|
|
|||
Robinson Nelson dos Santos
Em 15 de junho de 2006, Corpus Christi, São Paulo testemunhou uma das maiores manifestações públicas do país. Cristãos de todas as nuances tomaram a Avenida Paulista, símbolo da cidade, em um evento intitulado Marcha para Jesus. No dia seguinte, os jornais noticiavam que 3 milhões de pessoas tinham passado pela avenida e que pelo menos 1 milhão tinha permanecido no local ao mesmo tempo num dado instante, segundo números da Polícia Militar − PM. No dia 17, outro evento, Parada Gay, tomou a Paulista com um mar de gente. A imprensa ouviu a PM, que estimou o público em 2 milhões. Poucos, contudo, questionaram: como a PM chega a esses números? É possível reunir milhões na Paulista? A Matemática tem algumas respostas.
Contar multidões não é um trabalho fácil. Uma das maiores autoridades no assunto nos EUA, o sociólogo Clark McPhail, da Universidade de Illinois, já disse numa entrevista que, para contar pessoas, nada melhor que catracas. Era, evidentemente, uma brincadeira: afinal, desde o fim dos anos 60, época dos protestos de rua contra a guerra do Vietnã, McPhail se dedica a monitorar manifestações públicas, sendo sua meta estabelecer critérios confiáveis para contar multidões. O fato de um sociólogo se debruçar sobre cálculos é um indicador de que o problema de contar pessoas envolve outras considerações além das puramente matemáticas. No artigo Who counts and how: estimating the size of protests (Quem conta e como: estimando o tamanho de protestos) (2004), McPhail explica que, para os organizadores da manifestação, a cobertura da imprensa é fundamental, o que só acontece quando há um número expressivo de manifestantes. As autoridades, por sua vez, são levadas a calcular o número de pessoas presentes por pura necessidade – é isso que vai ajudar a estimar a quantidade de policiais, de ambulâncias, etc. para garantir a segurança e o conforto do evento. O trabalho de McPhail leva em conta os estudos feitos pelo professor Herb Jacobs, que lecionava jornalismo na Universidade da Califórnia nos anos 60. Acreditando não ser razoável apoiar-se apenas em fontes oficiais para estimar a participação em manifestações de rua, Jacobs empregou, em seu critério de contagem, três noções ou fatores: a área do terreno usado para a manifestação; a porção dessa área que foi efetivamente ocupada pelas pessoas e a variação da densidade de ocupação nos diversos quadrantes dessa área. Nem McPhail nem Jacobs são matemáticos, mas ambos foram capazes de usar matemática elementar para analisar as informações de fontes oficiais. Essa matemática usa conceitos que são apresentados ainda no ensino fundamental, como o cálculo de áreas e a noção de proporcionalidade (incluída aí a conhecida “regra de três”). McPhail e outros pesquisadores adotaram, com pequenas modificações, o método de Jacobs, que se tornou o “padrão de ouro” da contagem de multidões nos EUA.
Citando Jacobs, McPhail conta que uma estimativa que leve em conta o espaço mínimo ocupado por uma pessoa e a área total do terreno já é capaz de fornecer o limite de ocupação da área. No caso da Avenida Paulista, a conta envolve: • o comprimento da avenida, estimado pela numeração, de 2 800 m. • a largura, obtida por medida experimental, de 48 m. • a área total dada por 2 800 m × 48 m = 134 400 m2. Como estimar o espaço vital necessário para que um cidadão participe da manifestação? Podemos usar qualquer elemento que nos permita estabelecer proporções. Eu escolhi usar uma página de jornal tamanho padrão, com 56 cm de altura e 32 cm de largura. Imagine agora que a Paulista seja forrada por folhas de jornal e que cada pessoa ocupe, na rua, a área equivalente a uma página: 0,56m × 0,32 m, ou seja, um pequeno retângulo de área aproximadamente igual a 0,18 m2. Para ter uma idéia clara da coisa, convide uma outra pessoa a ficar na sua frente sobre uma folha dupla de jornal. Ambos estarão praticamente colados um no outro. E quantos pequenos retângulos de 0,18 m2 caberiam no enorme retângulo de 134400 m2 que representa a Avenida Paulista? Basta dividir o número maior pelo menor, 134400/0,18, obtendo aproximadamente 746666. O resultado: se colarmos uma pessoa na outra, todas paradas, ocupando toda a área da avenida, não chegaríamos a 750 mil pessoas, não alcançando o 1 milhão noticiado. Observamos que em uma marcha há que se considerar o tempo, logo, a velocidade da marcha. Por exemplo, se 40 minutos for o tempo gasto para cada participante da marcha percorrer os 2 800 m da avenida, então, ao término de 2h, o limite máximo de ocupação teria que ser multiplicado por 3, isto é, teríamos 3 × 746666 = 2239998, ou seja, mais de 2 milhões de pessoas. Esse tempo de 40 minutos está coerente com a estimativa dada pela PM: 1 milhão de pessoas paradas e 3 milhões no total.
Esse breve exercício de aproximação já serviu para estabelecer o limite máximo de ocupação da área e desmentir os valores que foram divulgados. Mas e quando esse limite não é atingido? A saída é mapear a área efetivamente ocupada, dividindo-a em quadrantes e atribuindo percentuais de ocupação de acordo com a densidade de pessoas observada. A técnica desenvolvida e utilizada pelo sociólogo Clark McPhail usa fotos aéreas e a opinião de observadores infiltrados na multidão para estimar quantas pessoas ocupavam de fato cada quadrante. McPhail lembra que mesmo assim a margem de erro é alta (em torno de 20%). As fotos aéreas são tiradas de um prédio alto ou de um helicóptero e registram a evolução da manifestação em intervalos fixados de tempo. De posse das fotos e dos dados da área do terreno, o pesquisador poderá traçar uma grade sobre a imagem, dividindo-a em quadrantes de áreas iguais cujo valor é conhecido. Em seguida é preciso analisar cada quadrante, classificando-o de acordo com o grau de ocupação: percentual que indica quanto daquele quadrante foi ocupado pelas pessoas. Como sugestão, criamos a seguinte escala de ocupação: 100%; 90%; 75%; 50%; 25% e 10%. Classificar cada quadrante de acordo com a escala acima é, naturalmente, uma tarefa subjetiva e a forma de atenuar essa subjetividade é fazer essa classificação com um grupo de pessoas – preferencialmente, com os observadores que ajudaram a estabelecer a densidade de ocupação. O limite máximo de ocupação do quadrante, que denotaremos por L, será o resultado da divisão do limite máximo de ocupação da área total pelo número de quadrantes. Novamente, a Matemática envolvida é a que “qualquer estudante de 8 n de quadrantes 100% cheios × L = A n de quadrantes 90% cheios × L × 0,9 = B n de quadrantes 75% cheios × L × 0,75 = C n de quadrantes 50% cheios × L × 0,5 = D n de quadrantes 25% cheios × L × 0,25 = E n de quadrantes 10% cheios × L × 0,1 = F público estimado = A + B + C + D + E + F. Quem domina as ferramentas disponíveis na Internet pode ir além. Usando as fotos aéreas de São Paulo disponíveis no serviço Google Maps, por exemplo, dá para estimar e comparar áreas de regiões cuja capacidade de ocupação é desconhecida, com áreas em que esse número é conhecido. Como lembra o sociólogo americano, o cálculo é aproximado e tem uma margem de erro alta, mesmo quando se usam técnicas apuradas.
Referências bibliográficas BASSETTE, Fernanda; BRITO, Luisa. Marcha para Jesus reúne multidão verde-eamarela, Folha de S. Paulo, 16/06/2006. |