Gilberto G. Garbi

Todos os dias, em incontáveis salas de aula espalhadas por esse mundo, professores de Matemática ouvem essa eterna pergunta, feita por alunos entediados com provas de teoremas e com questões que consideram incompreensíveis, maçantes ou simplesmente inúteis.

Não se trata de algo novo. Conta-se que Euclides, cerca de 300 a.C., enfrentou a célebre questão quando um aluno perguntou-lhe “afinal, o que é que se ganha ao aprender a Geometria?”. Em resposta, Euclides teria pedido a seu escravo que desse ao estudante uma moeda de ouro, “porque ele precisa ganhar com aquilo que aprende”. Infelizmente, a resposta do gênio grego não se aplica nos dias de hoje. Em primeiro lugar porque não haveria moedas suficientes e, principalmente, porque nossos jovens querem, sim, ganhar com aquilo que aprendem e têm o direito de querê-lo.

Muitos professores de Matemática sentem-se desconfortáveis ao tentar responder a essa questão e, ao permitir que os alunos o percebam, acabam reforçando nos jovens a idéia de que aquilo não deve mesmo servir para muita coisa útil. É uma pena porque, em realidade, o difícil hoje é encontrar áreas de atividade humana onde a Matemática ou, pelo menos, seu raciocínio lógico-dedutivo não tenha, em maior ou menor grau, alguma participação efetiva.

Comecemos por observar o mundo em que vivemos hoje. Ele é altamente tecnológico:
. comunicações instantâneas, em voz e imagem, estão disponíveis em qualquer ponto do planeta;
. aviões sofisticados, rápidos e confiáveis, transportam anualmente centenas de milhões de pessoas entre os mais diversos países;
. naves espaciais vasculham o Sistema Solar e, mesmo chegando a seus limites, ainda continuam a nos transmitir importantes informações;
. computadores ultra-rápidos realizam bilhões de operações por segundo e fazem em poucos instantes cálculos que, ainda há poucas décadas, demandariam anos de trabalho de equipes inteiras de matemáticos;
. gigantescas obras de engenharia como pontes, arranha-céus, estruturas, hidroelétricas e túneis espalham-se pelo mundo promovendo a geração de riquezas e trazendo conforto às pessoas;
. átomos e partículas subatômicas, invisíveis a nossos olhos, são manipulados à vontade e colocados a serviço do homem;
. códigos genéticos de plantas e animais são desvendados e um novo tipo de engenharia já trabalha com eles, dentro de objetivos prédeterminados;
. centenas de milhares de componentes eletrônicos são compactados em chips de silício de dimensões milimétricas e passam a exercer funções vitais em máquinas eletroeletrônicas de todas as naturezas;
. equipamentos de eletrônica médica fornecem desde informações prosaicas como o sexo dos nascituros até meios pelos quais podem ser diagnosticados precocemente e sanados diversos problemas de saúde.

Os jovens que perguntam para que serve isso e muitos dos professores que os ensinam já nasceram desfrutando as maravilhas da tecnologia e desconhecem como era, por exemplo, viver nos anos 1950, para citar uma década não muito distante da nossa. Tendem, então, a não se surpreender com as facilidades à disposição da sociedade moderna e raramente param por alguns instantes para se perguntar de que maneira esse mundo tecnológico foi construído.

A resposta é muito simples: ele foi construído porque o homem, por meio da Matemática, acumulou ao longo dos séculos vastos conhecimentos sobre o mundo físico e, com isso, conseguiu, parcialmente, dominá-lo e colocá-lo a seu serviço. Tecnologia, em poucas palavras, é o uso das propriedades do mundo físico dentro de objetivos estabelecidos pelo homem. Para nossa suprema felicidade, tais propriedades são desvendáveis e tratáveis por meio da Matemática, pois, como já haviam percebido os pitagóricos no século VI a.C. e foi explicitamente enunciado por Galileu Galilei no século XVII, o livro do Universo está escrito na linguagem da Matemática.

Explicar isso, de maneira tão genérica, aos adolescentes pode não ser fácil porque, em geral, eles ainda não têm maturidade suficiente para compreendê-lo. Alguns exemplos práticos, entretanto, podem ajudar.

