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A redação da RPM recebeu recentemente a carta abaixo: Prezados Senhores: No primeiro número dessa Revista, com a qual tenho a honra de haver colaborado, há um tópico assinado pelo Professor Elon Lages Lima, onde ele dá sua opinião a respeito do valor da expressão 0o. Afirma aquele autor que 0o é uma expressão indeterminada, e alinha uma série de argumentos em favor dessa posição. Examinando-os, não se nota neles imperfeição lógica, nem lhes falta força persuasiva que nos convença da solidez da conclusão à qual conduzem. Entretanto, mesmo confessando não ter percebido erro nas afirmações do Professor Elon, tampouco encontro falha em dois raciocínios que me levam a concluir que 0o = 1. Eles são os seguintes:
Primeiro. Uma função f : X
Y , definida. no conjunto X e tomando valores no conjunto
Y, é um subconjunto f do produto cartesiano X
x Y
com as seguintes propriedades: (i) para todo Ora, dados m e n inteiros positivos, a potência nm é o número de funções definidas num conjunto com m elementos e tomando valores num conjunto com n elementos. Se m 0, não há função definida num conjunto com m elementos e tomando valores no conjunto vazio, logo 0m = 0 para m 0. Por outro lado, mesmo que seja n = 0, existe uma única função definida no conjunto vazio (que tem 0 elementos) e tomando valores num conjunto com n elementos. Logo nº = 1 para todo n 0. Em particular, 0o = 1.
Tomando a = 1 e b = -1 obtemos
Em particular, n = 0 dá: 00 = 1. Eis então a perplexidade em que me encontro: por um lado, estes dois últimos argumentos me conduzem inexoravelmente à igualdade 0° = 1. Por outro lado, como já frisei anteriormente, a conclusão do Professor Elon de que 0º é uma expressão indeterminada está baseada em raciocínios que me parecem absolutamente corretos. Como posso escapar desse dilema?
Atenciosamente,
Cabe-me respondê-la. Em primeiro lugar, é-me grato registrar o modo objetivo e atencioso do Professor Euclides Rosa, cujos artigos na RPM tenho lido com muita atenção. Noto ainda que, ao apresentar dois raciocínios que o “levam a concluir que 00 = 1”, ele não afirma estar provando esta igualdade. Nós, os leitores de sua carta, devemos entender seus argumentos do seguinte modo: A definição usual da potência nm não tem sentido quando m = n = 0. Entretanto, se adotarmos a convenção 0° = 1, isto fará com que a igualdade “nm = número de funções de um conjunto X com m elementos num conjunto Y com n elementos” continue válida quando X e Y são conjuntos vazios. (Primeiro argumento.) Além disso, a mesma convenção 00= 1 fará com que a fórmula do binômio de Newton (a+b)m continue válida para m = 0 e a+b = 0. (Segundo argumento.) Em apoio às observações do Professor Rosa, devo acrescentar que existem outras situações em Análise Combinatória onde há uma certa conveniência em adotar a regra 00 = 1, a fim de estender um pouco mais o campo de validez de algumas fórmulas. Nem por isso 0º deixa de ser uma expressão indeterminada. Um caso parecido acontece na Teoria da Medida e da Integral, onde às vezes é conveniente escrever 0 X = 0, a fim de que a fórmula da área de um retângulo (base X altura) continue válida quando a ‘base do “retângulo” é toda uma reta e a altura se reduz a um ponto. (Veja P. Halmos, “Measure Theory”, página 1). Mesmo assim, 0 x é urna expressão indeterminada. Talvez seja interessante dar mais um exemplo. Uma fórmula bem conhecida nos ensina que, se |x| < 1, a soma dos termos da progressão geométrica ilimitada cujo primeiro termo é 1 e cuja razão é -x é dada por (*) A igualdade acima significa que, se fixarmos qualquer número x tal que -1 < x < 1, podemos fazer com que a soma dos n primeiros termos da soma à esquerda tenha um valor tão Para valores de x fora do intervalo -1 < x < 1, o primeiro membro da igualdade (*) é uma série divergente, isto é, as somas parciais
não tendem a nenhum limite quando cresce indefinidamente. Por exemplo, se tomarmos x = 1, o primeiro membro da igualdade (*) se toma igual a
Esta é uma série divergente. Suas somas parciais são sucessivamente iguais a
ou seja, assumem os valores 1 e 0 alternadamente, logo não se aproximam de nenhum limite. Por outro lado, se tomarmos x = 1 no segundo membro da igualdade (*) obteremos o valor . E, realmente, matemáticos do peso de Euler, Leibniz e Daniel Bernoulli (antes Daniel Bernoulli, além do argumento acima, também usava a seguinte justificativa: Se chamarmos de S a soma da série , veremos imediatamente que . Logo ,donde Nem por isso deixa de ser uma série divergente. O argumento de Bernoulli prova apenas que, se fosse possível atribuir uma soma a esta série infinita de tal maneira que certas manipulações simples, como as acima, fossem permitidas, tal soma deveria ser igual a 1/2. Coisa análoga ocorre com os argumentos do Professor Rosa. O primeiro deles diz apenas que se for possível atribuir um significado ao símbolo 0° de modo que nm continue igual ao número de funções de um conjunto com m elementos num conjunto com n elementos, então deve ser 0° = 1. Interpretação semelhante pode ser dada ao segundo argumento.
