Grothendieck

Adaptado da tradução feita por Elza F. Gomide
de texto do Notices of the AMS, vol. 51, nº9, 2004

Alexandre Grothendieck é um matemático de imensa sensibilidade para as coisas da Matemática, de profunda percepção das linhas intrincadas e elegantes da sua arquitetura. Bastam uns poucos pontos de sua biografia − ele foi membro fundador do Institut de Hautes Études Scientifiques (IHES) e recebeu a Medalha Fields em 1966 − para lhe garantir lugar seguro no panteão da Matemática do século vinte. Escreveu em seu longo artigo, Récoltes et Sémailles (Colher e Semear): “O que faz a qualidade da inventividade e imaginação de um pesquisador é a qualidade de sua atenção ao ouvir as vozes das coisas”. Hoje a voz do próprio Grothendieck, representada em sua obra escrita, nos chega como que através de um vazio, pois, agora com 76 anos, há mais de uma década ele vive recluso em uma aldeia remota no sul da França.

Grothendieck mudou a paisagem da Matemática com uma visão “cosmicamente geral”, nas palavras de Hyman Bass, da -Universidade de Michigan. Essa visão foi tão completamente absorvida na Matemática que hoje é difícil aos recém-chegados a ela imaginar que não foi sempre como é. Ele tinha uma capacidade extraordinária de abstração que lhe permitia ver problemas em contexto muitíssimo geral.

No aspecto pessoal, houve muito caos e trauma nos primeiros anos da vida de Grothendieck, durante a Segunda Guerra, e sua escolaridade não foi das melhores. Como ele superou as deficiências e se forjou como um dos maiores matemáticos do mundo é uma história altamente dramática − assim como sua decisão, em 1970, de deixar abruptamente o meio matemático em que se encontravam suas maiores realizações e que fora tão profundamente influenciado por sua extraordinária personalidade.

Alexandre Grothendieck nasceu em Berlim, a 28 de março de 1928, em uma família formada por sua mãe Hanna, seu pai Tamaroff e a filha de Hanna de seu casamento anterior, Maidi, quatro anos mais velha que Alexandre. Como a mãe de Grothendieck era judia, seus pais fugiram de Berlim para Paris quando os nazistas tomaram o poder na Alemanha, deixando o filho, por cinco anos, aos cuidados de uma família adotiva em Blankenesee, perto de Hamburgo.

Em 1939, Grothendieck, então com 11 anos, foi posto num trem de Hamburgo a Paris, onde se reuniu com seus pais, passando junto deles um período breve, até que a guerra começou. Em 1940, Hanna e seu filho foram postos num campo de concentração em Rieucros, perto de Mende. Era um dos melhores campos da França, e Grothendieck teve permissão de freqüentar o lycée (escola secundária) em Mende; após dois anos foi parar na cidade de Cambon sur Ligon, cidade de férias nas montanhas, num lar para crianças sustentado por uma organização suíça. No Collège Cévenol, instituído em Chambon para instrução dos jovens, e obteve o bacharelado.

Grothendieck narra em Récoltes et Sémailles algumas recordações de escola em Mende e Chambon, ficando claro que, apesar das dificuldades, ele tinha uma forte bússola interior desde muito cedo. Nas aulas de Matemática não dependia de professores para distinguir o que era profundo do que era inconseqüente, o que era certo do que era errado. Achava os problemas de Matemática, dos livros utilizados, repetitivos e apresentados isolados de tudo que lhes pudesse dar sentido. “Esses eram os problemas dos livros, não os meus problemas”, ele escreveu. Entretanto quando encontrava um problema que o atraía, perdia-se completamente nele, sem notar a passagem do tempo.

Quando a Segunda Guerra Mundial terminou, em maio de 1945, Grothendieck tinha 17 anos. Ele e sua mãe foram viver perto de Montpellier, onde se matriculou na Universidade. Os dois sobreviveram com sua bolsa de estudos e trabalho sasonal na colheita de uvas; sua mãe trabalhava também na limpeza de casas. Com o tempo ele freqüentava cada vez menos os cursos da Universidade, pois achava que os professores na maioria das vezes repetiam o que estava nos livros: na época Montpellier “estava entre as mais atrasadas das universidades francesas no ensino de Matemática”, escreveu Jean Dieudonné.