As ondas eletromagnéticas nos envolvem das mais diversas formas: rádio, televisão, telefonia (em especial, a telefonia celular), transmissão de dados, radares, etc., constituem casos típicos do uso hoje indispensável daquelas ondas. Pois bem: até 1865 não se sabia que elas existiam na Natureza, embora estivéssemos familiarizados com a luz, uma de suas formas. Naquele ano, ao resolver um sistema de quatro equações diferenciais que exprimem aspectos isolados da eletricidade e do magnetismo, o matemático escocês James Clerk Maxwell (1831-1879) descobriu que a energia eletromagnética deve propagar-se no espaço livre por meio de ondas, à velocidade da luz. Somente 22 anos mais tarde o alemão Heinrich Rudolf Hertz conseguiu produzi-las em laboratório, confirmando as previsões matemáticas de Maxwell.

Descobrir na ponta do lápis a existência das ondas eletromagnéticas foi um feito espetacular da Matemática. Entretanto, um feito ainda maior foi o desenvolvimento das tecnologias que permitem tirar delas todos os benefícios de que hoje desfrutamos. Literalmente, tudo o que se faz atualmente com as ondas eletromagnéticas foi desenvolvido teoricamente por meio da Matemática antes que os engenheiros construíssem produtos comercializáveis. Sem exagero, por exemplo, podemos dizer que um telefone celular é um pacote de Matemática materializada que levamos em nosso bolso...

Vejamos os computadores. Um de seus mais antigos precursores foi uma sofisticada máquina de calcular projetada e construída pelo matemático francês Blaise Pascal (1623-1662). Algumas décadas depois, o matemático alemão Leibniz (1646-1719) criou outra, também bastante avançada. Leibniz, aliás, foi o inventor do sistema binário de numeração, indispensável aos modernos computadores, embora não tenha imaginado que essa sua criação aritmética viesse no futuro a ter a importância que tem hoje. Passos cruciais na construção de computadores foram dados pelo matemático inglês Charles Babbage (1792-1871), até que, em meados do século XX, os trabalhos de dois matemáticos modernos – o inglês Alan Turing (1912-1954) e o húngaroamericano John von Neumann (1903-1957) – levaram à construção dos primeiros computadores eletrônicos. Se há uma área da moderna tecnologia onde todo o esforço criativo foi liderado, desde seu início, por matemáticos, essa área é a Informática.

Vejamos a energia elétrica em corrente alternada que abastece nossas residências e as empresas pelo mundo afora. Foi no final dos anos 1800 que ela passou a ter condições de sair dos laboratórios para ser oferecida ao público, mas assim que as primeiras redes começaram a ser estendidas, nos EUA, os engenheiros depararam-se com problemas técnicos que não eram capazes de elucidar. Thomas Alva Edison, que inventara a lâmpada elétrica em 1879 e criara sua empresa de eletricidade, ficou tão perplexo diante daqueles problemas que chegou a pensar em abandonar as correntes alternadas e apenas trabalhar com correntes contínuas, mas isso também implicava enormes dificuldades tecnológicas à época. As coisas encontravam-se nesse impasse quando, em 1889, um pobre imigrante alemão chamado Karl Steinmetz desembarcou no porto de Nova York e apresentouse aos oficiais do departamento de imigração. Steinmetz padecia de graves deficiências físicas, sendo corcunda e anão, e aqueles oficiais informaramno de que, pela legislação americana, ele não poderia ser aceito. Steinmetz argumentou que sua profissão era intelectual e que suas deficiências não o impediam de exercê-la perfeitamente: ele era matemático. Contrariando as regras escritas, Steinmetz foi aceito e, pouco depois, conseguiu um emprego na General Electric. Ali, ficou sabendo das dificuldades dos engenheiros com os cálculos envolvendo as correntes alternadas e decidiu ajudá-los. Não tardou muito e ele constatou que os problemas que desafiavam os engenheiros poderiam ser facilmente resolvidos por meio dos chamados números complexos, mais especificamente pela utilização da fórmula de

Euler eiθ= cos θ+ isen θ , descoberta por ele no século XVIII e que, aparentemente, não tinha nenhuma utilidade prática.

