Ricardo Avelar Sotomaior Karam

O objetivo deste artigo é mostrar aplicações simples da função afim na modelagem de fenômenos físicos. Com os exemplos a seguir, alunos que estão tendo o primeiro contato com as funções poderão interpretar concretamente o significado dos coeficientes da expressão y = ax + b e perceber a integração entre as disciplinas de Matemática e Física.
 

   Exemplo 1: Relação entre posição e instante de tempo

A Cinemática é a parte da Física que estuda a descrição matemática dos movimentos. Por não envolver leis físicas, a ênfase nesse conteúdo tem sido alvo de críticas por parte dos pesquisadores em ensino de Física. Entretanto, trata-se de um conteúdo interessante para contextualizar o tema funções em Matemática.

Imaginemos uma situação: um carro encontra-se inicialmente na posição 3 m de uma trajetória retilínea e se desloca com velocidade constante de 4m/s.

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O que significa dizer que a velocidade do carro é sempre 4 m/s? Ora, interpretando o significado da unidade, sabemos que o móvel percorre uma distância de 4 m a cada segundo. Assim, concluímos que, no instante 1 s, sua posição será 7m (3 + 4), no 2s será 11m (7 + 4) e assim sucessivamente. Podemos representar a relação entre a posição, s, do carro e o instante de tempo, t, de diversas maneiras:

tabela -

 

função s = 4t + 3 -

Trata-se, naturalmente, de uma função afim: f(x) = ax + b. Evidenciase assim, através de um exemplo concreto, que o termo independente, b, está associado à posição inicial do móvel, ou seja, é o valor de s para t = 0; que o coeficiente a representa a taxa de variação da posição, em relação ao tempo, isto é, a velocidade do móvel (4 m/s).

Este exemplo pode ser mais trabalhado. Variando os valores da velocidade e/ou posição inicial, utilizando inclusive valores negativos, podese interpretar a influência dos valores de a e b. O domínio e a imagem da função também podem ser debatidos; tem sentido um instante de tempo negativo? Um outro movimento estudado na Cinemática é o chamado Retilíneo Uniformemente Variado (MRUV), no qual a aceleração é constante. Nesse caso, uma relação entre velocidade e tempo pode ser feita de maneira semelhante. A velocidade inicial do móvel representa o termo independente, enquanto a aceleração representa o coeficiente a. Montagens experimentais semelhantes ao chamado carrinho de Fletcher podem ser utilizadas como material concreto. Outras abordagens ficam por conta da imaginação do professor.

 

   Exemplo 2: Relação entre deformação e força elástica

Um dos efeitos da aplicação de forças é a deformação. Em Estática, parte da Física que estuda as condições de equilíbrio dos corpos, a análise da relação força × deformação é fundamental para o dimensionamento de estruturas e para a escolha dos materiais mais adequados para os diversos tipos de esforços como tração, compressão, flexão ou torção. Em 1668, o físico inglês Robert Hooke (1635-1703) descobriu experimentalmente que, dentro de certos limites, a deformação de um corpo é diretamente proporcional à força exercida sobre ele.

-Para entendermos melhor essa relação, que ficou conhecida como lei de Hooke, imaginemos a seguinte situação: uma mola de peso desprezível, que possui 10 cm de comprimento quando relaxada, é presa verticalmente por uma de suas extremidades como ilustra a figura. Um bloco de 50 g massa é preso na mola, fazendo com que seu comprimento aumente para 11cm, ou seja, deformando-a de 1cm. Considerando válida a lei de Hooke, qual é a deformação na mola, no caso de um bloco de 100 g de massa? Como a força que tenciona a mola dobrou, sua deformação também será duas vezes maior. Dessa forma, podemos prever que a deformação, x, da mola será de 2cm para um bloco de 100g; 3cm para um de 150 g e assim sucessivamente.

A relação entre o peso do bloco suspenso e a deformação provocada por ele é denominada constante elástica da mola, K. No exemplo, a constante K vale 50 gf/cm1 o que significa que são necessários 50 gf de peso para cada centímetro de deformação.

Representemos a relação entre força, F, e deformação, x, de modo análogo ao do primeiro exemplo.

tabela -

gráfico da função F = 50x -

Percebe-se que nesse caso a função não possui termo independente (função linear), uma vez que se a mola não estiver deformada (x = 0), ela não estará sujeita a nenhuma força (F = 0). O coeficiente a (taxa de variação da função) é 50, indicando que são necessários 50 gf de força para cada centímetro de deformação. Esta atividade também permite uma abordagem mais ampla. A variação da constante elástica da mola evidencia a influência do valor de a para a função e permite relacioná-lo com a inclinação da reta no gráfico. Neste exemplo, utilizamos um esforço de tração; valores negativos de x podem ser interpretados como se a mola estivesse sujeita a um esforço de compressão.

Uma outra atividade interessante pode ser desenvolvida: utilizando um copo de plástico, um elástico e uma escala graduada, os alunos podem construir uma balança (dinamômetro) rudimentar. Para isso, basta determinar a constante, K, do elástico colocando um peso conhecido no copo e medindo a deformação na escala (K = F/x). Assim, é possível determinar o peso de outros corpos relacionando com a deformação medida na escala (F = Kx). Vale ressaltar que a lei de Hooke é válida dentro de certos limites e que, a partir daí, o dinamômetro não teria mais utilidade.

 

   Considerações finais

O coeficiente a na função y = ax + b representa a variação de y quando x varia de uma unidade, porém isso nem sempre é percebido pelo estudante. A utilização da Física, como vimos, pode esclarecer esse ponto: em s = 4t + 3, a velocidade do móvel de 4m/s indica a variação de s quando t varia de uma unidade, da mesma forma em F = 50x, a constante elástica de 50 gf/cm representa a variação de F quando x varia de uma unidade. O termo independente representa o valor de y quando x = 0 e foi representado nos exemplos como sendo a posição inicial do móvel, a deformação da mola quando relaxada ou a temperatura inicial do corpo.

Os modelos matemáticos são essenciais para a descrição de fenômenos físicos. A Matemática fornece um conjunto de estruturas dedutivas, por meio das quais se expressam as leis empíricas ou os princípios teóricos da Física. Entretanto, quando os modelos são confrontados com a experiência, como nos exemplos práticos sugeridos, fatores como a imprecisão de instrumentos ou a própria incerteza, inerente a todo processo de medida, evidenciam a incapacidade desses modelos em descrever a realidade. Para Bunge [BUNGE, M. Teoria e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1974.], todo modelo é parcial, já que a observação, a intuição e a razão, que são componentes do trabalho científico, não permitem, por si mesmas, o conhecimento do real. Dessa forma, atividades práticas como as sugeridas propiciam ao professor momentos de discussão sobre as vantagens e limitações do uso de modelos matemáticos para a descrição da realidade.

1 Massa e peso são grandezas distintas na Física.1 gf, por convenção, é o peso de um corpo de 1g de massa localizado no nível do mar e a 45º de latitude. Considerando a aceleração da gravidade igual a 10 m/s2, a constante também pode ser de 0,5 N/cm.