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No
artigo que publicamos no número 5 desta Revista, intitulado “Grandezas
Incomensuráveis e Números irracionais”, dissemos que a descoberta dos
incomensuráveis, na antiguidade, representou um momento de crise no
desenvolvimento da matemática. Mostraremos, no presente artigo, como essa
crise foi superada, ainda no 4.º século a.C. Foi o sábio Eudoxo (aprox.
408-355 a.C.), da escola de Platão, quem desenvolveu uma
teoria das proporções que permitiu superar a dificuldade dos incomensuráveis sem a necessidade dos números irracionais. Muito
notável é o fato de
que as mesmas idéias de
Eudoxo seriam utilizadas mais de dois milênios depôs por Richard
Dedekind (1831-1916) na construção
de uma teoria rigorosa dos números reais.
Para
facilitar o entendimento do que devemos expor, começamos recordando a
definição de igualdade de frações. Por simplicidade, só
lidaremos com números positivos (inteiros e fracionários); no caso dos
inteiros, são eles os números naturais 1, 2, 3, 4, etc.. As
frações surgem pela insuficiência dos números naturais no trato de
problemas que envolvem divisão
em partes iguais. Tornam-se então necessários introduzir o conceito de
igualdade de frações, soma, subtração,etc. Em particular, a igualdade
de duas frações deve traduzir o fato de que elas se reduzem por
simplificação, ä mesma fração irredutível. Exemplo:
de
sorte que
.
Definimos
então igualdade de frações como segue:
p e q, e números inteiros, a e b, tais
que
Embora
esta definição traduz a idéia exata
de igualdade de fração que desejamos
introduzir, ela é um
tanto complicada e pouco prática. Para chegarmos a uma definição mais simples
notemos que, se (1) e (2) se verificam então mn’=
m’n. (3) Reciprocamente,
vamos mostrar que esta condição (3) implica a definição anterior. De
fato, primeiro notamos que m e n podem ser escritos na forma (1), com p e
q primos entre si; basta tomar a como sendo o m.d.c. de m e n.
Substituindo (1) em (3),obtemos apn’= m’a q, ou ainda pn’=
m’q.
(4) Isto
mostra que p divide m’q; como é primo com q,
concluímos que ele divide m’, isto é,
existe um número inteiro b tal que m’= bp; esta é a primeira das relações (2). Levando
este valor em (4), vem pn’=
bpq, Donde
se segue que n’= bq, que é a segunda das relações (2). Fica
assim provado que a relação (3) é equivalente à definição 1 de
igualdade de frações que a precede; e ela é muito mais
simples e mais fácil de ser aplicada. É por isso que a usamos para definir igualdade
de frações:
Não
vamos nos alongar numa construção dos números racionais. Basta ter em
mente que eles são representados pelas frações: que frações iguais representam
o mesmo número racional; e que frações distintas representam números racionais
distintos.
Trataremos, em seguida, da definição de razão de duas grandezas da mesma espécie, como segmentos retilíneos ou áreas ou volumes ou ângulos ou massas, etc. Para fixar as idéias, pensaremos apenas sem segmentos retilíneos como sendo as grandezas de nossas hipótese de que elas sejam comensuráveis, isto é, existe um segmento s contido um número inteiro de vezes m em A e outro número inteiro de vezes n em B. Então A = m s e B = n s . Dizemos que s é um submúltiplo comum de A e B. Definimos então a razão de A para B –
se
existe um segmento s
tal que A
= m s
e B = n s
(6) Esta
definição requer alguns comentários. Em primeiro lugar enfatizamos o
fato de que A e B
demos: m é a medida de A com o segmento
s
e n a medida de B com o mesmo segmento,
chamado, então a unidade de medida. Em segundo lugar, temos de nos
certificar de que a definição dada tem significado único e preciso. Pode muito bem acontecer que haja um outro
segmento s’
e números m’e n tais que A
= m’s’
e B = n’s’
(7)
será verdade que vale a relação (7) com algum s’?
Mostraremos a seguir que tudo
isto é verdade. Primeiramente
suponhamos que (6) e (7) se verifiquem. De (6) obtemos nA
= n(ms)
= m (ns)
= mB, isto
é, nA = mB, Substituindo aqui os valores dados em (7), vem n
m’s’
= m n’s’
primeira pergunta acima. Suponhamos
agora que (5) e (6) se verifiquem. De (6) obtemos nA = mB como antes.
Dividindo A em m’segmentos iguais (a
um certo s’)
encontramos A = m’s’,
que é a primeira das relações
em (7). Substituindo em nA =
mB, vem mB = n m’s’.
Daqui e de (5) segue-se que mB =
m n’s’,
donde B = n’s’,
que é a segunda das relações (7). Fica assim respondida afirmativamente
a segunda pergunta acima. As
demonstrações dos dois parágrafos precedentes mostram que a definição
3 tem significado
único e preciso. Do
mesmo modo que a definição
1 é equivalente ä definição
2, no caso de igualdade de frações, também no caso de razão de
duas grandezas podemos mostrar a equivalência da definição 3 com
a definição 4, dada a seguir.
