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Na
seção de livros de uma loja de departamento, deparei-me outro dia, por
acaso, com um exemplar da 27a. edição de “O Homem que
Calculava” de Malba Tahan. (Editora Record, Rio de Janeiro, 1983).
Quarenta anos depois de o ter lido pela primeira vez, não resisti à
tentação nostálgica de reviver antigas emoções. Comprei-o e o reli.
Para os mais jovens leitores da RPM, talvez tenha alguma utilidade dizer
algumas palavras sobre esse autor
e sua obra. Malba
Tahan, pseudônimo do Professor Júlio César de Mello e Souza, exerceu
uma influência singular entre os estudantes da minha geração. Para os não-especialistas,
em particular para a imprensa, ele foi, enquanto viveu, o maior matemático
do Brasil. Esse julgamento, que pouco tinha a ver com a realidade,
resultava principalmente do grande número de livros que ele escreveu
(quase uma centena), muitos deles sobre Matemática. Eram livros de
divulgação, escritos num estilo claro, simples e agradável, peculiar ao
autor. Neles, a ênfase maior era dada à História da Matemática e a
exposições sobre tópicos elementares, inclusive da Matemática que fora
moderna no princípio deste século, com destaque para aspectos
pitorescos, paradoxais, surpreendentes ou controversos. Embora
os livros de Malba Tahan tenham sido criticados por tratarem seus assuntos
de forma superficial, por conterem alguns erros sérios de concepção por
serem em grande parte, meras compilações e coletâneas de citações, é
forçoso reconhecer que alguns desses livros tiveram grande aceitação, o
que significa que havia no país um numeroso público, na maioria jovem,
ávido por conhecer melhor a Matemática, sua história e seus
desenvolvimentos. Principalmente pessoas ansiosas por ouvir alguém falar
da Matemática sob forma menos árida e antipática do que seus
tradicionais e severos professores, com seus igualmente áridos compêndios.
Essa necessidade foi suprida, devemos admitir, com bastante sucesso, por
Malba Tahan. Olhando
em retrospecto, podemos hoje
achar que esse papel de propagandista da Matemática deveria ter sido
ocupado por alguém com melhor treinamento profissional, isto é com mais competência científica. Alguém
como Amoroso Costa, talvez. Mas amoroso morreu cedo e, mesmo assim,
em que pese da sua vasta cultura, o país ainda não estava
maduro para um divulgador do seu nível. Malba
Tahan surgiu na hora certa, com o nível
e o estilo que minha geração queria. Se o analisarmos como matemático,
estaremos olhando para o lado
errado. Mas, se mudarmos o enfoque, podemos vê-lo mais
adequadamente, como jornalista, divulgado, antologista ou contador de histórias. Como contador de histórias,
ele tem grandes momentos e “O Homem que Calculava” é o seu melhor
trabalho. Em
suas 27 edições, “O Homem que Calculava” muito fez para
estimular o cultivo da arte de resolver problemas, incutir o amor pela
Matemática e destacar aspectos nobres e estéticos desta Ciência. Eu era
menino quando minha irmã mais velha ganhou um exemplar desse livro corno
presente de seu professor. Lembro-me que o devorei avidamente. E ao relê-lo
agora, não obstante os muitos calos
que me deixou o longo exercício do magistério ainda senti algumas
das mesmas emoções de outrora, diante de certos trechos de rara
beleza. Como
toda obra, o livro tem seus pontos altos e outros nem tanto. Curiosamente,
as coisas que mais me agradaram na leitura de hoje foram aquelas das quais
guardava ainda alguma lembrança desde a primeira vez. “O
Homem que Calculava” é a história de Beremiz Samir um fictício jovem
persa, hábil calculista, versado na Matemática da época contado por um
amigo, admirador e companheiro de viagens, uma espécie de Dr. Watson muçulmano.