A história de Steinmetz é uma das mais belas da Matemática Aplicada e, literalmente, todas as pessoas que utilizam energia elétrica no mundo devem muito àquele singular matemático alemão.

Vejamos a Química. A participação em nossa vida diária de produtos criados pelo homem por meio da Química moderna é muito grande. O desenvolvimento dessa ciência nos últimos dois séculos foi uma fantástica epopéia, o mais sofisticado romance de mistério de todos os tempos, em que somente nossa mente lógico-dedutiva pôde ser usada para desvendar os segredos do mundo atômico e molecular, já que nossos sentidos são incapazes de nele penetrar. Como sabemos, por exemplo, que em um grama de água há 23.000.000.000.000.000.000.000 moléculas, ou que o diâmetro de um átomo de hidrogênio mede 0,0000000106 cm?

Certamente ninguém contou moléculas ou mediu átomos: tudo derivou de cálculos matemáticos a partir de dados experimentais. Aqui, também, a Matemática deixou sua marca.

A Teoria das Probabilidades e a Estatística encontram ampla e indispensável aplicação em pesquisas sobre temas de uso imediato, como a eficácia de novos remédios, a produtividade de sementes, os índices de qualidade em linhas de produção e uma verdadeira infinidade de outros campos. Quando, por exemplo, a imprensa noticia resultados de censos ou de pesquisas de intenção de votos, estendendo para todo o País aquilo que foi observado em apenas alguns milhares de indivíduos consultados, seguramente as amostras foram matematicamente planejadas de modo que seja possível obter resultados confiáveis, dentro de certa margem de erro, com o mínimo de trabalho de campo.

Não é apenas por sua capacidade de resolver importantes problemas por meio de teorias e equações que a Matemática tornou-se vital ao mundo moderno. Sua própria essência, o raciocínio lógico dedutivo ao qual os matemáticos se habituam desde o início, tem extrema utilidade em áreas como a Economia, a Administração de Empresas, a liderança de grupos e a própria tomada de decisões de caráter pessoal. Não raro ouvem-se pessoas afirmar que, por exemplo, escolheram o Direito como carreira devido a sua inaptidão para a Matemática. Nada mais equivocado do que isso: os grandes juristas e advogados costumam empregar com mestria o raciocínio lógicodedutivo da Matemática ao defender suas teses. Os célebres matemáticos Viète, Descartes e Fermat, por exemplo, eram formados em leis e ninguém menos do que Abraham Lincoln, visto por muitos como o maior dos presidentes americanos, disse que, ao começar a trabalhar como advogado, percebeu que precisaria desenvolver sua capacidade de provar teses e que, para tanto, foi estudar Euclides... Seria realmente uma lástima se métodos de ensino negligenciassem as demonstrações de teoremas e perdessem a inestimável oportunidade de fortalecer o raciocínio lógico-dedutivo dos jovens.

Como se vê, a Matemática é utilíssima na vida prática e os professores têm muitos argumentos para convencer seus alunos sobre isso. Mas ela é, também, um campo que pode ser estudado apenas pelos prazeres que proporciona ao espírito, independentemente da inquestionável utilidade. Em uma entrevista publicada pela RPM 28, em 1995, o professor Elon Lages Lima diz, com sua habitual propriedade, que o bom professor é aquele que vibra com a matéria que ensina, conhece muito bem o assunto e tem um desejo autêntico de transmitir esse conhecimento... Eu acrescentaria que são esses os professores que conseguem desenvolver em seus alunos o gosto pelo estudo da Matemática pelo que ela é em si mesma e não apenas por sua utilidade. Afinal, após ouvir uma composição de Mozart, admirar um quadro de Da Vinci ou ler um soneto de Camões, ninguém pergunta: “Para que serve isso?”

 

 

Gilberto Garbi é engenheiro formado pelo ITA. Foi um executivo de telecomunicações nos anos 70 e 80 e presidente da NEC do Brasil nos anos 90. É autor dos livros O Romance das Equações Algébricas e A Rainha das Ciências, resenhados nas RPMs 35 e 62.