Eudoxo, Dedekind, números reais e ensino de Matemática

Geraldo Ávila
Departamento de Matemática – UnB
70 910 Brasília - DF

 

     Introdução

No artigo que publicamos no número 5 desta Revista, intitulado “Grandezas Incomensuráveis e Números irracionais”, dissemos que a descoberta dos incomensuráveis, na antiguidade, representou um momento de crise no desenvolvimento da matemática. Mostraremos, no presente artigo, como essa crise foi superada, ainda no 4.º século a.C. Foi o sábio Eudoxo (aprox. 408-355 a.C.), da escola de Platão, quem desenvolveu uma  teoria das proporções que permitiu superar  a dificuldade dos incomensuráveis  sem a necessidade dos números irracionais. Muito  notável  é o fato de que as mesmas  idéias de  Eudoxo seriam utilizadas mais de dois milênios depôs por Richard Dedekind (1831-1916) na construção  de uma teoria rigorosa dos números reais.
 

     Igualdade de Frações

Para facilitar o entendimento do que devemos expor, começamos recordando a  definição de igualdade de frações. Por simplicidade, só lidaremos com números positivos (inteiros e fracionários); no caso dos inteiros, são eles os números naturais 1, 2, 3, 4, etc..

As frações surgem pela insuficiência dos números naturais no trato de problemas que  envolvem divisão em partes iguais. Tornam-se então necessários introduzir o conceito de igualdade de frações, soma, subtração,etc. Em particular, a igualdade de duas frações deve traduzir o fato de que elas se reduzem por simplificação, ä mesma fração irredutível. Exemplo:

de sorte que                 

.

Definimos então igualdade de frações como segue:

p e q, e números inteiros, a e b, tais  que

m = ap, n = aq, (1)
m’ = bp, n’= bq (2)

Embora esta definição traduz a idéia  exata de igualdade de fração que desejamos  introduzir, ela  é um tanto  complicada e  pouco prática. Para chegarmos a uma definição mais simples notemos que, se (1) e (2) se verificam então

mn’= m’n.             (3)

Reciprocamente, vamos mostrar que esta condição (3) implica a definição anterior.

De fato, primeiro notamos que m e n podem ser escritos na forma (1), com p e q primos entre si; basta tomar a como sendo o m.d.c. de m e n. Substituindo (1) em (3),obtemos

apn’= m’a q, 

ou ainda

pn’= m’q.        (4)

Isto mostra que p divide m’q; como é primo com q,  concluímos que ele divide m’, isto é, existe um número inteiro b tal que m’= bp;  esta é a primeira das relações (2). Levando  este valor em (4), vem

pn’= bpq,

Donde se segue que n’= bq, que é a segunda das relações (2).

Fica assim provado que a relação (3) é equivalente à definição 1 de igualdade de frações que a precede; e ela é muito mais  simples e mais fácil de ser aplicada. É por  isso que a usamos para definir igualdade  de frações:

 

Não vamos nos alongar numa construção dos números racionais. Basta ter em mente que eles são representados pelas frações: que frações iguais representam o mesmo número racional; e que frações distintas representam números racionais distintos.

   

     Razão de grandezas Comensuráveis  

Trataremos, em seguida, da definição de razão de duas grandezas da mesma espécie, como segmentos retilíneos ou áreas ou volumes ou ângulos ou massas, etc. Para  fixar as idéias, pensaremos apenas sem segmentos retilíneos como sendo as grandezas de nossas hipótese de que elas sejam comensuráveis, isto é, existe um segmento  s  contido  um número inteiro de vezes m em A e outro número inteiro de vezes n em B. Então A = m s e B = n s  . Dizemos que  s  é um submúltiplo comum de A e B. Definimos  então a razão de A para B –

se existe um segmento s   tal que

A = m s  e B = n s       (6)

Esta definição requer alguns comentários. Em primeiro lugar enfatizamos o fato de que A e B demos: m  é a medida de A com o  segmento s e n a medida de B com o mesmo  segmento, chamado, então a unidade de medida. Em segundo lugar, temos de nos certificar de que a definição dada tem significado  único e preciso. Pode muito bem acontecer que haja um outro segmento s’ e números m’e n tais que

A = m’s’ e  B = n’s’ (7)

será verdade que vale a relação (7) com algum s’? Mostraremos a  seguir que tudo isto é verdade.

Primeiramente suponhamos que (6) e (7) se verifiquem. De (6) obtemos

nA = n(ms) = m (ns) = mB,

isto é, nA = mB, Substituindo aqui os valores dados em (7), vem

n m’s’ = m n’s

primeira pergunta acima.

Suponhamos agora que (5) e (6) se verifiquem. De (6) obtemos nA = mB como antes. Dividindo A em m’segmentos iguais  (a um certo s’) encontramos A = m’s’, que  é a primeira das relações em (7). Substituindo em  nA = mB, vem mB = n m’s’. Daqui e de (5) segue-se que mB = m n’s’,  donde B = n’s’, que é a segunda das relações (7). Fica assim respondida afirmativamente a segunda pergunta acima.

