Mauricio Matos Peixoto

 

Damos aqui um exemplo em que a Aritmética surge naturalmente num problema de origem geométrica. São muitas as situações em que essas duas áreas da Matemática se encontram na solução de um problema gerado num ou noutro campo.

O exemplo que estudamos a seguir é extraído do livro de divulgação Geometria e imaginação, de David Hilbert e H. Cohen Voss. Sobre esse livro, veja o artigo de Geraldo Ávila com o mesmo título do livro, Geometria e imaginação (RPM 03).

Hilbert (1862-1943), alemão, foi um dos maiores matemáticos do século XX. Carl Friedrich Gauss (1777-1855) foi um dos grandes gênios da Matemática de todos os tempos. Uma de suas contribuições mais singelas consistiu em definir que, dados números inteiros a, b, m, com m > 0, então diz-se que a é congruente a b módulo m se, e somente se, a – b é divisível por m, ou, em outras palavras, se a e b deixam o mesmo resto quando divididos por m. Além do mais, para exprimir a congruência assim definida, Gauss introduziu – um fato importante – a notação

ab (mod m)

que se lê como a é congruente (ou côngruo) a b, módulo m.

Esse conceito de congruência foi introduzido logo na primeira página do livro em latim, Disquisitiones Aritmeticæ (Investigações Aritméticas), publicado por C. F. Gauss em 1801 e lá ocupa um lugar de destaque(1). Esse livro é um dos grandes clássicos da literatura matemática e deu à Teoria dos Números um status de disciplina matemática bem-definida. Vale observar que esse conceito de congruência foi posteriormente estendido a situações bem mais gerais (classes de equivalência, espaços quocientes). Essa singela contribuição de Gauss foi profunda e fundamental à Matemática.

O exemplo objeto deste artigo é um processo de cálculo aproximado de π a partir da contagem de pontos de um quadriculado. Vamos chamar esse quadriculado de rede, os vértices dos quadrados da rede de pontos da rede e um quadrado básico da rede (aquele que não contém outro quadrado da rede) de quadrado unitário.

Um exemplo mais imediato envolvendo o conceito de rede é a fórmula de Pick, em que uma simples contagem de pontos dá o valor da área de um polígono simples (sem autointerseções), cujos vértices sejam pontos de uma rede. O estudo dessa fórmula se encontra no capítulo Como calcular a área de um polígono se você sabe contar, do livro de autoria de Elon Lages Lima, Meu professor de Matemática e outras histórias (3ª edição, SBM, 1997), de onde foi extraída a figura 1. A fórmula de Pick dá o valor da área A desse polígono, tendo como unidade a área do quadrado unitário da rede, a partir do número I de pontos da rede internos ao polígono e do número B de pontos da rede do seu bordo, pela expressão:

A fórmula de Pick é uma fórmula bastante interessante de demonstração não trivial e tem-se a impressão de que ela aguarda uma aplicação substancial.

Voltemos ao cálculo de π. O exemplo aqui exposto parte da contagem dos pontos de uma rede contidos num disco com centro num ponto O dessa rede e de raio r. Esse número foi considerado por Gauss e, por isso, ele recebeu posteriormente o nome de função de Gauss.

 

A função de Gauss, f(r), que dá o número de pontos da rede contidos no disco com centro num ponto da rede e de raio r, pode ser calculada por operações aritméticas e alguns de seus valores estão na tabela ao lado.

 

 

Observamos que f(r) é também a área da união dos quadrados unitários cujo vértice inferior esquerdo esteja contido no disco (estamos considerando os lados do quadriculado nas direções horizontal e vertical), que, para r > 0, é um número inteiro e positivo (figura 2).

Vamos, então, calcular uma aproximação desse número, levando em conta que a união desses quadrados é uma figura contida no disco de centro O e raio r + e que contém no seu interior o disco de centro O e raio r (figura 3).

Dessa observação e do fato de que a área do disco de partida é igual a πr2, se B(r) é a área do anel entre os discos de raios r + 2 e r − 2 , tem-se:

| f (r) − πr2 | < B(r), implicando .

E, como B(r) = [(r + )2 − (r)2 ]π = 4πr, tem-se: . O segundo membro dessa desigualdade é uma constante dividida por r, donde se conclui que, se r cresce, o quociente fica cada vez menor, tendendo a 0 quando r tender a ∞, ou seja:
. (1)

 

 

A tabela da página anterior, portanto, fornece as aproximações de π ao lado(2).

