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José Paulo Carneiro
Para dividir ao meio uma laranja, passa-se a faca pelo centro da laranja. E se quiséssemos cortar, digamos, um quinto da laranja? Por onde se passaria a faca? Naturalmente, estamos supondo que a laranja é uma esfera, e que a estamos cortando por um plano. O plano que passa pelo seu centro divide-a em duas partes de mesmo volume. Mas por onde deve passar um plano que determine um segmento esférico de uma base, cujo volume seja, digamos, um quinto do volume da esfera? De um modo mais geral, dada uma esfera e um número k, 0 < k < 1/2, queremos determinar a razão q = d/R, onde R é o raio da esfera e d a distância de um plano ao centro da esfera, para que a razão entre o volume do menor segmento esférico de uma base determinado por esse plano e o volume da esfera seja igual a k. Um segmento esférico de uma base fica determinado por sua altura h = R − d, que é a distância de sua base ao seu polo. O volume da esfera é , enquanto o volume do segmento esférico é (para uma justificativa dessas fórmulas, veja [1] ou a RPM 56, pág. 13), de modo que: Portanto, q deve ser raiz da equação polinomial do terceiro grau: q3 − 3q + 2 − 4k = 0 (1), além de satisfazer a 0 < q < 1. Para valores particulares de k, podemos resolver essa equação por métodos numéricos, como, por exemplo, o apresentado em [2]. No caso sugerido de k = 1/5, a equação fica: q3 − 3q2 + 1,2 = 0, obtendo-se q 0,4257 como a única solução entre 0 e 1. Em outras palavras, para obter um quinto da laranja, deve-se passar a faca a uma distância do centro igual a aproximadamente 42,57% do raio da laranja. A tabela a seguir fornece, à guisa de exemplos, os valores de q (em forma de porcentagem) para outros valores especiais de k. É curioso que, no caso geral, a equação tenha uma solução explícita bastante simples, usando funções trigonométricas. Em primeiro lugar, vamos mostrar que, para qualquer valor de k, sendo 0 < k < 1/2, a equação (1) tem três raízes reais, sendo uma e só uma no intervalo 0 < q < 1. Ou seja, nosso problema tem solução e ela é única, como já esperava o experiente cortador de laranjas. De fato, sendo f(q) = q3 − 3q + 2 − 4k, então: f(−2) = − 4k < 0 f(0) = 2 − 4k = 4( − k) > 0 f(1) = − 4k < 0 f(2) = 4 − 4k = 4(1 − k) > 0 Segue que f tem uma raiz entre −2 e 0, outra entre 0 e 1, e uma terceira entre 1 e 2 (veja [2]). Como uma equação do terceiro grau não pode ter mais do que três raízes, essas são todas. Logo, a equação (1) tem uma e só uma solução entre 0 e 1. Vamos agora fazer, na equação (1), a substituição t = arccos (q/2). [Se o leitor ficou cismado com esse artifício, aguarde o final do artigo.] Em primeiro lugar, isso implica que q/2 = cos t. Além disso, como cos π/2 = 0 < q/2 < 1/2 = cos π/3, e a função arccos é decrescente, então: π/3 < t < π/2. Fazendo a substituição q = 2cos t, a equação (1) fica: 8cos3t − 6cos t + 2 − 4k = 0. Porém, cos 3t = 4cos3 t − 3cos t (veja qualquer livro de Trigonometria), ou seja: 8cos3t − 6cos t = 2cos 3t, o que transforma a equação (1) na equação: cos 3t = 2k − 1. (2) Neste ponto, alguns sentem a irresistível vontade de considerar resolvida essa equação, colocando: 3t = arccos(2k − 1), o que implica . Mas calma! Por definição, arccos(2k − 1) não é qualquer número ("arco") cujo cosseno seja 2k − 1, e sim o único número entre 0 e π cujo cosseno é 2k − 1. Como π/3 < t < π/2, então π < 3t < 3π/2. Logo: 0 < 3t − π < π/2 e cos(3t − π) = − cos 3t = 1 − 2k. Portanto, 3t − π = arccos(1 − 2k) (este sim!), donde: . Finalmente, a solução do nosso problema é: O leitor pode agora aplicar essa fórmula com a sua calculadora científica. Por exemplo, para k = 1/5, tem-se (com 4 decimais, usando radianos): arccos(1 − 2k) = arccos 0,6 = 0,9273. Então, q = 2cos 1,3563 = 2 × 0,2129 = 0,4257, como havíamos achado antes, resolvendo a equação por outro método. Mas de onde surgiu a ideia da substituição t = arccos(q/2)? Parece-me interessante comentar que essa não foi a primeira ideia para abordar a equação (1). O que fiz primeiro foi submetê-la a duas transformações sucessivas, ambas usuais em resolução de equações do 3º grau (veja [3], [4] ou [5]). A substituição transforma a equação (1) em: u6 + (2 − 4k)u3 + 1 = 0. (2) Por sua vez, fazendo u3 = z, essa equação é equivalente a: z2 + (2 − 4k)z + 1 = 0. (3) Essa equação do 2º grau tem discriminante 16k(k − 1), que é negativo, pois 0 < k < 1/2. Suas raízes são complexos conjugados z e z, cujo produto é: z z =| z |2=1, ou seja, são complexos unitários, que podemos escrever na forma: z = cos θ + i sen θ = cis θ e z = cosθ − isen θ = cis(−θ) =1/ z , sendo cos θ = 2k − 1. [Usamos a notação "cis" para tornar a escrita menos pesada.] Como 2k − 1 < 0, então π/2 < θ = arccos(1 − 2k) < π. As três soluções de u3 = z = cis θ são: e . Para qualquer uma delas, as correspondentes soluções da equação (1) são da forma: . (Se tivéssemos usado z em vez de z, obteríamos o mesmo resultado.) Logo, as três soluções da equação (1) são: . Aqui, já está claro que a solução de (1) é da forma q = 2cos t, o que justifica o artifício empregado acima. Mas para concluir esse método de resolução, vejamos que, dessas três soluções, a última é a que está compreendida entre 0 e 1. De fato: Conclusão: a solução explícita da equação (1) é . O leitor pode observar que essa fórmula produz os mesmos valores para q obtidos anteriormente, já que arccos(1 − 2k) = π − arccos(2k − 1) e, portanto,
Referências bibliográficas [1] DOLCE, O. e POMPEO, J. N. Fundamentos de Matemática elementar, vol. 10. São Paulo: Atual, 2008. |