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Geraldo
Ávila
Em artigo na RPM 18 tratamos da conveniência de se incluir a derivada no ensino médio; e voltamos a esse tema em artigo na RPM 23. Mais recentemente, na RPM 53, os professores Wagner e Carneiro mostraram como a derivada pode ser utilizada com vantagem na resolução de problemas concretos em um artigo com o provocativo título Vale a pena estudar Cálculo?. Embora os livros do ensino médio incluam limites e derivadas entre os tópicos tratados, essas coisas são pouco ensinadas, muitas vezes sob o pretexto de que são muito difíceis. Nosso objetivo aqui é mostrar que não é bem assim, desde que se comece com uma apresentação bem simples e modesta do que seja a derivada. Pretendemos mostrar como isso pode ser feito no contexto do estudo das funções. As funções costumam ser apresentadas num bloco único, logo na primeira série do ensino médio, de maneira desvinculada de geometria analítica, limites e derivadas, que aparecem nos livros da terceira série. É importante que esses conceitos de funções, derivadas e um pouco de geometria analítica da reta sejam integrados, e não separados em blocos estanques.
Geometria analítica tem muito a ver com funções e sistemas lineares. E como já se torna hábito - aliás, muito salutar - discutir gráficos no ensino fundamental, ali é o lugar certo para introduzir a equação da reta. Mas é preciso não exagerar: nada de toda aquela “parafernália” de equação geral, equação na forma normal, equação segmentária, retas perpendiculares, nada disso. Somente um comecinho bem simples e de fácil compreensão. Apenas retas pela origem, por exemplo, em conexão com a idéia de proporcionalidade entre grandezas e regra de três. (Veja nosso artigo na RPM 8.) Nesse estágio deve-se falar em declive (declividade, coeficiente angular) da reta, e enfatizar o significado geométrico do declive, mostrando visualmente que quanto maior o declive, mais inclinada é a reta em relação ao eixo horizontal. É preciso explicar também o significado do declive negativo, novamente valendo-se da visualização geométrica. O ensino de funções num bloco único e isolado é um exagero. Toma muito espaço e apresenta poucas chances de aplicações significativas. Melhor é fazer uma breve introdução ao conceito de função, de preferência com exemplos simples e concretos. Nada de despejar sobre o aluno toda aquela terminologia de função injetiva, sobrejetiva, bijetiva, contradomínio, etc. A meu ver, o professor deveria iniciar a primeira série do ensino médio retomando a proporcionalidade e a regra de três, mostrando que grandezas proporcionais são como duas variáveis, uma dependente da outra (a variável independente), as quais dão origem ao gráfico de uma reta pela origem. Daí a mostrar a equação geral da reta na forma normal y = mx + n não é difícil: trata-se de uma translação do gráfico y = mx de magnitude n ao longo do eixo vertical. Trabalhando com diferentes valores numéricos de m e n, o aluno não terá maiores dificuldades na compreensão do caso geral. Em seguida vale a pena falar em acréscimos e decréscimos das variáveis, familiarizando o aluno com a notação x (delta x) e y (delta y), e com o fato de que o declive da reta é y/x. Vários exemplos concretos ajudam nessa familiarização, inclusive com valores positivos e negativos desses acréscimos.
Continuando com a introdução de funções, o exemplo mais adequado a ser apresentado a seguir, pela sua simplicidade, é o da função y = f(x) = x2. Aqui o professor deve calcular pausadamente alguns valores de y para valores atribuídos a x, como x = 0, ±1, ±3/2, ±2, ±5/2, ±3. É até conveniente fazer uma tabela desses valores. Um dos benefícios desses cálculos é a facilidade em mostrar ao aluno que f(x) = f(-x), o que permite introduzir o conceito de função par a partir de uma situação bem concreta. De um modo geral, diz-se que uma função f(x) é par se ela estiver definida num intervalo simétrico em relação à origem (isto é, intervalo do tipo [-a, a]) e f(-x) = f(x) para todo x nesse intervalo. O aluno vai logo perceber que fica rapidamente difícil plotar pontos com valores maiores de x, como 4, 5, etc. Não obstante isso, costumamos “vender” a imagem de que o gráfico tem o aspecto ilustrado na figura 1. Mas como ter certeza de que o gráfico é uma curva que tem a concavidade sempre voltada para cima, se não temos como continuar fazendo o gráfico além de valores relativamente pequenos, como x = 3? Será que lá muito longe a curva não vai ter o aspecto ilustrado na figura 2?