 


Vale a pena, portanto, conhecer um pouco mais sobre a função de Gauss. Vamos estabelecer um sistema de coordenadas (x, y) com origem no centro O do disco de partida, compatível com a rede, ou seja, com eixos sobre os lados dos quadrados da rede e unidades iguais ao lado do quadrado unitário de modo que os pontos da rede são aqueles de coordenadas inteiras. E consideremos a equação diofantina (equação da qual só se consideram as soluções que sejam pares de números inteiros): x2 + y2 = N, (2), onde x, yZ e N é um inteiro positivo.

Consideremos a função R(N) que dá o número de soluções inteiras dessa equação. Isso corresponde ao número de pontos da rede que estão sobre a circunferência de centro na origem e raio . Essa função é bem conhecida e pode ser calculada a partir do conhecimento dos divisores ímpares de N, por exemplo, pela expressão:

, d ímpar.

Ou seja, R(N) é quatro vezes a diferença entre o número de divisores ímpares de N côngruos a 1 módulo 4 e o número de divisores ímpares de N côngruos a 3 módulo 4(3).

Ora, a função de Gauss, f(r), é exatamente a soma dessas funções para todos os raios de 1 até r mais 1, relativo à origem (0, 0). Isto é:

f(r) = 1 + R(1) + R(2) + ... + R(r2).

Algumas propriedades da função R(N) podem ser verificadas por simples cálculo de restos, como, por exemplo, se N ≡ 3 (mod 4), ou seja, se o resto da divisão de N por 4 é 3 (e, portanto, N é ímpar), então a equação (1) não tem solução, ou seja, R(N) = 0. Com efeito, se a soma x2 + y2 é um número ímpar, uma das parcelas é ímpar e a outra par; portanto, um dos números x2 ou y2 é par e outro é ímpar. Suponhamos que x2 seja par e y2 ímpar. Analisando a decomposição em fatores primos de x2 e y2, é fácil ver que x tem que ser par e y ímpar. Então x2 é divisível por 4 e y deixa resto 1 ou 3 quando dividido por 4, isto é, y = 4k + 1 ou y = 4k + 3, com k inteiro. Em qualquer um dos casos, y2 = 4m + 1, com m inteiro, isto é, x2 + y2 = 4s + 1, com s inteiro. Logo, se N é ímpar e há alguma solução inteira de (2), N ≡ 1 (mod 4).

Um pouco mais elaborado é o fato de que, se a decomposição em fatores primos de N apresenta algum fator primo q ≡ 3 (mod 4) com expoente ímpar, então também R(N) = 0, o que pode ser encontrado no mesmo teorema anteriormente citado do livro de E. Landau.

Vale observar que o número π, que é irracional e transcendente, ou seja, não é solução de nenhuma equação algébrica com coeficientes racionais, pode ter suas aproximações calculadas a partir do estudo de equações diofantinas (soluções inteiras de equações com coeficientes inteiros). E, pela fórmula (1), se N é um número natural e R(N) é o número de soluções inteiras da equação diofantina

x2 + y2 = N,

tem-se a surpreendente fórmula de Gauss:

.

Nos dias de hoje, em que outros processos matemáticos aliados à tecnologia moderna dão milhares de casas decimais de π(4), o interesse desse cálculo é só teórico. Mas a fórmula acima ilustra bem o que fazem os matemáticos. Eles estão sempre procurando resultados, como essa fórmula, em que esteja presente a trinca mágica: simplicidade, beleza, profundidade.

 

Nota: O assunto abordado neste artigo foi tema de uma palestra ministrada pelo autor em janeiro de 2009, no IMPA, para alunos premiados na OBMEP, edição de 2008.

 

(1) Há um interessante artigo de Benedito Tadeu Vasconcelos sobre congruências publicado na RPM 22.

(2) O editor Paulo Cezar P. Carvalho sugeriu o cálculo de valores de f(r), com r inteiro positivo, numa planilha eletrônica, da seguinte forma:
Em A1, digite 0 e complete a coluna com a sequência de incremento 1 até r.
Em B1, digite =RAIZ(r^2-A1^2), ou seja, calcule a .
Em C1, digite =4*INT(B1), ou seja, calcule o maior inteiro contido em B1.
Copie as células B1 e C1 até chegar à célula C(r+1).
Calcule a soma da célula C1 até a célula C(r+1) e some 1 a esse número.
Esse é o valor de f(r). A figura 1 ajuda a justificar esse cálculo.

(3) Prova dessa fórmula encontra-se em Edmund Landau, Teoria elementar dos números. Editora Ciência Moderna (2002), Teorema 163, p. 166

(4) Ver, por exemplo, Novas fórmulas utilizadas no cálculo do valor de π (RPM 41).