Antonio Luiz Pereira
Renate Watanabe
Responsáveis pela seção Leitor Pergunta/RPM

Neste número da revista, a seção Leitor Pergunta trataria de um assunto muito presente na vida de todos os nossos leitores: os problemas encontrados em questões de concursos em geral. Considerando a importância do tema e o grande número de questões discutidas, resolvemos apresentar, não uma seção, mas um artigo intitulado Questões de vestibulares e outros concursos.

     Introdução

Muitos leitores escrevem para a seção Leitor Pergunta da revista questionando testes de vestibulares, de concursos para professores, de concursos para admissão em empresas, alegando que não há alternativa correta.

Muitas dessas questões procuram apresentar uma situação real ou concreta que deve ser primeiramente traduzida para um problema matemático antes da resolução propriamente dita.

A idéia de apontar a relação da Matemática com problemas concretos é positiva e a capacidade de fazer essa ligação merece ser avaliada. Entretanto, a formulação de questões adequadas para esse propósito não é tarefa fácil e suas dificuldades não são, muitas vezes, superadas pelos autores das questões.

Uma dessas dificuldades é que um enunciado apropriado depende de um equilíbrio delicado. O enunciado deve ser suficientemente completo e preciso para permitir uma tradução livre de dúvidas para a linguagem matemática e, ao mesmo tempo, não deve ser extenso e demasiadamente detalhado, pois isso pode tornar o enunciado confuso e cansativo.

Espera-se, em geral, que idealizações, aproximações e suposições "óbvias" ou implícitas no enunciado sejam feitas pelos candidatos. Isso, porém, é muito diferente de esperar que hipóteses extras sejam introduzidas para completar enunciados imprecisos ou incompletos. Voltaremos a esse ponto ao comentar as questões.

No que segue, reproduzimos algumas dessas questões, anexando os comentários do leitor que as enviou e a nossa opinião. Convidamos os leitores a participar da análise de tais questões e a enviar-nos as suas opiniões.

     De um leitor pernambucano

"... eu fiz o concurso do estado para professor de matemática e três questões... estavam formuladas de modo errado... Por favor tirem essa dúvida para mim..."

Abaixo reproduzimos (textualmente) o enunciado de uma dessas questões.

Uma cabra está amarrada por uma corda de 9 metros de comprimento, no vértice de uma construção maciça com a forma de um triângulo eqüilátero de lado medindo 6 metros, como representado na figura.

Nessas condições, qual a área, em metros quadrados, da região que a cabra pode se deslocar?

A) 50,5 .
B) 54 .
C) 60 .
D) 73,5 .
E) 65 .

Nossa opinião

Numa primeira leitura é difícil compreender o problema, em parte por causa da figura. O lado do triângulo mede 6 metros, portanto, a sua altura mede metros.

Não existem cabras gigantes de 5 metros de altura, como a da figura. Logo, o desenho engana. Pensando numa cabra normal, para resolver o problema seria necessário saber a que distância do chão está o pescoço da cabra. Essa informação não foi dada.

Para resolver o problema, torna-se necessário levantar uma hipótese adicional. Vamos supor que o tamanho da cabra seja desprezível em relação às demais variáveis. Essa hipótese está longe de ser natural ou óbvia, mas ela vai nos levar a uma das alternativas. Se a intenção do examinador era incluir essa hipótese, ela DEVERIA CONSTAR EXPLICITAMENTE DO ENUNCIADO.

Então, para resolver o problema, deve-se considerar um cone de altura metros, geratriz de 9 metros e calcular o raio desse cone.

Isso é fácil:

E a área da região que a cabra pode percorrer? Como não há nenhuma informação sobre a área da base da construção, uma nova hipótese faz-se necessária: vamos supor que a "construção maciça triangular" de 5 metros de altura tenha uma base tão fininha que a sua área seja desprezível em relação ao tamanho do círculo (e essa construção se manteria de pé). Também essa hipótese, nem natural nem óbvia, deveria ter sido explicitada.

Assim, chega-se à alternativa B.

Em vez de supor que a cabra tenha altura zero e a construção tenha uma base de área zero, poderíamos inventar para essas grandezas outros valores e assim obter como resposta uma das outras alternativas apresentadas. Já que nada foi dito, por que pensar numa cabra de 0 metro de altura e não em uma de 1 metro de altura, por exemplo?

É preciso tomar muito cuidado ao formular testes!

 

     De um leitor do Paraná

Estou encaminhando para análise uma questão de vestibular e a minha contestação... O leitor juntou à sua carta a solução da questão e cópia das respostas que recebeu da comissão organizadora do vestibular da Universidade Estadual de uma cidade do Paraná.

Transcrevemos, a seguir, a questão, o argumento da RPM mostrando que nenhuma das alternativas apresentadas é correta e trechos das cartas de membros da comissão organizadora do vestibular defendendo a validade de uma das alternativas erradas com argumentos assustadores.

