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Flávia Soares Os polinômios e as equações algébricas são dois tópicos bastante conhecidos dos alunos do ensino médio. Fala-se do Algoritmo de Briot-Ruffini, que permite efetuar as divisões de um polinômio p(x) por polinômios do tipo x − a; do Teorema de d’Alembert, que afirma que o resto da divisão de um polinômio p(x) por x − a é p(a); do Teorema Fundamental da Álgebra, devido a Gauss, ou ainda do teorema que fornece as possíveis raízes racionais de um polinômio. Esses e outros assuntos referentes à teoria das equações algébricas e aos polinômios já foram por várias vezes abordados em números da RPM (7, 14, 25, 40, 42 e 44). Recentemente, relendo na RPM 14 o texto Raízes racionais de uma equação algébrica de coeficientes inteiros, de Lenimar Nunes de Andrade, um comentário feito na nota que segue o artigo nos chamou a atenção. Afirma-se ali que os livros de “antigamente” ensinavam o “algoritmo de Peletarius”, e finaliza-se perguntando se alguém, nascido após 1950, aprendeu esse algoritmo no 2 grau (atual ensino médio) ou se já ouviu falar dele. Nossa resposta a essa pergunta é não. Nunca ouvimos falar dele, nem de Peletarius (de quem se trata?), nem da existência de um algoritmo que leve o seu nome. Como nos interessamos particularmente por história da Matemática e pela história do ensino de Matemática no Brasil, aquela pergunta imediatamente nos levou à procura do tal algoritmo. Em primeiro lugar, consultamos os livros de História da Matemática de Howard Eves e Carl Boyer, bastante conhecidos e usados em cursos de graduação, e não encontramos referência alguma a Peletarius. Tomamos então um desses livros “antigos” de Matemática, Curso de Matemática, de Jairo Bezerra, bastante usado no Brasil na década de 1950, e lá estava ele: o algoritmo de Peletarius. Quanto a quem foi Peletarius, uma nota de rodapé indica somente: Jacques Péletier, matemático, século XVI. Um outro texto que cita o algoritmo, com menos detalhes e exemplos que o livro de Jairo Bezerra, é o livro escrito pelos professores Euclides Roxo, Haroldo Lisboa da Cunha, do Colégio Pedro II, e Roberto Peixoto e César Dacorso Netto, do Instituto de Educação. O livro, publicado pela Livraria Francisco Alves, é intitulado Matemática − 2 ciclo. A edição a que tivemos acesso é a 6, datada de 1959. O livro é dirigido a estudantes da 3 série do colegial (atual ensino médio) e, segundo informações de capa, é de uso autorizado pelo Ministério da Educação, de acordo com a portaria ministerial n 1045 de 14 de dezembro de 1951, pois seguia os programas oficiais vigentes à época. A fim de encontrar outras informações sobre Peletier e seu algoritmo, fizemos uma busca na Internet, que nos levou a outros dados. Um dos poucos sites1 localizados em língua portuguesa esclarece que Jacques Peletier (1517-1582) foi um dos mais importantes algebristas franceses do período anterior a François Viète (1540-1603). Fora seus trabalhos de Matemática, Peletier ficou conhecido por suas poesias. Dentre as obras que publicou, destaca-se a Arithmeticae practicae (1545), a Arithmétique (1549) e L’algèbre departie en deux livres (Lyon, 1554). Em 1557, publicou o In Euclidis elementa demonstrationum libri sex. Além de outras poucas referências bibliográficas sobre Peletarius, o site nada dizia sobre o seu algoritmo. O século XV terminou sem ter sido dado um grande passo além do já realizado pelos gregos e pelos árabes. Entretanto, já nas primeiras décadas do século XVI, matemáticos italianos conseguiram provar que era possível uma teoria matemática que tivesse escapado às civilizações do mundo antigo e aos árabes (STRUIK, Dirk J. História concisa das Matemáticas. Lisboa: Gradiva, 1989, p. 144). Essa teoria levou ao que se pode considerar como o feito matemático mais importante do século XVI, que foram as descobertas das soluções algébricas para as equações de terceiro e quarto graus. Essa evolução na Álgebra encontrou seu ponto máximo no livro Ars Magna, publicado em 1545, escrito por Girolamo Cardano (1501-1576), médico e professor de Matemática. O mais importante no Ars Magna foi o impulso dado à pesquisa em Álgebra, tanto na generalização, de modo a incluir as equações polinomiais de qualquer ordem, quanto no estudo de um novo tipo de número que surgiu da solução da cúbica: os complexos. Peletarius viveu em uma época em que o contexto econômico e social vigente na Europa − resultado das transformações ocorridas no século XII, início da superação da economia feudal, até o início do século XVI, com o renascimento da vida cultural, econômica e social na Europa − permitiu a retomada no desenvolvimento do conhecimento matemático no mundo ocidental. Voltando ao contexto do ensino de Matemática no Brasil, no século XX, o livro de Jairo Bezerra, no capítulo intitulado Introdução à teoria das equações, trata do algoritmo de Peletarius e o apresenta como uma alternativa ao dispositivo prático de Briot-Ruffini para verificar se um divisor do termo independente de um polinômio é ou não uma raiz do polinômio.
