Números de Fermat

 

Paulo Ferreira Leite
IME—USP - Cx. P. 20570
CEP 01498 - São Paulo - SP
 

A primeira e mais fundamental pergunta sobre números primos foram respondidas por Euclides, há mais de dois mil anos, ao provar que esses números formam um conjunto infinito.

Motivados por esse resultado muitos matemáticos tentaram encontrar fórmulas que fornecessem, senão todos, pelo menos, uma infinidade de primos.

Fermat (Pierre de Fermat: 1601-1658), um dos maiores matemáticos do século XVII, acreditava conhecer uma tal fórmula. Em carta endereçada a seu amigo Bernard Frenide de Bessy datada de provavelmente agosto de 1640 revelava ele embora confessando não estar de posse de uma prova completa, sua a convicção de que os números eram primos para todos os valores do natural n.  

são efetivamente primos: F5 = + 1 = 4.294.967.297 já é suficientemente grande para ter impedido que Fermat se certificasse de sua natureza e F6 = + 1 = 18.446.744.073.709.551.617 é um número bastante grande, mesmo para os padrões de hoje, quando dispomos de computadores.

Apesar de ciente de não possuir uma demonstração, Fermat voltou, em várias outras ocasiões, inclusive em carta endereçada a Pascal em 1654, a reiterar sua crença na primalidade desses números.

O problema, no entanto, só ficou definitivamente resolvido quando Euler, em 1732, provou, mostrando que 641 é um fator de F5, ser a conjectura falsa. A partir daí, por uma ironia do destino, em todos os casos em que foi possível decidir, os números Fn se revelaram os  compostos. (veja quadro 1). Não obstante, uma conjectura de Eisenstein afirmando que existem infinitos primos da forma  22n + 1  permanece em aberto.

O resultado que talvez mais tenha contribuído para que os números de Fermat adquirissem uma certa notoriedade foi a descoberta por Gauss em 1796, de que uma circunferência pode ser dividida (com régua e compasso) em n partes iguais, se e somente se n = 2m. p1 p2 ...pk onde m é um natural e p1p2,..., pk são primos de Fermat distintos(*).

Uma outra propriedade interessante dos números de Fermat, da qual decorre uma demonstração diferente da de Euclides de que existem infinitos primos, é que eles formam uma seqüência infinita de números dois a dois primos entre si, isto é, se m ¹ n então m.d.c(Fm,Fn) = 1. De fato, admitindo-se que eles são dois a dois primos entre si, a demonstração de que existem infinitos primos decorre da observação de que a cada termo Fn da seqüência está associado pelo menos um divisor primo diferente dos divisores primos associados aos termos anteriores da seqüência.

QUADRO I
Fatores de Fn, 5 n 22

n

Fatores Primos

Data

Descoberto por

5

641

1729

EULER

5

6700417

1729

EULER

6

274177

1880

LANDRY

6

67280421310721

1880

LANDRY. LeLASSEUR. GERARDIN

7

596495891?7497217

1970

MORRISON, BRILLHART

7

5704689200685129054721

1970

MORRISON, BRILLHART

8

c

1909

MOREHEAD,WESTERN

9

2424833

1903

WESTERN

9

c

1967

BRILLHART

10

45592577

1953

SELFRIDGE

10

6487031809

1962

BRILLHART

10

c

1967

BRILLHART

11

319489

1899

CUNNINGHAM

11

97484»

1899

CUNNINGHAM

12

114689

1877

LUCAS, PERVOUCHINE

12

26017793

1903

WESTERN

12

63766529

1903

WESTERN

12

190274191361

1974

HALLYBURTON. BRILLHART

13

2710954639361

1974

HALLYBUKTON. BRILLHART

14

c

1961

SELFRIDGE, HURWITZ

15

1214251009

1925

KRAITCHIK

16

825753601

1953

SELFRIDGE

17

7

18

13631489

1903

WESTERN

19

70525124609

1962

RIESEL

19

646730219521

1963

WRATHALL

20

?

21

4485296422913

1963

WRATHALL

22x

?

Muito embora pudéssemos mencionar várias outras propriedades da seqüência Fn, alguns teoremas, outras, meras conjecturas, preferimos terminar examinando um outro tipo de questão: o que teria levado Fermat a supor serem os números  Fn =  22n + 1 todos eles primos?

Essa é uma questão intrigante e de difícil resposta. A explicação mais corrente de que a conjectura foi feita por indução vulgar, levando em conta apenas o fato de que os cinco primeiros números da seqüência são primos, não pode ser aceita sem restrições por não ser esse um erro que se deva esperar de um matemático do porte de Fermat.

Uma outra explicação, talvez mais convincente, foi proposta pelo astrônomo polonês Banachiewicz [3] Sugeriu ele que Fermat pode ter provado (o que é realmente verdadeiro) que Fn divide 2Fn 2  reduzindo assim a prova da primalidade de Fn a um suposto teste de primalidade que os matemáticos chineses da antiguidade acreditavam ser verdadeiro e que, até a época de Fermat, permanecia em aberto, isto é, não se sabia se era verdadeiro ou falso.

QUADRO 2
Fn divide 2Fn - 2

Na aprova deste fato, usaremos o conceito e algumas propriedades das congruências:

Congruências

Sejam a, b e m > 0 números inteiros.

Dizemos que a e b são congruentes módulo m divide b - a.

Em símbolos

a b mod m (*)

Utilizaremos as seguintes propriedades das congruências

Em particular

a      b     mod m            ac        bc    mod  m

a      b     mod m            an        bn    mod  m, n    0

 

Prova

É claro que + 1      0   mod  Fn           -1   mod Fn

(*) Essa notação foi introduzida por Gauss, que foi também o primeiro matemático a usar de forma sitemática a nocão de congruência, em seu livro Disquisitiones Arithmeticae, publicado em 1801.

 

Mais precisamente, o teste afirmava que uma condição necessária e suficiente para que um inteiro n 2 fosse primo era que n dividisse 2n – 2. A condição é realmente necessária e o próprio Fermat, demonstrou um resultado mais geral: se a é um inteiro positivo e p um primo então p divide aP - a. É possível que Fermat acreditasse que a condição fosse também suficiente bastando portanto que tivesse provado ser Fn um divisor de  2Fn – 2 para concluir que estava diante de um primo. Sua alegação de não estar de posse de uma demonstração poderia, nesse caso, referir-se ao fato de não saber demonstrar a suficiência (que não é mesmo verdadeira) do teste chinês.

O primeiro contra-exemplo explícito para o teste foi, no entanto, dado somente em 1819 por Sarrus ao provar que 341 = 11 x 31 divide 2341 - 2. Vale a pena, porém, observar que, admitindo-se conhecido o fato de que Fn divide 2Fn – 2, verificamos que Euler, ao provar em 1732 que F5 era composto, estava, na realidade, antecipando em 87 anos o contra-exemplo dado por Sarrus!

 

Bibliografia

(1)  BOYER, Cari B. — História da Matemática (tradução Elza Furtado Gomide) Editora Edgaxd Biucher Ltda./Editora Universidade de S~o Paulo.

(2)  KLINE, Morris — Malhemarical Thoughz from Ancient to Modern Times, Oxford University Press.
(3)  STARK, Harold M. — An Introduction to Number Theory, Oxford University Press.