A questão

Uma empresa pretende lançar um perfume e deve decidir qual, dentre as duas opções de frascos representadas nas imagens, é a melhor para a armazenagem. A prateleira para estoque é retangular com 1 m de comprimento, 5,5 cm de profundidade e tem dez divisões de 10 cm de altura cada. Os frascos devem ser armazenados com a abertura voltada para cima e estar inteiramente contidos na prateleira. O preço de venda ao consumidor (pc) é R$100,00 por frasco, independentemente do tipo de frasco, e cada mililitro do produto custa à empresa R$1,00. O custo do produto (cp) depende da capacidade de cada frasco. O lucro da empresa é dado por:

L = (pc).(ca) - (cp).(ca), onde (ca)

é a capacidade máxima de armazenamento.

Com base nessas informações, é correto afirmar que o frasco que dará maior lucro para essa empresa é:

a) Frasco 1 com lucro de R$10.600,00.
b) Frasco 1 com lucro de R$15.200,00.
c) Frasco 1 com lucro de R$20.400,00.
d) Frasco 2 com lucro de R$19.800,00.
e) Frasco 2 com lucro de R$33.100,00.

Nossa opinião

Observa-se, de início, que (pc) = 100 para os dois frascos e para o frasco 1, (cp) = 50, enquanto, para o frasco 2, (cp) = 40.

L = (pc).(ca) - (cp).(ca) = (ca).[100 - (cp)].

Observando os frascos da figura e suas medidas, vê-se que caberão na prateleira mais frascos do tipo 2 do que do tipo 1 e os frascos do tipo 2 têm um custo menor para a empresa, dando um maior lucro.

Essas observações permitem eliminar as alternativas a), b) e c).

Analisando a fórmula acima, para o frasco 2, obtém-se L = (ca).60, e como (ca) (capacidade máxima de armazenamento) tem que ser um número inteiro, a alternativa e) pode ser eliminada, pois 60 não é um divisor de 33.100.

Resta a alternativa d) enfaticamente defendida pela comissão organizadora do vestibular.

Ora, se a alternativa d) estivesse correta, (ca) = 19.800/60 = 330 e, sendo 10 o número de divisões, a capacidade máxima de armazenamento de cada divisão seria 33. Cada divisão é um retângulo 100 x 5,5  centímetros  e  o  diâmetro  da  base do frasco 2 é 3 centímetros. Como 33 x 3 = 99, os frascos poderiam ser dispostos com os centros das bases alinhados:

Como qualquer dona de casa sabe, outras disposições são melhores se o objetivo é obter maior aproveitamento do espaço nas prateleiras. Um cálculo mostra que, com a disposição ilustrada abaixo, podem ser colocados muito mais do que 33 frascos na prateleira, isto é, 33 está longe de ser a capacidade máxima de armazenamento:

Logo, também a alternativa (d) não pode ser a correta.

Conclusão: o teste está "furado".

Houve uma troca de correspondência entre o leitor e a comissão organizadora do vestibular, que não reconheceu a falha apontada.

Transcrevemos argumentos, usados pela comissão:

A questão apresenta diferentes resoluções de acordo com as diferentes hipóteses que poderiam ser levantadas pelos candidatos. O que, nesse caso, delimita a resposta do problema, após a validação das diferentes conjecturas, são as alternativas apresentadas. Ou seja, existe uma única alternativa que valida uma dentre as diferentes hipóteses (a alternativa d).

O que está em pauta na discussão não são as diferentes formas de resolução e sim a possibilidade delas existirem, ou seja, as diferentes concepções de Matemática. É desejável que numa prova de Conhecimentos Gerais, as competências e habilidades ... sejam avaliadas e consideradas em detrimento de questões pautadas em concepções formalistas e tradicionais de Matemática.

Desse modo, mantém-se o gabarito oficial.

A carta é assinada pelo coordenador, pela diretora pedagógica e pela assessora pedagógica, todos da Coordenadoria de Processos Seletivos da Universidade.

O que aparentemente ocorreu é que a intenção da banca era permitir apenas arranjos alinhados, mas essa restrição não é nem mesmo sugerida implicitamente no enunciado. Pelo contrário, a expressão: capacidade máxima de armazenamento determina que o melhor arranjo seja procurado entre todos os possíveis, o que não somente torna o problema muito difícil e, portanto, inadequado para o propósito da prova, como também, juntamente com os dados numéricos, invalida a hipótese do alinhamento.

É incrível que pessoas em posição de destaque dentro de uma coordenadoria de processos seletivos de uma universidade estadual queiram justificar a validação de uma resposta indubitavelmente errada. Contrariamente aos dizeres da carta, a "matemática tradicional e formal" é essencial para decidir sobre a correção de procedimentos matemáticos, não podendo ser deixada de lado, qualquer que seja o método didático-pedagógico adotado no ensino da Matemática.

