Laura L. R. Rifo
IMECC − Unicamp
lramos@ime.unicamp.br

No outro dia, brincava com a minha filha Ana Letícia o seguinte jogo: cada uma tinha um peão avançando por uma linha de um tabuleiro de xadrez. A regra para avançar baseava-se no lançamento de uma (comprovadamente honesta) moeda: se saísse cara, o peão avançava uma casa, se fosse coroa, avançava duas casas. Quem chegasse primeiro ao fim (ou passasse) da linha, ganhava.

O jogo é muito rápido, de modo que depois de algumas revanches, a Ana me disse: “ué, no último lançamento só sai coroa?”.

De fato, comecei a perceber que, no último lançamento, o número de coroas era muito maior que o de caras. No entanto, ao observar todos os lançamentos, o número de caras e o de coroas eram praticamente iguais: a honestidade da moeda era incontestável.

A Ana com seus sete anos foi brincar de outra coisa e eu fiquei pensando no assunto: o lançamento final poderá ser cara somente se o peão estiver na penúltima casa, já que com cara o peão avança apenas uma casa. Enquanto que poderá ser coroa, tanto se o peão estiver na penúltima quanto na antepenúltima casa.

Portanto, a face coroa tem realmente mais chance de aparecer no último lançamento que a face cara!!!

Mais formalmente, denotemos por N o número de lançamentos necessários para chegar à oitava casa (ou passar), por SN−1 a posição do peão antes do lançamento final, e por XN a face nele observada. Se SN−1= 7, então o lançamento seguinte pode ser cara ou coroa, com mesma chance. Por outro lado, SN−1= 6 implica que o lançamento seguinte deva ser coroa, senão este não seria o último.

Assim, pela lei da probabilidade total,

-

A última desigualdade encerra o assunto, mas eu ainda queria conhecer a probabilidade de obter coroa no último lançamento.

O evento [SN−1= 6] ocorre se e somente se forem observadas as seguintes seqüências nos lançamentos:

{(2, 2, 2, 2), (1, 1, 2, 2, 2), (1, 1, 1, 1, 2, 2), (1, 1, 1, 1, 1, 1, 2)}

ou suas possíveis permutações (lembrando que o último lançamento deve ser coroa). Portanto,

-

que é aproximadamente 1/3. Como a penúltima posição só pode ser 6 ou 7, então P(SN−1= 7) é aproximadamente 2/3.

Substituindo esse resultado em (1), temos que a probabilidade de obter coroa no lançamento final é aproximadamente 2/3.

A primeira conclusão disso tudo é que minha filha é algo exagerada em seus comentários. A segunda é que moeda honesta quando chega ao fim da linha...

 

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O problema abordado neste texto é uma versão discreta do conhecido “Paradoxo do tempo esperado”, definido originalmente no contexto de processos de renovação a tempo contínuo. O leitor interessado em conhecêlo melhor encontrará uma exposição em Feller (1971), no capítulo sobre Processos de Poisson.

A novidade nesta apresentação é que inspira a construção física de um mecanismo que permite visualizar este resultado: por exemplo, mediante uma trilha na qual se avança de acordo com o lançamento de um dado equilibrado (cf. Oliveira et al. (2007)), ou a própria corrida de oito passos no tabuleiro de xadrez.

A reação usual das pessoas é de espanto ao constatar o desequilíbrio da distribuição obtida, ou de dúvida a respeito da honestidade da moeda. Mesmo sendo contra-intuitivo, o resultado é natural se levarmos em consideração que há outra variável aleatória envolvida no processo, que é o número de lançamentos necessários para se alcançar o fim da linha, N.

Se bem é verdade que o resultado de qualquer lançamento típico, XN, é uniforme no conjunto {cara, coroa} e independente dos demais lançamentos, o mesmo não ocorre com o lançamento final, XN. A variável aleatória XN não é independente dos lançamentos anteriores, depende da penúltima posição.

Uma outra forma de entender o resultado é que é mais fácil cobrir a última casa com um passo grande (de duas casas) que com um passo pequeno (de uma casa). Assim, a diferença entre a freqüência de caras e coroas fica ainda mais evidente se avançarmos uma casa ao obter cara e três ao obter coroa, por exemplo. No caso extremo de avançarmos uma casa com cara e oito casas com coroa, a chance de obter cara no último lançamento é 1/256, menos que 4 em 1000!!!

O presente trabalho faz parte do Projeto de Desenvolvimento Técnico Construção de material de divulgação em Probabilidade e Estatística, financiado pela Universidade Estadual de Campinas, elaborado pela autora.

 

Referências bibliográficas

FELLER, W. An Introduction to Probability Theory and its Applications, vol.1. John Wiley & Sons: 2 edição, 1971.
OLIVEIRA, J.A., SPAGNOL, R.L., RIFO, L.L.R. The die race paradox. Relatório de Pesquisa 12/07, IMECC−Unicamp, 2007.