(8) Para
demonstrar que definição def. 4 def. 3 supomos que existem números inteiros m e n tais que nA = mB. Em
seguida dividimos A em m segmentos iguais a um certo segmento s:
A = ms.
Daqui e da relação anterior segue-se que nms
= mB; logo, B = ns.
Isto completa a demonstração de que def. 4
def. 3. Como já provamos que def.
def. 4 (após (7), começando com “De (6) obtemos...”), fica
estabelecida a equivalência das duas definições 3 e 4. Até
aqui temos considerado razões de grandezas no pressuposto de que elas
sejam comensuráveis. Antes de passarmos ao caso incomensurável, vamos
ilustrar a utilização dessas idéias na demonstração de um importante
teorema da Geometria Plana, chamado Teorema de Tales: num
mesmo plano três retas paralelas determinam em duas retas transversais
segmentos proporcionais. Isto significa, de acordo com a Fig. 1, que:
Faremos
a demonstração deste teorema como se todos os segmentos fossem comensuráveis.
Seja s um submúltiplo comum de PQ e QR, de sorte que existem inteiros
m e
n tais que PQ = ms
e QR = ns. Sobre PQ marcamos PS = ST = TU
= ... = s,
como ilustra a Fig. 1, e traçamos as retas SS’, TT’, UU’, ...,
todas paralelas a PP’. A seguir traçamos as retas P’V’, S’X’,
T’Y’, ..., paralelas a PQ. É fácil verificar que os triângulos
P’V’S’, S’X’T’, T’Y’U’,... são todos iguais
(congruentes!) entre si, de sorte que os segmentos P’S’, S’T’,
T’U’,... são também iguais a um mesmo segmento s’.
Segue-se então que P’Q’ = ms’,
e de modo análogo se prova que
O
Teorema de Tales é de importância fundamental em Geometria Plana, pois
dele depende toda a teoria sobre semelhança de figuras; em particular, os
teoremas sobre semelhança de triângulos. Mas sua demonstração, dada
acima, pressupõe, como vimos, que todos os segmentos sejam comensuráveis.
A descoberta dos incomensuráveis, na antiguidade, solapou as bases dessa
teoria e de outras mais, precipitando uma crise de fundamentos, a primeira
a ocorrer na História da Matemática. Era preciso encontrar uma saída,
um modo de demonstrar teoremas como o de Tales, mesmo que os segmentos
envolvidos fossem incomensuráveis.
segmentos A e B, C e D fossem incomensuráveis. Embora A e
B sejam segmentos e não Eudoxo
abre mão disso no caso incomensurável. Para ele, o que realmente importa é
achar o mesmo que escrever:
dados os números m e n, então: nA
= mB nC = mD. Acontece
que, se A e B forem incomensuráveis, igualdades do tipo nA = mB nunca
ocorrerão! Todavia, dados dois números inteiros quaisquer m e n, podemos
certamente testar se nA
> mB, nA = mB ou nA < mB; nC
> mD, nC = mD ou nC < mD. Pois
bem, esse teste é utilizado para definir igualdade de razões (tanto no
caso comensurável quanto no incomensurável) como segue. Definição
5. Dados quatro segmentos A, B, C e D, diz-se que A está para B assim
como C
então nA >mB
nC >mD, (9) nA = mB
nC = mD, (10) nA < mB
nC < mD (11) Esta
definição merece vários comentários. Antes, porém, mostraremos como
utilizá-la na demonstração do Teorema de Tales, mesmo que os segmentos
envolvidos sejam incomensuráveis. Para isso, dados m e n quaisquer,
dividimos PQ em m partes iguais a um certo segmento s,
de sorte que PQ ms.
Ao longo de QR marcamos n segmentos o, perfazendo o segmento QS (fig. 2), isto é, QS = ns.
É . claro então que
Pode
ser que o ponto S caia entre Q e R, exatamente em R, ou além de R. Vamos
supor a primeira destas hipóteses, como ilustra a Fig. 2.
Então, n
. PQ = m . QS < m . QR Traçando,
a seguir, a reta SS’ paralela a PP, obtemos, como na demonstração
anterior:
portanto, n
. P’Q’= m . Q’S’< m.Q’R’. Fica
assim provado que n.PQ
< m.QR n. P’Q’< m.Q’R’. O
raciocínio é o mesmo para provar a recíproca desta última implicação.
