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Gilberto Garbi
Embora eu tenha lecionado Matemática regularmente por cinco anos consecutivos na década de 60, estou afastado das salas de aula há muito tempo e isso talvez explique as surpresas que, vez ou outra, tenho sobre as ideias e métodos atualmente vigentes no ensino dessa matéria. Há pouco mais de um ano, por exemplo, meu filho, então com 15 anos, pediu-me que o ajudasse na solução de alguns problemas. Mostrei-lhe que se tratava de questões que, direta ou indiretamente, dependiam da aplicação da Lei dos Senos, por ele conhecida. Resolvidas corretamente as questões, ocorreu-me perguntar-lhe se a professora havia explicado por que, em qualquer triângulo, a relação entre cada lado e o seno do ângulo oposto é a mesma. "Não", disse-me ele. "A professora disse que mais tarde vai provar, mas, por enquanto, devemos utilizar essa lei como uma propriedade dos triângulos." Essa resposta chocou-me de tal maneira que decidi questionar a escola. Ao marcar uma reunião com o diretor, fui informado de que ele próprio é professor de Matemática e isso encheu-me de esperanças, mas o diálogo foi decepcionante. Após ouvir minha reclamação sobre a maneira como a Lei dos Senos (e tudo o mais...) estava sendo ensinada – ou seja, "essa é a lei, aplique-a que dá certo" – ouvi do diretor do colégio, que é considerado um dos melhores de Curitiba, o seguinte: "Eu compreendo seu ponto de vista, professor, mas o fato é que hoje os jovens não aceitam mais que os professores fiquem diante do quadro demonstrando teoremas". Eu ainda insisti sobre o absurdo que é fazer jovens, que têm plena capacidade de entender a Matemática dedutiva, apenas decorarem "leis" com as quais resolvem problemas, embora desconhecendo os raciocínios que as justificam. Mas foi em vão. Saí da reunião perplexo porque, afinal, no século VI a.C., os gregos explicitaram a Matemática dedutiva ao afirmar que nela as verdades devem ser provadas, abandonando a forma expositiva dos textos egípcios e babilônicos que simplesmente diziam: "Faça isso, em seguida aquilo. Essa é a solução". Teríamos voltado, no Brasil de hoje, à didática do segundo milênio a.C.? Ao analisar os livros-texto de meu filho, obras que todos os anos vendem centenas de milhares de exemplares, concluí que não estamos muito longe daquela época. Por exemplo, em certo ponto, após mostrar apenas alguns poucos casos de polinômios que podem ser fatorados como produtos de binômios, o autor diz: "Isso nos permite enunciar o seguinte teorema: todo polinômio de grau n pode ser fatorado no produto de n binômios do primeiro grau". Nem se deu ao trabalho de dizer que exemplos como aqueles fizeram com que os matemáticos conjecturassem tal teorema e que, no século XIX, ele foi rigorosamente provado por Gauss no Campo Complexo. Ainda incrédulo diante do que estava vendo, procurei por alguns professores de minha faixa etária, mas ainda na ativa, para ouvir suas opiniões. Confirmaram tudo e acrescentaram algo que para mim foi um segundo grande choque: os professores de crianças estão sendo orientados a não exigir de seus alunos que saibam a tabuada de cor... Tomei conhecimento, inclusive, de um episódio bastante ilustrativo. No início de 2007, em discurso em que falou sobre a necessidade de melhorar a qualidade do ensino público no Brasil, uma autoridade governamental externou sua opinião favorável a que as escolas ensinem a tabuada às crianças, como se fazia em seu tempo. Essa simples e, a meu ver, óbvia afirmação da citada autoridade teria provocado reações contrárias dos mais diversos níveis, todas fundamentadas na ideia de que as crianças devem ser ensinadas a pensar e não a decorar. Será que perdemos o bom senso? Então, finge-se não saber que adolescentes estão sendo levados a decorar, sem entender, grandes quantidades de fatos da Matemática, como a citada Lei dos Senos, e impede-se que os professores cobrem de suas crianças a memorização da tabuada? Lamento ter que externar minha opinião com palavras fortes, mas aqui estamos diante de um quadro grave de hipocrisia pedagógica, algo análogo ao que fazem certas pessoas que, após uma refeição exagerada, pedem o café com adoçante. É falso o dilema entre entender ou decorar na Matemática. O aprendizado da Matemática se faz através da compreensão e da memorização. O ideal é que a compreensão preceda a memorização e uma não exclui a outra. Acaso algum adulto medianamente educado consegue, nos dias de hoje, exercer alguma atividade sem saber de cor a tabuada ou tornar-se um escravo da calculadora, nem sempre à mão? Então, é desejável que, algum dia, o estudante conheça a tabuada de memória e o que se deve estabelecer é a melhor idade e a melhor maneira para que isso ocorra. Estão certos os que advogam que as crianças devem entender que a tabuada é construída a partir de somas de parcelas iguais e que o aluno que não se lembrar de quanto é 9 × 7 pode encontrar o resultado contando o número de pontinhos existentes em 9 filas de 7 pontinhos cada. Mas qualquer criança na faixa dos 9 anos tem condições de entender que, se souber a tabuada de memória, pode fazer mais rapidamente as operações aritméticas. Essa memorização pode ser conseguida com pouco esforço, inclusive permitindo-se que as crianças consultem livremente tabuadas gravadas em seu material didático (o que, segundo ouvi, também é abominado por certas correntes do ensino). Aliás, foi assim que minha filha de 8 anos decorou a tabuada em uma escola que, simplesmente, decidiu ignorar a polêmica sem sentido que hoje há no Brasil sobre essa questão