclusão. Depois
de algum tempo, alguns alunos comunicam que completaram o trabalho,
enquanto outros reclamam porque não conseguem completar a obra. Chegam a
um prego e não têm como continuar: todas as n - 3 diagonais que partem
dele estão construídas, e ainda existem diagonais a serem construídas!
Voltam atrás, desmancham parte do trabalho, seguem por outro caminho e, não
demora muito, estão novamente num beco sem saída.
Criado
o clima, faço um levantamento da situação, perguntando o número de
lados que tem o polígono de cada um dos que conseguiram terminar e o
daqueles que não estão conseguindo. No primeiro grupo aparecem 19, 23,
15 etc., e, no segundo, 20, 22, 16, etc. Às vezes nem é preciso dirigir
muito. Alguns percebem essas coisas sozinhos e a notícia corre pela
classe. Nesse
ponto é natural que todos se perguntem: por que é que se n é ímpar a
brincadeira dá certo e quando par, não? Custa
um pouco para que todos entendam o que está acontecendo, mas devagar, e
com ajuda do professor, chegam lá. Se
n é par, o número de diagonais que partem de cada vértice, que é n -
3, é ímpar. Vamos pensar assim: quando nos dirigimos a um determinado prego,
pela primeira vez, chegamos e partimos, construindo 2 diagonais. Quando
voltamos a ele construímos mais 2 (já são 4 diagonais). E assim por
diante, o número de diagonais construídas vai aumentando de 2 em Moral
da história: o jogo proposto e impossível
quando n é par! Veja
bem: o jogo é impossível, o artesanato
não. Desrespeitando
uma das regras do jogo, é possível completar a construção das diagonais.
Pode-se, por exemplo, amarrar a linha no prego, dar o nó, cortá-la,
amarrá-la num outro e prosseguir, até que nova impossibilidade apareça.
Repete-se o processo até construir todas as diagonais. Para
finalizar o trabalho, com o outro fio de linha, os alunos constroem os
lados do polígono regular. O
artesanato terminou, mas a Matemática envolvida nele, mal começou! Mas
antes de propor novos problemas vale a pena explorar um pouco mais o que já
foi feito. Quando
n é ímpar, o número de diagonais que partem de cada vértice, é par.
Desaparece então a impossibilidade verificada quando n é par. Vamos
fixar atenção no prego em que amarramos a linha para começar a construção.
Na seqüência, o número de diagonais construídas, que partem dele, é:
1, 3, 5, 7, etc. É só no vértice de partida que isto acontece. Nos
demais, a seqüência é: 2, 4, 6, 8, etc. Isso permite concluir que a última
diagonal deve terminar justamente onde começou a primeira! É gostoso ver
nos alunos, para os quais n é ímpar, a reação a essa conclusão: —
É mesmo, isso aconteceu com o meu trabalho!
Durante
esse processo, os alunos perceberam que o número de diagonais que partem
de cada vértice é igual a n -
3. Pergunto a eles: —
Quantas diagonais tem o seu polígono? Cada
um faz as contas para o seu caso particular. Nem todos percebem a necessidade
da divisão por 2: ao multiplicarem n por n -
3, contaram cada diagonal duas vezes. Para
que percebam o erro, basta sugerir que façam o mesmo raciocínio para um
quadrado ou pentágono. Enfim, raciocinando com base na atividade
desenvolvida, errando, percebendo contradições, acabam chegando ao
resultado geral:
onde
d é o número de diagonais do polígono. Na
construção que fizeram, com prego e linha, desenharam um polígono
regular (razões estéticas!). Vale a pena perguntar: —
A fórmula obtida vale para um polígono convexo não regular?
Peço
aos alunos que observem os diferentes trabalhos. Em alguns deles, no centro
da figura aparece uma “rodelinha”, um núcleo vazio. Em outras isso não
ocorre. Qual a explicação, por que isto acontece?
Logo
percebem que, quando n é par existem vértices simétricos em relação
ao centro e por isso algumas diagonais são diâmetros, passam pelo
centro. Quando n é ímpar, nenhuma diagonal é diâmetro. Daí a “rodelinha”. Outros
problemas: quando n é par quantas são as diagonais que passam pelo
centro? Quando n é ímpar, quantas são as diagonais mais próximas do
centro?
Agora
uma outra questão um pouco mais exigente: isso que estamos chamando de
“rodelinha”, é, na verdade, um polígono. Demonstre que ele é
regular e tem também n lados. E
mais problemas O
artesanato construído pelos alunos é uma arte de linhas retas e entretanto
vemos ali uma série de “circunferências” concêntricas. Observe bem
as duas últimas figuras. Na verdade essas “circunferências” são polígonos
regulares com muitos lados. Mas podemos pensar nas circunferências
inscritas nesses polígonos. A simples observação dos bordados dá a
impressão de que o espaçamento entre essas circunferências é constante.
Com outras palavras, a sensação visual é de que os raios dessas circunferências
parecem formar uma progressão aritmética. Será isto verdadeiro? Como
você vê, soltando a imaginação, a gente vai longe... Como
já disse, essa é uma arte de linhas retas. Quantos segmentos de reta há
em cada um Quantos
triângulos podemos visualizar naquele emaranhado de linhas? E quantos quadriláteros,
pentágonos, etc.? E quantos polígonos podem ser vistos ali? Mais
algumas observações 6.
Como você vê o tema é rico, podendo ser explorado em diferentes níveis,
com diferentes graus de profundidade. Tenho trabalhado com ele no 2.º
grau. Outros colegas o exploram no 1.º grau: é preciso apenas alguma
sensibilidade para perceber até onde é possível avançar. 7.
Aqui foram propostos alguns problemas Outros ainda poderiam ser
apresentados, dentro do mesmo tema. Gostaríamos entretanto, que os
colegas leitores da Revista nos escrevessem propondo outros problemas,
motivados a partir do artesanato aqui construído. Pensem ainda em outras
ligações desse tema com outros campos da Matemática.
Em
1982, quando nascia a Revista do Professor de Matemática, na Seção
“Para que serve”, preocupada em apresentar as aplicações da Matemática,
escrevemos o seguinte: “...vivemos
num mundo extremamente utilitarista, onde as coisas têm sempre que
servir a um fim material especifico. No entanto, o homem continua gostando
de fazer certas coisas que não têm utilidade imediata, no sentido
utilitarista do termo. A arte é um exemplo disto.” Às
vezes, na Matemática, estudamos certos assuntos, resolvemos certos problemas,
simplesmente com a intenção de vencer desafios, brincar com a Matemática,
divertir-nos com ela. Esta dimensão também deve ser mostrada ao aluno:
é possível sentir prazer brincando com a Matemática”. Penso que o artesanato construído com pregos e linha, e os problemas criados a partir dele, revelam com bastante força a fecundidade de um casamento entre Matemática e Arte!
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