O mesmo ocorre com xy. Esta expressão tem um significado bem preciso quando x > 0, valendo xy = ey Iog x (logaritmo natural). Quando y 0, embora a fórmula ey log 0 não tenha sentido, é natural escrevermos 0y = 0 porque, fixado y 0, a expressão xy assume valores cada vez mais próximos de zero, à medida que atribuímos a x valores que tendem a zero. Por outro lado, não é possível raciocinar da mesma maneira quando x = y = 0. Com efeito, quando se atribuem a x e y valores cada vez menores, que se aproximam de zero, a potência xy não o tende para nenhum limite bem determinado; tudo depende de como se escolhem x e y. A figura seguinte exibe as chamadas “curvas de nível” da função - xy quando 0 < x< 1 e 0 < y < 1. O quadrado da figura é formado pelos pontos do plano cujas coordenadas x, y são ambas positivas e inferiores a 1.
Curvas de nível da função xy, para 0 < x < 1 e 0 < y < 1 No alto de cada curva está assinalado o valor (constante) da função xy em todos os pontos da curva. Todas as curvas convergem para o ponto x = 0, y = 0. Logo, xy não se aproxima de nenhum valor determinado quando x e y tendem a zero. Sobre cada uma das curvas ali desenhadas a função xy assume um valor constante. Por acaso, esse valor é exatamente a abscissa do ponto em que a curva corta a reta horizontal y = 1. O leitor observa que essas curvas convergem todas para o vértice inferior esquerdo do quadrado (ponto cujas coordenadas são 0,0). Caminhando ao longo de qualquer uma dessas curvas teremos xy = c(constante) para qualquer ponto de coordenadas x, y na curva. É natural que, ao atingirmos o vértice 0,0, esperemos ainda ter xy,= c ou seja, 0° = c. Mas se chegarmos ao mesmo ponto 0,0 viajando ao longo de uma outra curva de nível, seremos levados a tomar 0° =c’, com c’ c. Isto significa que o limite de xy quando x 0 e y 0 depende do modo como x e y tendem a 0. Por isso é que 0° é uma expressão indeterminada. Agradeço a Jonas de Miranda Gomes pelo gráfico.
