Eduardo Vagner
CE da RPM

Morgado foi meu professor. Com 18 anos, cursando o primeiro semestre de Engenharia na UFRJ, meu professor de Cálculo chamava-se Augusto Cesar Morgado. Era muito jovem, com talvez cinco anos a mais que eu, transbordava conhecimento e segurança no que ensinava. Procurei uma aproximação, fui bem recebido e assim nos conhecemos. Poucos anos depois, tornei-me professor, guardei o diploma de engenheiro na gaveta e tive a incrível sorte de obter emprego em uma escola onde Morgado trabalhava. Foi o início de um relacionamento que durou a vida inteira.

A didática de Morgado era inteiramente particular. Não só dava certo, mas era extremamente eficiente, como podem atestar os milhares de alunos que tiveram a sorte de tê-lo como professor. Não importava a matéria nem o nível; ele era sempre brilhante, com raciocínio claro, rápido e explicações objetivas. Aprendi muito com ele, não só Matemática, mas diversas coisas que me foram importantíssimas nesse início da vida e da carreira. Morgado gostava de frases curtas e de efeito, e uma das primeiras que ouvi norteou minha vida futura: “Você deve saber muitíssimo mais do que vai ensinar”. Não é preciso explicar a profundidade do que está contido nessa pequena frase. Na sala de aula, Morgado era também diferente. Ele não gostava de apresentar a coisa pronta e devidamente mastigada. Pelo contrário, no meio de uma brilhante explicação ele gostava de fazer uma pausa, o que permitia aos alunos interessados prosseguir mentalmente e, eventualmente, chegar à conclusão que desejava. Uma aula de Morgado não podia ter espectadores, tinha que ter participantes. Alunos não podiam ser passivos, deveriam ser ativos e a aula se baseava justamente nessa iteratividade. Essa era a sua didática que cativou os alunos e orientou professores por décadas.

Finalmente, conto um episódio muito marcante. Fazia meu mestrado na UFRJ e, no curso de Análise Real, o professor era José Paulo Carneiro, que adotava o livro do Rudin. Eu tinha por hábito resolver todos os exercícios do livro, mas, no capítulo 3, havia um que não consegui fazer. E o que fiz?

Perguntei ao Morgado, é claro. Ele leu o enunciado e, após cerca de 30 segundos, deu-se o incrível diálogo que reproduzo com todas as palavras certas:

Morgado: Você conhece o teorema de Pringsheim?

Eu: Nunca ouvi falar.

Morgado: Então vá estudar o teorema de Pringsheim.

Ele deu as costas e foi embora. Fiquei atônito e, talvez, com um pouco de raiva. Ele sabia fazer o problema, mas não me deu a solução. No dia seguinte, estava cedo na biblioteca da UFRJ vasculhando livros e livros até que encontrei o obscuro teorema. Li, entendi, percebi que o problema que tinha era uma conseqüência quase imediata do teorema em questão, e aprendi muito nesse dia. Tempos depois, refletindo sobre coisas passadas, percebi o quanto Morgado tinha me ensinado naquele dia. Ele poderia ter resolvido o meu problema, mas não o fez. Me deu só uma pista e deixou todo o resto comigo. E eu consegui aprender, não só o teorema, mas sobretudo aprendi a consultar os livros, essas coisas maravilhosas que contêm toda a sabedoria registrada em simples folhas de papel. Assim era Morgado. Que Deus o tenha e que possa agora estar ouvindo a música de que mais gostava: o concerto no 2 de Brahms.

Recebemos também de André Gaglianone de A. Kasprzykowski, RJ, o texto a seguir.

Eu conheci o Prof. Morgado no Colégio Pedro II quando me deu um autógrafo no livro Geometria II. Mais tarde fui seu aluno em um curso prévestibular e trabalhamos juntos durante um ano. Aprendi com o Professor Morgado a comer carne de carneiro, Cálculo em alguns telefonemas e muita Combinatória. Um dia, perguntei a ele qual era o seu problema preferido de Combinatória e ele respondeu:

Nove cientistas trabalham num projeto sigiloso. Por questões de segurança, os planos são guardados em um cofre protegido por muitos cadeados de modo que só é possível abri-los todos se houver pelo menos 5 cientistas presentes.

a) Qual o número mínimo possível de cadeados?

b) Na situação do item a), quantas chaves cada cientista deve

ter?

Belo problema! Os alunos vibram com a solução!

Solução

Chegam quatro cientistas A, B, C e D. Com as chaves que possuem, abrem alguns cadeados, mas não todos. Existe pelo menos um cadeado que eles não conseguem abrir. Na situação do número mínimo de cadeados, existe exatamente um cadeado que eles não conseguem abrir. Batize tal cadeado de ABCD. Portanto, ABCD é o cadeado cuja chave não está em poder de A, nem de B, nem de C e nem de D. Qualquer outro cientista tem a chave desse cadeado, pois esse cientista e A, B, C e D formam um grupo de cinco cientistas e, portanto, nesse grupo alguém possui a chave. Como esse alguém não é nem A, nem B, nem C e nem D, deve ser o outro. Analogamente batize os demais cadeados. Verifique agora que a correspondência entre cadeados e seus nomes é biunívoca, isto é, cadeados diferentes têm nomes diferentes (isso porque estamos na situação do número mínimo de cadeados) e cadeados de nomes diferentes são diferentes (se X está no nome de um cadeado e não está no nome do outro, X tem a chave desse e não tem a chave daquele). Então:

a) O número mínimo de cadeados é igual ao número mínimo de nomes de cadeados, C(9,4) = 126.

b) Cada cientista X possui as chaves dos cadeados que não possuem X no nome, C(8,4) = 70.

O professor Augusto César Morgado, membro do Comitê Editorial da RPM, faleceu em outubro de 2006.