banal e adotou uma metodologia trazida diretamente da Alemanha. Não há mal algum, é útil e prático, que os estudantes saibam de cor, por exemplo, que o volume da esfera é , que sen2θ = 2senθcosθ ou que o volume da pirâmide é um terço do produto da área da base pela medida da altura, desde que tenham visto e compreendido como essas fórmulas são deduzidas através de raciocínios matemáticos. Entretanto, observo que os elaboradores dos exames do ENEM esforçam-se para evitar a proposição de questões que exijam o emprego de fórmulas memorizadas, mas não vejo nenhuma ação no sentido de estabelecer um conteúdo mínimo de Matemática demonstrativa como condição de aprovação de livros didáticos. A meu ver, a reintrodução de doses equilibradas de demonstrações no ensino da Matemática é algo que precisa ser feito no Brasil sem mais delongas. Creio ser aqui, também, oportuno falar sobre uma ideia que, nos últimos tempos, espalhou-se generalizadamente junto a escolas e professores no Brasil sem ter recebido as devidas críticas e que, por isso mesmo, acabou assumindo imerecido status de verdade sagrada. Refirome à chamada contextualização da Matemática. É evidente que as pessoas, em especial as crianças e adolescentes, gostam de aprender coisas que lhes sejam úteis. O excesso de teorias, sem que fossem mostrados exemplos de suas aplicações práticas, e o uso de uma linguagem hermética (e não raro pedante) nas provas e explicações das questões matemáticas foram, no passado, uma das causas da aversão que muitos alunos desenvolviam pela Matemática. Faz, portanto, sentido a diretriz pedagógica de associar exemplos da vida prática aos vários campos da Matemática elementar ensinada aos jovens, na tentativa de responder à milenar pergunta "para que serve isso?". Entretanto, a meu ver, a chamada contextualização passou dos limites do razoável no Brasil, tornando-se algo obsessivo e, não raro, ridículo. Um professor aflito, certa vez, escreveu-me perguntando se eu poderia indicar-lhe um livro que o ensinasse a contextualizar a Matemática. Outro elogiou meus modestos livros dizendo que, neles, aprendera a contextualizar a Matemática, coisa que até agora não entendi como. Alguns poucos percebem a irrazoabilidade do que está acontecendo, mas não ousam denunciar que o rei está nu por temer ir contra a maioria. A própria RPM chegou a denunciar casos, a meu ver grotescos, de "contextualizações" fora dos limites do bom senso. Os contextualizadores compulsivos merecem ser lembrados de que: ♦ A Matemática, embora tenha incontáveis aplicações práticas, é uma ciência abstrata, ou seja, seus objetos de estudos lógico-dedutivos são imateriais. 5 Revista do Professor de Matemática no 68 ♦ Embora seja possível, em muitos casos, associar (com admirável sucesso) os objetos da Matemática a entes encontráveis no mundo físico, muita coisa importante da Rainha das Ciências não é "contextualizável" e mesmo assim merece ser estudada. A Teoria dos Números e os Números Complexos, dentre tantos outros, são exemplos flagrantes. ♦ A exclusiva apresentação de questões matemáticas "contextualizáveis" restringe sobremaneira o raciocínio dos alunos, dificultando-lhes a aquisição da capacidade de pensar de forma genérica e abstrata, tão importante às pessoas verdadeiramente cultas. (A propósito, conforme noticiado pelo New York Times e comentado pelo O Estado de S. Paulo, há pesquisas indicando que a contextualização em demasia tem inconvenientes, dentre os quais a perda da generalidade.) ♦ O dogma da contextualização acabou por produzir uma filha nociva, a tese de que só se deve ensinar a Matemática útil aos alunos no ambiente em que vivem. Se os gregos tivessem seguido esse pensamento, não nos teriam legado a admirável Matemática que criaram porque, à época, pouquíssimo dela era utilizável. Se os grandes gênios não tivessem feito Matemática por puro amor à arte, a civilização estaria muitos séculos atrasada em relação ao que já atingiu. Se a Coreia e a Finlândia do pós-guerra tivessem adotado essa linha de ensino, não estariam hoje na vanguarda tecnológica mundial. A respeito desse último lembrete, vale transcrever o que disse Alfred North Whitehead, um dos grandes lógico-matemáticos do século XX, quando comparou os feitos dos gregos (enormes) e romanos (nulos) na Matemática: "Os romanos foram um grande povo, mas eles foram amaldiçoados pela esterilidade de ideias que espreita os que só pensam em coisas práticas. Eles não foram suficientemente sonhadores para chegar a novos pontos de vista, que poderiam dar-lhes mais controle sobre as forças da Natureza. Nenhum romano morreu por estar absorto na contemplação de um diagrama geométrico" (em clara alusão a Arquimedes). Ao negligenciar o emprego do raciocínio lógico-dedutivo no ensino da Matemática, ao conviver com inaceitáveis contradições entre a pregação contrária à memorização e a adoção de livros que pouco ensinam os jovens a pensar matematicamente, ao criar um falso dilema entre a compreensão e a memorização, ao abraçar sem senso crítico dogmas como o da contextualização e o dos conteúdos exclusivamente práticos dos currículos, o Brasil está perdendo preciosa oportunidade de melhorar a desconfortável posição em que se encontra em termos comparativos internacionais no ensino da Matemática. Usando uma folha comum A4, construir com ela a lateral de um cilindro, apenas enrolando em qualquer sentido e juntando as bordas com fita adesiva. Temos duas possibilidades: Em qual dos cilindros cabe mais areia? (Resposta no final do artigo Uma aula sobre médias.) Enviado por Sabrina Zancan Peripolli |