As demonstrações dos dois parágrafos precedentes mostram que a definição 3  tem  significado único e preciso.

Do mesmo  modo que a definição 1  é equivalente ä definição 2, no caso de igualdade de frações, também no caso de razão de  duas grandezas podemos mostrar a equivalência da definição 3 com a definição 4,  dada a seguir.

                        (8)

Para demonstrar que definição def. 4 def. 3 supomos que existem números inteiros m e n tais que nA = mB. Em seguida dividimos A em m segmentos iguais a um certo seg­mento s: A = ms. Daqui e da relação anterior segue-se que nms = mB; logo, B = ns. Isto completa a demonstração de que def. 4 def. 3. Como já provamos que def. def. 4 (após (7), começando com “De (6) obtemos...”), fica estabelecida a equivalência das duas definições 3 e 4.

Até aqui temos considerado razões de grandezas no pressuposto de que elas sejam comensuráveis. Antes de passarmos ao caso incomensurável, vamos ilustrar a utilização dessas idéias na demonstração de um importante teorema da Geometria Plana, chamado Teorema de Tales: num mesmo plano três retas paralelas determinam em duas retas transversais segmentos proporcionais. Isto significa, de acordo com a Fig. 1, que:

Faremos a demonstração deste teorema como se todos os segmentos fossem comen­suráveis. Seja s um submúltiplo comum de PQ e QR, de sorte que existem inteiros m e n tais que PQ = ms e QR = ns. Sobre PQ marcamos PS = ST = TU  = ... = s, como ilustra a Fig. 1, e traçamos as retas SS’, TT’, UU’, ..., todas paralelas a PP’. A seguir tra­çamos as retas P’V’, S’X’, T’Y’, ..., paralelas a PQ. É fácil verificar que os triângulos P’V’S’, S’X’T’, T’Y’U’,... são todos iguais (congruentes!) entre si, de sorte que os seg­mentos P’S’, S’T’, T’U’,... são também iguais a um mesmo segmento s’. Segue-se então que P’Q’ = ms’, e de modo análogo se prova que 
Q’R’ = ns’; portanto,


 

     A definição de Eudoxo  

O Teorema de Tales é de importância fundamental em Geometria Plana, pois dele depende toda a teoria sobre semelhança de figuras; em particular, os teoremas sobre semelhança de triângulos. Mas sua demonstração, dada acima, pressupõe, como vimos, que todos os segmentos sejam comensuráveis. A descoberta dos incomensuráveis, na antiguidade, solapou as bases dessa teoria e de outras mais, precipitando uma crise de fundamentos, a primeira a ocorrer na História da Matemática. Era preciso encontrar uma saída, um modo de demonstrar teoremas como o de Tales, mesmo que os segmentos envolvidos fossem incomensuráveis.

segmentos A e B, C e D fossem incomensuráveis. Embora A e B sejam segmentos e não Eudoxo abre mão disso no caso incomensurável. Para ele, o que realmente importa é achar  o mesmo que escrever: dados os números m e n, então:

nA = mB nC = mD.

Acontece que, se A e B forem incomensuráveis, igualdades do tipo nA = mB nunca ocorrerão! Todavia, dados dois números inteiros quaisquer m e n, podemos  certamente testar se

nA > mB, nA = mB ou nA < mB;

nC > mD, nC = mD ou nC < mD.

Pois bem, esse teste é utilizado para definir igualdade de razões (tanto no caso comensurável quanto no incomensurável) como segue.

Definição 5. Dados quatro segmentos A, B, C e D, diz-se que A está para B assim  como C então

nA >mB nC >mD,      (9)

nA = mB      nC = mD,        (10)

nA < mB nC < mD   (11)

Esta definição merece vários comentários. Antes, porém, mostraremos como utilizá-la na demonstração do Teorema de Tales, mesmo que os segmentos envolvidos sejam incomensuráveis. Para isso, dados m e n quaisquer, dividimos PQ em m partes iguais a um certo segmento s, de sorte que PQ ms. Ao longo de QR marcamos n segmentos o, perfazendo o segmento QS (fig. 2), isto é, QS = ns. É . claro então que

Pode ser que o ponto S caia entre Q e R, exatamente em R, ou além de R. Vamos supor a primeira destas hipóteses, como ilustra a Fig. 2.

Então,

n . PQ = m . QS < m . QR

Traçando, a seguir, a reta SS’ paralela a PP, obtemos, como na demonstração anterior:

portanto,

n . P’Q’= m . Q’S’< m.Q’R’.

Fica assim provado que

n.PQ < m.QR n. P’Q’< m.Q’R’.