Em certas passagens, a narrativa das proezas matemáticas de Beremiz nos
diferentes lugares por onde passava nos faz lembrar o Evangelho segundo São
Marcos. O relato, feito por um maometano ortodoxo, é cheio de respeitosas
evocações divinas e pontilhado pela linguagem pitoresca dos árabes de
novela. Isto é feito com graça e dá um colorido especial ao conto. Beremiz
Samir resolve problemas curiosos, alguns propostos, outros acontecidos
naturalmente em suas andanças. Faz também discursos eloqüentes sobre o
amor à Deus, a grandeza moral e a Matemática. E dá aulas de Matemática
bastante inspiradas A filha de um cheique, com a qual vem a casar-se no
fim da história. Para que se tenha uma idéia dos problemas tratados,
descrevemos o primeiro, o segundo e o último deles. No
primeiro problema, Beremiz e seu amigo,
viajando sobre o mesmo camelo, chegam a um oásis, onde encontram três
irmãos discutindo acaloradamente sobre como dividir uma herança de 35 camelos. Seu pai estipulara que a metade dessa herança caberia
ao filho mais velho, um terço ao do
meio e um nono ao mais moço.
Como 35 não é divisível
por 2, nem por 3, nem por 9, eles não sabiam como efetuar a partilha.
Para espanto e preocupação do amigo,
Beremiz entrega seu camelo aos 3 irmãos, a fim de facilitar a divisão.
Os 36 camelos são
repartidos, ficando o irmão mais velho com 18, o do meio com 12 e o
mais moço com 4 camelos Todos ficaram contentes porque esperavam antes
receber 17 e meio, e, 11 e dois terços e 3
e oito nonos respectivamente. E o melhor: como 18 + l2 +
4 = 34, sobraram 2
camelos, a saber, o que fora emprestado e mais um. Todo mundo saiu
ganhando. Explicação: um meio
mais um terço mais um nono é
igual a 17/18, logo da menor do que 1. Na partilha recomendada pelo velho
árabe sobrava um resto, do que se na aproveitaram Beremiz e seu amigo. O
segundo problema é urna pequena delícia. Beremiz e seu amigo, a
caminho de Bagdá. socorrem no
deserto um rico cheique, que fora assaltado, e com ele repartem irmãmente
sua comida, que se resumia a 8 pães. 5 de Beremiz e 3
do amigo. Chegados ao seu
destino, o cheique os recompensa com de oito moedas de ouro: 5 para
Beremiz e 3 para o amigo. Todos então se surpreendem com os suaves
protesto de Beremiz. Segundo este, a maneira justa de repartir as 8 moedas
seria dar 7 a ele e 1 apenas ao amigo! E prova: durante a viagem, cada
refeição consistia em dividir um pão em 3 partes iguais e cada um dos
viajantes comia uma delas. Foram consumidos ao todo 8 pães, ou seja, 24
terços, cada viajante comendo 8 terços. Destes, 15 terços foram dados
por Beremiz, que comeu 8, logo contribuiu com 7 terços para a alimentação
do cheique. Por sua vez, o seu amigo contribuiu com 3 pães, isto é, 9
terços, dos quais consumiu 8, logo participou apenas com 1 terço
para alimentar o cheique. Isto significa a observação de Beremiz. No
final, porém, o homem que calculava, generosamente, ficou com apenas 4
moedas, dando as 4 restantes ao amigo. O
último problema do livro se refere a 5 escravas de um poderoso califa. Três
delas tem olhos azuis e nunca falam a
verdade. As outras duas tem olhos negros e só dizem verdade. As escravas
se apresentaram com os rostos
cobertos por véus e Beremiz
foi desafiado a determinar a cor dos olhos de
cada uma, tendo o direito a
fazer três perguntas, não mais do que uma pergunta a
cada escrava. Para facilita as referencias, chamaremos as 5
escravas A,B,C,D e E. Beremiz
começou perguntando à escrava A: “Qual a cor dos seus olhos?” Para
seu desespero, ela respondeu
em chinês, língua que ele não
entendia, por isso protestou. Seu protesto não foi aceito, mas ficou
decidido que as respostas seguintes seriam em
árabe. Em seguida, lê perguntou a B: “Qual foi a resposta que A
me deu?” B respondeu: “Que
seus olhos eram azuis”. Finalmente, Beremiz perguntou a C: “Quais as
cores dos olhos de A e B?” A resposta de C foi: “Ä tem olhos pretos e
B tem olhos azuis”. Neste ponto, o homem que calculava concluiu. “A tem olhos pretos,
B azuis, C pretos, D azuis e E azuis”. Acertou e todos ficaram
maravilhados. Explicação
para a dedução de Beremiz: Em primeiro lugar, se perguntarmos a qualquer
das cinco escravas qual a cor dos seus
olhos, sua resposta só poderá ser “Negros”, tenha ela olhos
azuis ou negros, pois na primeira hipótese ela mentirá e na segunda dirá
a verdade. Logo B mentiu e, portanto seus olhos são azuis. Como C
disse que os olhos de B eram azuis, C falou a verdade, logo seus olhos são
negros. Também porque C fala a verdade, os olhos de A são negros, Como
somente duas escravas tem olhos negros, segue-se que os olhos de D e E são
azuis. Certamente
Malba Tahan escolheu este caso para o fim do livro porque desejava encerrá-lo
com chave de ouro, tal a beleza do problema. Podemos, entretanto, fazer três
observações que reduzem bastante o brilho desse “gran finale”: 1) O método usado por Beremiz não permite sempre resolver o
problema. Ele acertou por mero
acaso. Com efeito, se os olhos de A fossem azuis (admitindo ainda que B
tenha olhos azuis e C
negros), ele só poderia concluir que entre D e E, uma teria olhos
azuis e a outra olhos negros.