Em primeiro lugar, algumas considerações preliminares. Um número d é uma raiz de um polinômio As colunas (II) e (III) a seguir repetem as mesmas relações, em formatos diferentes. O feito anteriormente é válido para coeficientes reais. De agora em diante vamos supor que os coeficientes de P(x), a0, a1, ..., am, são números inteiros. Uma primeira observação é que, neste caso, toda raiz inteira d de P(x) é necessariamente um divisor de am . De fato, lendo a coluna (II), de cima para baixo, vemos, sucessivamente, que b0, b1, ..., bm-2, bm-1 são números inteiros e, por fim, que −dbm-1= am, isto é, que d divide am. O algoritmo de Peletarius trata exatamente da questão inversa, isto é, dado um divisor d de am, determinar se d é ou não uma raiz de P(x). O algoritmo consiste simplesmente em fazer os cálculos indicados na coluna (III), de baixo para cima. Ao demonstrar nossa primeira observação, vimos, em particular, que, se P(x) tiver uma raiz inteira, então todos os coeficientes b0, b1, ..., bm-2, bm-1 são números inteiros. Logo, se em alguma etapa, encontrarmos um bk que não seja inteiro, podemos concluir que d não é raiz de P(x). Se bm-1, bm-2, ..., b1, b0 forem todos inteiros mas b0≠ a0, ainda concluímos que d não é raiz de P(x). Enfim, se bm-1, bm-2, ..., b1, b0 forem todos inteiros e b0 = a0, então d é uma raiz de P(x).
Seja d um divisor de am . Em primeiro lugar, dispomos os inteiros a0, a1, a2, ... am-2, am-1, am, d e bm-1 = −am/d num quadro de formato semelhante ao utilizado no algoritmo de Briot-Ruffini: A seguir, vamos completando o quadro calculando, sucessivamente, bm-2= (bm-1– am-1)/d, bm-3 = (bm-2– am-2)/d, e assim por diante. Se, no processo, aparecer algum bk que não seja inteiro, então d não é raiz de P(x). Caso contrário, encontramos inteiros bm-1, bm-2, ..., b1, b0, dispostos como abaixo Se b0 ≠ a0, d não é raiz de P(x); caso contrário, d é raiz de P(x). Para exemplificar, tomemos o polinômio P(x) = x6 − 6x5 + 6x4 + 18x3 − 31x2 + 24x – 36, considerado por Jairo Bezerra. Os divisores do termo constante são ± 1, ± 2, ± 3, ± 4, ± 6, ± 9, ± 12, ± 18, ± 36. O quadro abaixo mostra que d = 2 é raiz de P(x). Concluímos também que P(x) = (x5 − 4x4 − 2x3 + 14x2 − 3x + 18)(x – 2). Tomando d = −2, podemos proceder como acima ou trabalhar com o quociente x5 − 4x4 − 2x3 + 14x2 − 3x + 18. O quadro abaixo ilustra o processo Outras raízes inteiras só podem ser ± 1 ou ± 3 (divisores de –3). Os inteiros 1 e – 3 já foram eliminados; dessa forma as outras raízes só podem ser –1 ou 3. Verifica-se que só 3 é (novamente) raiz. Temos: P(x) = (x – 2)(x + 2)(x – 3)2(x2 + 1) É claro que, em qualquer desses casos, poderíamos ter usado o algoritmo de Briot-Ruffini ou, simplesmente, calculado o valor de P(d). Os algoritmos têm a vantagem de organizar os cálculos, agilizando o processo e diminuindo a ocorrência de erros. Além disso, tanto o algoritmo de Briot-Ruffini quanto o de Peletarius dão o quociente da divisão de P(x) por x – d.
1 http://purl.pt/40/1/obras/p-nunes-na-europa/pn_conhecimento_manuscritos_84.html.
___________________________________________________ Exaltação da Matemática Eduardo Queirós Peres
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