Para responder a essa pergunta, recorremos ao declive da reta tangente. Com efeito, dizer que a concavidade da curva está voltada para cima significa precisamente que o declive da reta tangente cresce à medida que crescem os valores atribuídos a x, como ilustra a figura 3. Mas como saber que esse declive é sempre crescente? A única maneira de responder a essa pergunta é calcular esse declive. Pode parecer um desafio sério, já que nem sabemos como definir reta tangente a uma curva qualquer.
Até agora o aluno só tem familiaridade com reta tangente a uma circunferência num de seus pontos: é a reta que toca a circunferência somente nesse ponto; ou ainda, é a reta que passa por esse ponto e é perpendicular ao raio que também passa por aí. Nenhuma dessas definições serve para uma curva qualquer. Veja a figura 4: a primeira das curvas ali representadas ilustra uma reta que toca a curva num único ponto, e nem por isso merece o nome de reta tangente; a segunda curva ilustra uma reta que toca a curva em mais de um ponto e que, no entanto, merece o nome de reta tangente no ponto P.
Para chegar a uma definição de reta tangente, vamos considerar uma curva que seja o gráfico de uma função y = f(x). Seja P = (x, f(x)) o ponto onde desejamos traçar a reta tangente, que está para ser definida. Quando atribuímos a x um acréscimo x = h,1 a variável dependente y sofre um acréscimo correspondente y, e passamos do ponto P = (x, y) ao ponto Q = (x + h, y + y). Por exemplo, no caso concreto da função y = f(x) = x2 (veja a figura 5, onde, para facilitar o visual, abrimos a curva para a direita), temos: y + y = f(x + h) = (x + h)2 = x2 + 2xh + h2, de sorte que Em conseqüência, Repare agora que, mantendo fixo o valor de x e variando h, o ponto P permanece fixo, enquanto Q vai mudando de posição. Na figura 6 representamos várias posições de Q à medida que h, sempre positivo, vai decrescendo de valor, tendendo a zero. Atentos à figura, vemos que a reta secante vai passando por várias posições, aproximando-se de uma posição limite, uma reta limite, por assim dizer, a qual é definida como sendo a reta tangente à curva no ponto P. O declive dessa reta tangente é precisamente o limite do declive 2x + h quando h tende a zero. Esse valor limite é exatamente 2x. Repare que h nunca é zero, pois esse valor não faria sentido na razão incremental y/h. O que nos interessa é saber o valor limite dessa razão, o valor do qual ela pode se tornar tão próxima quanto quisermos, bastando para isso fazer h suficientemente pequeno. Esse limite é o que se chama a derivada da função no valor x da variável independente. A derivada de uma função y = f(x) costuma ser indicada com a notação y’ = f’(x).
A derivada tem inúmeras utilidades no estudo das funções. Limitando-nos aqui sempre à função y = f(x) = x2, necessitamos primeiro dos conceitos de função crescente e função decrescente. São noções simples e de fácil compreensão, principalmente com um exemplo concreto, como esse que vimos usando. Vamos escrever em destaque: Ser crescente significa que quando x cresce, y também cresce; e ser decrescente significa que quando x cresce, y decresce. De acordo com essas definições, nossa função y = f(x) = x2é crescente em x > 0 e decrescente em x < 0. Já sua derivada y = f’(x) = 2x é crescente em todo o eixo dos x. Tendo sempre em mente que a derivada é o declive da reta tangente, o fato de esta derivada y = f’(x) = 2x ser crescente significa que a reta tangente vai-se tornando mais e mais vertical, à medida que x cresce a partir do valor zero (figura 3). Isso significa que a curva tem concavidade sempre voltada para cima; não é como aquela da figura 2. Observe também que a derivada se anula quando x = 0, significando que o declive da reta tangente na origem é zero, donde a reta tangente ser horizontal, ou seja, o próprio eixo dos x. Como conseqüência, a curva tem mesmo o aspecto da figura 1, passa pela origem sem fazer um bico, como na figura 7.