Isto completa a demonstração de que n.PQ
< m.QR n . P’Q’< m . Q’R’. (12) De
modo análogo se demonstra que n.PQ
> m.QR n . P’Q’> m . Q’R’, (13) e
a demonstração de n.PQ
= m.QR n . P’Q’ = m . Q’R’. (14) é
a mesma da versão anterior do Teorema de
Tales. De (12), (13), (14) e da def. 5 concluímos que:
A
def. 5 encerra muita engenhosidade. Com efeito, é admirável ter ocorrido
a alguém, há quase 2.400 anos, a idéia de definir igualdade de razões
mesmo quando não se pudessem identificar essas razões com números. E
como costuma acontecer com as idéias geniais, ela é ao mesmo tempo
simples, razoável e fecunda. Com ela foi possível construir toda a
teoria das proporções*[1e resolver uma grave crise nos fundamentos da Matemática. E quando, no século
XIX, quase 2.300 anos mais tarde, Dedekind elaborou uma teoria dos números
reais, ele foi buscar sua inspiração na def. 5 de Eudoxo! Para bem
entendermos isto, Escrevendo
em 1887 ([1], pp. 39-40) o próprio Dedeking identifica a fonte de sua
inspiração: “... e se interpretarmos número real como razão de duas
grandezas, há de se convir que tal interpretação já aparece de maneira
clara na célebre definição dada por Euclides sobre igualdade de razões
(Elementos, V, 5). Aí reside a origem de minha teoria, bem como a de
Bertrand e muitas outras tentativas de construir os fundamentos dos números
reais”. A
citação feita por Dedeking – Elementos, V, 5 – refere-se ao livro V
dos “Elementos” de Euclides, def. 5, que é a definição de Eudoxo,
que no presente artigo também parece com o numero 5! A título de
curiosidade, reproduzimos, a seguir, a definição como se encontra nos
Elementos: Diz-se
que (quatro) grandezas estão na mesma razão, a primeira para a segunda e
a terceira para a quarta, quando, quaisquer que sejam os eqüimúltiplos
que se tomem da primeira e da terceira (nA e nC),
e quaisquer que sejam os eqüimúltiplos da segunda e da quarta
(mB e mD), os primeiros igualmente excedem, são
iguais a ou menores do que os últimos, tomados, respectivamente,
na ordem correspondente. Inserimos
os parênteses nesta definição para facilitar o entendimento. O leitor não
se deve esquecer de que na época em que ela foi escrita — e por muitos
séculos depois —era assim que se fazia Matemática: Muita escrita e
pouca notação, o que tornava muito penoso o raciocínio. Esta é mais
uma razão para admirarmos ainda mais os feitos dos matemáticos da
antiguidade.
Como
já notamos, a teoria de Eudoxo
foi decisiva para resolver a primeira crise que ocorreu nos
fundamentos da Matemática. E, como vimos, a solução ocorreu por um
artifício que consistiu em evitar os números, já que estes se revelaram
insuficientes para definir razões de duas grandezas. Isto significou, na
História da Matemática, um desvio de ênfase: o ideal pitagórico de
reduzir tudo aos números cedia lugar aos fatos geométricos. Falava-se
agora em razão de segmentos, áreas, volumes, ângulos etc., sem que tais
razões tivessem necessariamente medida numérica. A Matemática passa a
ser Geometria, tanto que Platão proclama que “Deus Geometriza
sempre” e no pórtico de sua Academia manda escrever: “quem não for
geômetra não entre”. É oportuno observar que até muito recentemente
os matemáticos eram conhecidos como geômetras. Foi
só em fins do século passado que os números voltaram a ocupar papel de
destaque nos fundamentos da Matemática. Isto ocorreu devido ao já
citado trabalho de Dedekind e à contribuição de muitos outros matemáticos
que criaram teorias dos números mais confiáveis que a própria axiomática
da Geometria. Sem dúvida, isto revigorou a antiga crença pitagórica de
que os números são o fundamento de tudo.
O
ensino da Geometria também acompanhou essa evolução das idéias que
restituiu aos números um lugar proeminente nos fundamentos da Matemática.
Tanto assim que quando ensinamos Geometria admitimos os números reais e a
possibilidade de sempre atribuirmos à razão de dois segmentos um número,
mesmo que ele seja irracional. Esta orientação pedagógica, que é
devida ao matemático americano George Birkhoff**2
(1884-1944), simplifica muitas demonstrações, inclusive a do
Teorema de Tales. O leitor pode apreciar este fato no livro do Prof. Lucas
Barbosa [2], onde, à pág. 90 e seguintes, se encontra uma demonstração
do Teorema de Tales diferente da que apresentamos acima. Pode até parecer
ao leitor menos atento que a demonstração feita em [2] nada tenha a ver
com a definição 5 de Eudoxo;
mas não nos esqueçamos de que tal demonstração se baseia nos números
reais que, por sua vez, dependem das idéias de Eudoxo ou de algo
equivalente
_____________ ** Birkhoff se notabilizou por muitas contribuições significativas em Matemática, face às quais a que mencionamos é praticamente desprezível em importância.
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