Nesse ambiente pouco inspirador, Grothendieck dedicou a maior parte de seu tempo preenchendo lacunas que encontrou em seus textos de escola secundária sobre como fornecer uma definição satisfatória de comprimento, área e volume. Por conta própria ele essencialmente redescobriu a teoria da medida e a noção de integral de Lebesgue.

Em 1948, tendo terminado sua License es Sciences em Montpellier, Grothendieck foi a Paris, o centro para a Matemática na França.

Em Récoltes et Sémailles ele diz dessa época: “Sem saber, eu aprendi na solidão o que é essencial à profissão de matemático − algo que nenhum professor pode ensinar: ter consciência ‘dentro de mim’ que eu era um matemático; alguém que faz Matemática no mais completo sentido da palavra − como alguém que ‘faz’ amor”.

Após ter terminado o doutorado, eram sombrias as perspectivas de emprego permanente para Grothendieck, uma vez que não era cidadão francês e que para obter cidadania francesa teria que prestar serviço militar, o que Grothendieck se recusava a fazer. Desde 1950 ele tinha um salário do Centre National de la Recherche Scientifique, mas era mais como uma bolsa que um emprego permanente. Em algum momento ele até pensou em aprender carpintaria como modo de ganhar dinheiro.

 

     Grothendieck no Brasil

O matemático francês Laurent Shwarz esteve no Brasil em 1952 e aqui falou sobre seu brilhante estudante que estava -com dificuldade para achar um emprego na França. Como resultado, Grothendieck recebeu uma oferta como professor visitante na Universidade de São Paulo (USP), função que ocupou em 1953 e 1954. Segundo José Barros Neto, que era estudante na USP na ocasião e é agora professor na Rutgers University, Grothendieck fez um arranjo especial para poder voltar a Paris e assistir a seminários de pesquisa durante alguns períodos de sua estada na USP. Na época, a segunda língua para a comunidade matemática no Brasil era o francês, de modo que era fácil para Grothendieck ensinar e conversar com colegas. Ao ir a São Paulo, Grothendieck continuava uma tradição de troca científica entre o Brasil e a França: além de Schwarz, Weil, Dieudonné, Delsarte tinham estado no Brasil nas décadas de 19401960. As ligações matemáticas entre o Brasil e a França continuam até hoje. O Instituto de Matemática Pura e Aplicada − IMPA, no Rio de Janeiro, tem atualmente um acordo de cooperação Brasil-França que traz a essa instituição muitos matemáticos franceses.

Em Récoltes et Sémailles, Grothendieck fala de 1954 como “ano penoso”. Durante o ano inteiro ele tentou sem sucesso avançar no problema de aproximação em espaços vetoriais topológicos, que só foi resolvido vinte anos depois por métodos diferentes dos que Grothendieck estava tentando usar. Foi “a única vez na minha vida em que fazer Matemática se tornou um fardo para mim!”, ele escreveu. A frustração ensinou-lhe uma lição: sempre ter vários “ferros matemáticos no fogo” de modo que, se um problema se mostra demasiado teimoso, há outra coisa sobre a qual trabalhar.

Chaim Honig, hoje professor aposentado do Instituto de Matemática e Estatística da USP, era assistente quando Grothendieck lá esteve e ficaram bons amigos. Honig diz que Grothendieck levava uma vida um tanto espartana e solitária, vivendo de leite e bananas e mergulhado totalmente em Matemática. Um dia Honig perguntou a Grothendieck por que ele escolhera a Matemática. Grothendieck lhe disse que tinha duas paixões especiais: Matemática e piano, mas escolheu a Matemática porque lhe pareceu que seria mais fácil ganhar a vida assim. Seu dom para a Matemática era tão abundantemente claro, disse Honig, que “eu fiquei assombrado que em algum momento ele tivesse hesitado entre Matemática e Música.”

Grothendieck ministrou na Universidade de São Paulo − USP um curso sobre espaços vetoriais topológicos e escreveu notas que foram publicadas pela universidade. O professor Barros Neto lembra que ele era cientificamente “muito ambicioso”, “você podia sentir seu impulso − ele tinha que fazer algo fundamental, importante, básico.”

A busca da verdade de Grothendieck o levou a raízes de idéias matemáticas e ao mais longe da percepção psicológica humana. Teve uma longa jornada. “Em seu retiro solitário nos Pireneus, Alexandre Grothendieck tem o direito de descansar depois de tudo por que passou”. escreveu Yves LadegLad. “Ele merece nossa admiração e nosso respeito e acima de tudo, pensando no tanto que lhe devemos, precisamos deixá-lo em paz.”