O professor não pode apresentar em sala de aula o material desenvolvido até aqui exatamente como está. Esta apresentação é para leitores que já são professores, alunos de licenciatura, ou que já tenham preparo suficiente para seguir os vários passos do que fizemos. Para o aluno de uma primeira série do ensino médio, o professor terá de fazer um preparo preliminar sobre funções, principalmente ensinando a calcular f(x) para vários valores de x e de f. Em vista disso, o material aqui apresentado pode exigir mais de uma aula para sua devida apresentação. A própria derivada de y = x2 deve ser calculada primeiro para valores particulares de x, como x = 1, x = 3/2, x = 2, etc. Da minha experiência de vários anos em sala de aula, eu aprendi que aulas expositivas não podem durar muito tempo, algo entre 15 e 30 minutos é o máximo, tempo esse que deve ser seguido de trabalhos pelos alunos, individualmente ou em grupos, fazendo exercícios sobre a matéria exposta, ali na sala, com o professor sempre pronto para ajudar. Essa é uma maneira de estimular a participação dos alunos. Não quero com isso dizer que o professor passe o resto da aula com essas atividades, tudo depende dos problemas que estão sendo tratados, às vezes fáceis, às vezes mais difíceis. No pressuposto de que haja tempo sobrando, então que a aula seja retomada. Vários exercícios podem ser propostos, seja para resolver ali mesmo na sala de aula, com a ajuda do professor, seja para fazer em casa, ou pelo menos, para que o aluno possa refletir sobre eles até a próxima aula. Alguns exemplos: 1) Estenda a figura 3 para a esquerda da origem e desenhe a reta tangente em vários pontos. 2) Prove, no caso da função y = f(x) = x2, que ela é crescente em x > 0 e decrescente em x < 0. (Para isso não é preciso usar derivada.) 3) Mostre que y = f(x) = x3é uma função crescente em toda a reta, mesmo em x < 0. 4) Mostre que a função do exercício anterior é uma função ímpar, assim chamada toda função que é definida em um intervalo simétrico em relação à origem (isto é, do tipo [-a, a]) e satisfaz a propriedade f(-x) = -f(x) para todo x nesse intervalo. 5) Proponha um desafio: calcular a derivada de y = f(x) = x3. Como sugestão, que o aluno relembre a expansão de (x + h)3; complemente este exercício com a representação das retas tangentes ao gráfico da função; proponha mostrar que a função tem concavidade para baixo em x < 0 e para cima em x > 0. 6) Aproveite para fazer os alunos provarem direitinho as fórmulas do quadra-do da soma e do cubo da soma. Um desafio maior seria provar a fórmula da quarta potência da soma. Seria um modo de encaminhar o aprendizado do binômio de Newton. 7) Prove que a derivada da soma de duas função é a soma das derivadas delas, isto é, [f(x) + g(x)]’ = f’(x) + g’(x). 8) Prove que, se k é uma constante, então a derivada de kf(x) é kf’(x). Nada de derivada de um “produto” ou “quociente” de funções. E, se algum aluno levantar essa questão, é conveniente esclarecer que o objetivo no momento não é ensinar Cálculo, apenas tratar de noções introdutórias, e que o tempo disponível será utilizado na apresentação de aplicações interessantes, especialmente no estudo do movimento que o professor de Física fará em sua disciplina. Sim, um dos principais objetivos na introdução da derivada logo no início da primeira série do ensino médio é a interdisciplinaridade com a Cinemática, por isso mesmo os professores de Matemática e Física devem planejar juntos o trabalho que vão desenvolver.
Repare o leitor quantos conceitos foram introduzidos no material apresentado até aqui, num contexto bem concreto, quando os conceitos são efetivamente necessários e facilmente aceitos, já que o aluno “vê” a necessidade neles, muito diferente daquele costume antipedagógico de dar definições e mais definições, sem que o aluno saiba para que vão servir. Introduzimos os conceitos de “declive de uma reta”, “função par”, “concavidade”, “razão incremental”, “reta tangente”, “limite”, “derivada”, “função crescente”, “função decrescente” e “função ímpar”, ao todo dez conceitos importantes!