Mas não poderia dizer qual delas. Mais precisamente: o raciocínio
utilizado por Beremiz permite determinar apenas as cores dos olhos de A, B
e C . Por exclusão, conclui-se que D e E tem as cores que faltam, mas não
se pode especificar a cor de cada uma quando essas cores forem diferentes. 2) Se Beremiz fosse mais esperto, encontraria um método infalível
para determinar a cor dos olhos de cada uma das escravas fazendo apenas
uma única pergunta! Bastava chegar junto a uma das escravas (digamos, A)
perguntar: “Qual a cor dos olhos de cada um de vocês?” Como há 3
escravas de olhos azuis e 2 de olhos negros, só haveria duas respostas
possíveis. Se A tivesse olhos negros, sua resposta mencionaria duas escravas de olhos negros três de olhos
azuis e seria a resposta certa. Se A tivesse
olhos azuis, sua resposta diria três escravas de olhos negros e
duas de olhos azuis e, neste
caso, bastariam inverter sua resposta para obter a verdade. 3) (A solução de Beremiz e aquela dada em “2) acima fazem uso de
uma informação parentemente essencial: quantas escravas
de olhos azuis e quantas de olhos negros
existem no grupo. Suponhamos agora que essa informação seja
omitida. Têm-se n escravas, cujos olhos podem ser azuis ou negros. As
primeiras mentem sempre, as últimas
nunca. Pode haver de 0 a n escravas de olhos
azuis; conseqüentemente, o número
de escravas de olhos negros
também não é fornecido.Mesmo assim,ainda é possível determinar a
cor dos olhos de cada uma por meio de uma única pergunta! Basta
perguntar ä escrava A o seguinte: “Se meu amigo lhe indagasse qual a
cor dos olhos de cada uma das n, que lhe responderia você?” A
resposta de A para mim consistiria em atribuir a cada escrava uma cor de
olhos. Pois bem, seja qual fosse a cor dos olhos de A, fosse ela mentirosa
ou não, a cor dos
olhos de cada escrava seria exatamente aquelas dada por sua
resposta a mim. Com
efeito, apenas por uma questão de
método vamos supor que A começasse sua resposta pela cor dos seus
próprios olhos. Haveria então duas possibilidades quanto ao começo da
resposta de A. Primeira:
“Eu diria ao seu amigo que meus olhos são negros, que os olhos de B são...etc”.
Neste caso, A não me mente, porque ela só poderia dizer ao meu amigo que
seus olhos são negros. Logo seus olhos são mesmo negros e sua resposta
contém a verdade. Segunda:
“Eu diria ao seu amigo que
meus olhos são azuis, que os
de B são .... etc”. Então A é mentirosa, pois ela não poderia dizer
a ninguém que seus próprios olhos são azuis. Portanto A mentiria ao meu
amigo e me diria ao contrário, logo me contaria a verdade. Apesar de ter estragado um pouco da festa de Beremiz com as escravas, espero ter deixado claro que me diverti lendo “O Homem que Calculava”, tanto agora como da primeira vez. A solução b) foi por mim imaginada naquela época, embora as pessoas que me conhecem, ou que sabem a cor dos meus olhos, duvidem muito desta afirmação. |