O raciocínio é o mesmo para provar a recíproca desta última implicação. Isto completa a demonstração de  que

n.PQ < m.QR n . P’Q’< m . Q’R’. (12)

De modo análogo se demonstra que

n.PQ > m.QR n . P’Q’> m . Q’R’, (13)

 e a demonstração de

n.PQ = m.QR n . P’Q’ =  m . Q’R’. (14)

 é a mesma da versão anterior do Teorema de  Tales. De (12), (13), (14) e da def. 5 concluímos que:

 

   

     Dedekind  e os Números Reais  

A def. 5 encerra muita engenhosidade. Com efeito, é admirável ter ocorrido a alguém, há quase 2.400 anos, a idéia de definir igualdade de razões mesmo quando não se pudessem identificar essas razões com números. E como costuma acontecer com as idéias geniais, ela é ao mesmo tempo simples, razoável e fecunda. Com ela foi possível construir toda a teoria das proporções*[1e resolver uma grave crise nos fundamentos da Matemática. E quando, no século XIX, quase 2.300 anos mais tarde, Dedekind elaborou uma teoria dos números reais, ele foi buscar sua inspiração na def. 5 de Eudoxo! Para bem entendermos isto,

Escrevendo em 1887 ([1], pp. 39-40) o próprio Dedeking identifica a fonte de sua inspiração: “... e se interpretarmos número real como razão de duas grandezas, há de se convir que tal interpretação já aparece de maneira clara na célebre definição dada por Euclides sobre igualdade de razões (Elementos, V, 5). Aí reside a origem de minha teoria, bem como a de Bertrand e muitas outras tentativas de construir os fundamentos dos números reais”.

A citação feita por Dedeking – Elementos, V, 5 – refere-se ao livro V dos “Elementos” de Euclides, def. 5, que é a definição de Eudoxo, que no presente artigo também parece com o numero 5! A título de curiosidade, reproduzimos, a seguir, a definição como se encontra nos Elementos:

Diz-se que (quatro) grandezas estão na mesma razão, a primeira para a segunda e a terceira para a quarta, quando, quaisquer que sejam os eqüimúltiplos que se tomem da primeira e da terceira (nA e nC), e quaisquer que sejam os eqüimúltiplos da segunda e da quarta (mB e mD), os primeiros igualmente excedem, são  iguais a ou menores do que os últimos, tomados, respectivamente, na ordem correspondente.

Inserimos os parênteses nesta definição para facilitar o entendimento. O leitor não se deve esquecer de que na época em que ela foi escrita — e por muitos séculos depois —era assim que se fazia Matemática: Muita escrita e pouca notação, o que tornava muito penoso o raciocínio. Esta é mais uma razão para admirarmos ainda mais os feitos dos matemáticos da antiguidade.

   

     A Matemática como Geometria e a volta a Pitágoras  

Como já notamos, a teoria de Eudoxo foi decisiva para resolver a primeira crise que ocorreu nos fundamentos da Matemática. E, como vimos, a solução ocorreu por um artifício que consistiu em evitar os números, já que estes se revelaram insuficientes para definir razões de duas grandezas. Isto significou, na História da Matemática, um desvio de ênfase: o ideal pitagórico de reduzir tudo aos números cedia lugar aos fatos geométricos. Falava-se agora em razão de segmentos, áreas, volumes, ângulos etc., sem que tais razões tivessem necessariamente medida numérica. A Matemática passa a ser Geometria, tanto que Platão proclama que “Deus Geometriza sempre” e no pórtico de sua Academia manda escrever: “quem não for geômetra não entre”. É oportuno observar que até muito recentemente os matemáticos eram conhecidos como geômetras.

Foi só em fins do século passado que os números voltaram a ocupar papel de desta­que nos fundamentos da Matemática. Isto ocorreu devido ao já citado trabalho de Dedekind e à contribuição de muitos outros matemáticos que criaram teorias dos números mais confiáveis que a própria axiomática da Geometria. Sem dúvida, isto revigorou a antiga crença pitagórica de que os números são o fundamento de tudo.

   

     lmplicações no Ensino  

O ensino da Geometria também acompanhou essa evolução das idéias que restituiu aos números um lugar proeminente nos fundamentos da Matemática. Tanto assim que quando ensinamos Geometria admitimos os números reais e a possibilidade de sempre atribuirmos à razão de dois segmentos um número, mesmo que ele seja irracional. Esta orientação pedagógica, que é devida ao matemático americano George Birkhoff**2 (1884-1944), simplifica muitas demonstrações, inclusive a do Teorema de Tales. O leitor pode apreciar este fato no livro do Prof. Lucas Barbosa [2], onde, à pág. 90 e seguintes, se encontra uma demonstração do Teorema de Tales diferente da que apresentamos acima. Pode até parecer ao leitor menos atento que a demonstração feita em [2] nada tenha a ver com a definição 5 de Eudoxo; mas não nos esqueçamos de que tal demonstração se baseia nos números reais que, por sua vez, dependem das idéias de Eudoxo ou de algo equivalente

 

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*Um tratamento das razões e proporções à maneira de Eudoxo encontra-se no 1.º capítulo do 2.º volume da obra de Severi [3].

** Birkhoff se notabilizou por muitas contribuições significativas em Matemática, face às quais a que mencionamos é praticamente desprezível em importância.