É gratificante constatar que alguns autores já estão incluindo a derivada em seus livros para o ensino médio, de maneira sensata, breve e equilibrada; mas, infelizmente, ainda na terceira série, já no final do curso, quando pouco se pode aproveitar desse estudo. Há também uma certa reserva quanto à derivada, que costuma ser considerada difícil e imprópria para o ensino médio, devendo ficar restrita à Universidade. Isso acontece também porque criou-se o hábito de preceder o ensino de derivadas de um pesado capítulo sobre limites, o que é completamente desnecessário, como vimos há pouco. O ensino da derivada é da maior importância, pelo tanto que ajuda no tratamento de inúmeras propriedades das funções. E tem de ser feito logo na primeira série, quando pode integrar-se harmoniosamente com a Física no estudo do movimento, além de servir para o estudo dos polinômios e em outras aplicações científicas. Devemos enfatizar que a derivada foi inventada há mais de três séculos; e, juntamente com o conceito de integral, ela é o alicerce de toda a ciência e tecnologia dos últimos trezentos anos. Os reformadores do ensino da Matemática de mais de quarenta anos atrás criticavam o fato de que a Matemática ensinada na escola básica não ia além do que se havia desenvolvido até 1700. Mas vejam que ironia: a derivada, que é anterior a 1700, continua de fora do ensino!
Quando se fala tanto em utilizar a história no ensino, voltemos nossas vistas para o desenvolvimento histórico do Cálculo. A derivada foi inventada no século 17, através de vários problemas particulares, que eram resolvidos um a um, separadamente, até que, pelo final do século, foi-se percebendo que havia um elemento comum em todos eles. Durante todo esse século, e em boa parte do século seguinte, não havia o conceito de limite. Newton falava em quantidades evanescentes, ora tratadas como nulas e desprezíveis, ora tratadas como inferiores a qualquer quantidade positiva. Leibniz fazia algo parecido, com notação mais apropriada. D’Alembert foi o primeiro a interpretar a derivada como limite, isso já pelos meados do século 18, quando os métodos do Cálculo já estavam bem desenvolvidos, graças aos esforços de vários sábios, dentre os quais se destacam os Bernoulli e Euler. Limite mesmo, numa teoria bem estruturada e útil ao desenvolvimento da Análise Matemática, isso só foi acontecer a partir de 1815. Falaremos disso num próximo artigo.
Antes que algum leitor pense que o ensino de derivadas logo na primeira série vai aumentar ainda mais o ensino de funções, apressamo-nos a dizer que é exatamente o contrário. O ensino de funções, como vemos em vários livros, é que está carregado de terminologia e notação, de maneira artificial e descontextualizada. O excesso de “conjuntos” continua presente em vários livros, “entulhando” o currículo. Tudo isso pode ser reduzido substancialmente e com vantagens, beneficiando o bom aprendizado das idéias matemáticas. São as idéias que devem ser enfatizadas, a linguagem e a notação somente quando necessárias para o objetivo de introduzir novas idéias. Na apresentação da derivada, nem a equação da reta se faz necessária, apenas o declive da reta tangente. Já no contexto dos sistemas de equações lineares é interessante desenvolver a equação da reta. Essa equação na forma normal já é suficiente para interpretar geometricamente o significado da solução, soluções ou não soluções dos sistemas lineares. E serve também para tratar de problemas simples de programação linear. Com esse procedimento, tem-se a interação de diferentes tópicos da Matemática e descarrega-se aquele bloco extenso da geometria analítica da terceira série. Os blocos de limites e derivadas, como ainda aparecem em vários livros da terceira série, devem ser reduzidos substancialmente. Como já dissemos e ilustramos atrás, um tratamento separado e prévio de limites é totalmente desnecessário. As apresentações em alguns livros ainda são feitas num estilo que está mais para o ensino universitário que ensino médio. Portanto, além da redução da matéria tratada, é necessário fazer uma devida adequação dessa matéria ao ensino médio. É gratificante podermos registrar aqui que em pelo menos um texto que examinamos isso está sendo feito. 1A indicação do acréscimo x é um conveniência em muitos casos, como veremos logo adiante. |