O professor Douglas Leite Bicudo, de Campinas, S.P., me propõe, sem rodeios, a seguinte questão: “Qual a sua opinião sobre o uso das calculadoras nos cursos ginasial e colegial?” Darei uma resposta concisa e, em seguida, procurarei explicar as razões da minha posição. Acho absolutamente necessário que a criança, ao fim do 4.º ano primário, conheça de cor a tabuada e saiba efetuar manualmente as quatro operações com números inteiros, com frações ordinárias e com frações decimais. Uma vez conseguido este objetivo, não me oponho ao uso de máquinas, mais tarde, quando houver vantagem em usá-las. O surgimento das calculadoras eletrônicas representa um enorme progresso na direção da eficiência, precisão e rapidez nas contas, em quase todos os segmentos da sociedade moderna. Seria impossível negar, ou mesmo tentar diminuir a ênfase desta afirmação, pois o sucesso comercial de tais máquinas prova eloqüentemente sua utilidade. Em conseqüência disto, é natural que se procure introduzir as calculadoras na Escola. Tal medida tem sido proposta e executada em nome de dois princípios bastante aceitáveis. O primeiro é que a Escola deve adaptar-se à vida atual, modernizar-se e adequar seus alunos à sociedade em que vivem, na qual vou lutar pela vida. O segundo é que o uso da máquina, liberando o aluno de longas, enfadonhas e desnecessárias tarefas, deixa-o com mais tempo para aprimorar sua capacidade de raciocinar e desenvolver-se mentalmente. Um corolário desta argumentação parece inevitável e tem, de fato, sido defendido como norma a ser adotada: devem ser abolidas a tabuada e as contas manuais. Use-se a máquina em lugar delas. Mas não incorramos no erro de tirar conclusões apressadas. As calculadoras são extremamente eficazes para fazer contas, principalmente as longas, as repetidas e as difíceis (como extrações de raízes). Mas é bom que se tome conhecimento de algumas de suas desvantagens, como as seguintes: 1. Uma calculadora só lida com frações decimais. Se comermos dois terços de um bolo, a calculadora nos dirá que sobra 0,33333333 do bolo. Num universo em que as operações aritméticas fossem todas feitas com auxilio dessas máquinas, não haveria lugar para frações ordinárias. Uma operação simples como 3/7 - 2/7 = 1/7 seria escrita assim: 0,42857142 - 0,28571428 = 0,14285714. Evidentemente, a idéia de “um sétimo” é conceitualmente mais simples, mais fácil de escrever, mais exata e muito mais acessível ao entendimento de uma criança do que “0,14285714”. Logo, não creio haver dúvidas quanto à permanência das frações ordinárias entre os assuntos que nossos alunos aprendem nas escolas. (Bem entendido: não estamos propondo a supremacia absoluta das frações ordinárias sobre as decimais, nem que estas sejam abolidas da Escola. Cada uma delas tem seus méritos e sua hora de ser aprendida e usada.) 2. Os números que aparecem no mostrador de uma calculadora são valores aproximados. Daí resulta que várias das regras usuais de cálculo aritmético não são válidas para contas feitas com a máquina(*)[1Em particular, quando multiplicamos x por 1 /x não obtemos um resultado igual a 1, mas uma fração como 0,99999999. Pior do que isto: se n for um inteiro muito grande, o produto de xn por (1/x)n pode resultar mais diferente de 1 ainda. Por exemplo, 232 vezes (1/2)32 na máquina dá 0,987. 3. Em Matemática e nas suas aplicações, mesmo as mais simples, há necessidade de se representarem os números não apenas com algarismos, mas também com letras, seja em equações (como x/2 4/x = 1), seja em identidades (como (a+b)2 = a2 + 2ab + b2), seja em fórmulas (como A = r2). As calculadoras não têm lugar para expressões literais, que precisam ser operadas manualmente. Podemos facilmente imaginar a perplexidade de um hipotético aluno que nunca aprendeu a tabuada, com uma calculadora na mão, tentando multiplicar 2x + 3y por 5x - 8, ou efetuar a subtração 1/(a - b) 1/(a + b). Evidentemente, ele poderia fazer esta subtração sem saber tabuada mas nunca iria entender porque lhe ensinaram a fazer contas apenas com letras, sendo proibido operar manualmente com algarismos. 4. Mesmo que não existissem os defeitos apontados acima, haveria ainda a considerar fatores sócio-econômicos que inviabilizam o uso em larga escala das calculadoras. A grande maioria dos alunos de primeiro e segundo grau no Brasil não tem condições financeiras para comprar calculadoras ou baterias para fazê-las funcionar, nem para substituí-las quando quebram ou se perdem. Memorizar a tabuada e as regras de cálculo aritmético, quando se é jovem e se tem a memória fresca, é adquirir uma habilidade a mais, aprender a efetuar um ato mecânico, como andar de bicicleta, que não atrapalha em nada, mas pode ser útil em várias ocasiões. Isto sem falar no aspecto educativo, na disciplina mental, na ordem e na atenção necessárias a essas operações, as quais podem vir a constituir-se em hábitos de trabalho quando transferidas a outras situações. Mais tarde, principalmente a partir do segundo grau, quando já domina com proficiência as operações e suas regras, quando os cálculos numéricos são meros auxiliares no estudo de outras teorias Quando quer evitar uma grande e desnecessária perda de tempo com cálculos prolongados, o aluno pode vir a utilizar a calculadora, em seu próprio proveito, e em prol do melhor aproveitamento nos estudos. Mas é preciso primeiro verificar se isto não constitui mais uma discriminação contra os menos dotados financeiramente, que poderão ter rendimento inferior, não por culpa de sua deficiência intelectual mas por falta de condições para adquirir uma máquina.
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