O pedido de anulação do teste foi levado à Justiça.

Na época, um dos signatários da carta acima fez declarações a um jornal local e estas estão na internet. Transcrevemos um parágrafo:

A hipótese dos frascos estarem arrumados de forma não alinhada não está contemplada em nenhuma das alternativas. Uma questão de múltipla escolha implica na análise do enunciado à luz das alternativas dadas. Analisando as alternativas, o candidato, até medianamente preparado na área de Matemática, abandonaria a outra possibilidade e assumiria o posicionamento dos frascos alinhados.

Em primeiro lugar, o coordenador optou por ignorar a frase "capacidade máxima de armazenamento" e foi muito infeliz nas suas declarações. Um "candidato, até medianamente preparado na área de Matemática" teria percebido logo que os frascos não poderiam estar alinhados.

A sugestão de que uma das alternativas deve ser usada para formular uma hipótese extra é inaceitável. O enunciado de um teste deve ser claro e completo o suficiente para permitir uma resolução do problema. A adição de diferentes hipóteses pode conduzir a diferentes respostas. A análise dessas possibilidades é certamente interessante em vários contextos, mas não em uma prova do tipo teste. Além disso, no caso particular, a hipótese extra sugerida contradiz claramente o enunciado do problema, que pede explicitamente o arranjo que resulte em capacidade máxima de armazenamento. (A RPM ainda não sabe qual foi o desfecho do episódio no Paraná.)

     Falha aparente ou real?

Um leitor do interior de São Paulo mandou o teste abaixo, elaborado por uma empresa.

Foi feita uma pesquisa sobre a altura dos alunos de uma série de uma escola. A média foi de 1,51m e a mediana foi de 1,53m. Com base nesta pesquisa, podemos afirmar com certeza que, dentro desta série:

(A) Metade dos alunos mede 1,53m ou mais.
(B) A maior altura é de 1,53m.
(C) A menor altura é de 1,51m.
(D) Metade dos alunos mede 1,51m ou menos.

E acrescentou:

Alternativa fornecida pela empresa: (A). Na minha concepção não há alternativa correta.

Nossa opinião

A empresa está certa. É verdade que ficaria mais claro dizer "pelo menos a metade dos alunos mede 1,53m ou mais", mas esse fato não torna falsa a sentença "metade dos alunos mede 1,53m ou mais".

Imaginando uma classe de 6 alunos de alturas 1,40; 1,53, 1,53, 1,53, 1,53, e 1,54, as condições do enunciado estão satisfeitas e as sentenças "um dos alunos mede 1,53m"; "dois dos alunos medem 1,53m"; "três dos alunos medem 1,53m", "metade dos alunos mede 1,53m" são todas verdadeiras.

Mais um!

Este teste veio de um vestibular do Rio de Janeiro. O leitor escreveu:

Solicito mais uma vez a vossa ajuda concernente ao problema abaixo...

"Ao escolherem as datas de seus vestibulares, três instituições de ensino decidiram que suas provas seriam realizadas na primeira semana de um determinado mês. A probabilidade de que essas provas não aconteçam em dias consecutivos é, aproximadamente:

(a) 26%      (b) 28%       (c) 30%       (d) 32%        (e) 34% ""

Nossa opinião

Se o enunciado for aceito ao pé da letra, as três instituições poderiam fazer as provas no mesmo dia, ou duas das instituições poderiam fazer a prova no mesmo dia e a terceira num dia não consecutivo. Isto é, se as três instituições marcarem a prova numa quarta-feira, por exemplo, será verdade que "as provas não acontecem em dias consecutivos". Mas, nesse caso, nenhuma das alternativas é correta (a probabilidade seria ).

Se for acrescentada a hipótese de que as provas serão realizadas em dias distintos (o que é razoável, mas não está explícito no enunciado), o espaço amostral terá elementos (é o numero de subconjuntos de 3 dias escolhidos dentre os 7). Numerando os dias de 1 a 7, haverá 10 eventos favoráveis:

1-3-5 ; 1-3-6 ; 1-3-7 ; 1-4-6 ; 1-4-7 ; 1-5-7 ; 2-4-6 ; 2-4-7 ; 2-5-7 e 3-5-7.

Nesse caso, a probabilidade é (alternativa (b)).

Novamente, parece ser esperado que os candidatos introduzam hipóteses adicionais. Fazemos, ainda, as seguintes observações:

1) O enunciado da questão, na verdade, é ambíguo. A frase "que essas provas não aconteçam em dias consecutivos" poderia ser interpretada como "que essas provas não aconteçam em três dias consecutivos". Com essa interpretação, deveriam ser eliminados apenas os eventos 1-2-3; 2-3-4; 3-4-5; 4-5-6 e 5-6-7.

2) A hipótese de probabilidades iguais em dias diversos da semana é usualmente admitida em questões desse tipo, embora questionável em princípio.