José Paulo Carneiro

 

     Introdução

A fotografia abaixo reproduz o abajur do meu quarto e a sombra que ele projeta na parede. Que curvas são essas?

A cúpula do abajur é um tronco de cone, com altura h e raios das bases R e r. A lâmpada é centralizada, de modo a ficar no eixo do tronco de cone. Para simplificar, podemos imaginar a lâmpada concentrada em um ponto, situado a uma distância b da base inferior e a uma distância c da base superior do tronco, sendo b + c = h (ver figura 1).

figura 1

A função da cúpula é barrar uma parte dos raios de luz, evitando que a luz atinja diretamente a vista. Os raios de luz que escapam dessa barragem formam um par de cones, ambos com vértice na lâmpada (ver figura 2). Devemos imaginar esses cones prolongados para além das bases da cúpula, um para cima e outro para baixo.

     Equacionamento e resolução do problema

Para descobrir a natureza da sombra do abajur, vamos cuidar primeiro da parte superior da sombra, que é a interseção da parede com o cone de luz superior. Esse cone fica caracterizado pelo ângulo da figura 3, que define sua "abertura" e é tal que: m = tg = r/c.

Criemos um sistema de coordenadas em três dimensões OXYZ, de modo que a origem O do sistema esteja sobre a lâmpada (concebida como um ponto) e o eixo do cone coincida com o semi-eixo positivo OZ, como na figura 4.

Nessa figura, vemos que um ponto genérico P = (x; y; z) pertence à superfície do cone se, e só se, enquanto ele distar z = AP do plano XOY, sua distância PB ao eixo permanecer igual a . Porém, a figura 5, vista no plano AOB, mostra que: PB/PA = tg = m, ou seja:

PB = mPA = mz. Logo, a equação do cone é: .

A parede é um plano paralelo ao eixo do cone. Podemos ajustar os eixos OX e OY de modo que o plano XOZ fique paralelo à parede. Nesse caso, a parede tem equação y = d, onde d é a distância da lâmpada à parede.

Finalmente, a curva que procuramos é a interseção do cone de equação com o plano de equação y = d, isto é, o conjunto dos pontos (x; y; z) que são soluções do sistema: .

Esse sistema obviamente é equivalente ao sistema: ,

e, se olharmos esses pontos no plano y = d, poderemos ficar somente com a equação que é a equação dessa curva plana nesse plano.

Lembrando que m = r/c, essa equação fica: .

Para a parte inferior da sombra, um raciocínio inteiramente análogo concluiria que a equação dessa parte da sombra é: .

Para o abajur do meu quarto, essas dimensões são, aproximadamente:

r =10 cm, R = 25 cm, b = 10 cm, c = 20 cm e

(quando o abajur está no seu lugar mais usual) d = 40 cm.

Nesse caso, as equações da sombra são, em centímetros:

e .

A figura 6 mostra esses gráficos obtidos por um programa de computador.

   figura 6                       

     Identificação das curvas

Essas curvas que obtivemos são uma novidade ou será que já as vimos por aí no ensino médio? Na verdade, elas são velhas conhecidas. A sombra superior tem equação . Elevando essa equação ao quadrado e manipulando, obtemos: , que é a equação de uma hipérbole com centro na origem do plano XZ, eixo transverso sobre o eixo Z, de comprimento , e eixo não transverso sobre o eixo X, de comprimento 2d (veja [2]).

Como a equação é equivalente ao sistema, vê-se que a sombra superior é o ramo positivo dessa hipérbole. Analogamente, a sombra inferior é o ramo negativo da hipérbole de equação:

É interessante observar que, quando a lâmpada se situa exatamente no encontro das diagonais do trapézio da figura 1, então (verifique!), de modo que a sombra superior e a sombra inferior são os dois ramos de uma mesma hipérbole.

O leitor pode verificar também que, se o abajur for cilíndrico, as duas partes da sombra serão também os dois ramos de uma mesma hipérbole. Mais ainda: se o cilindro for eqüilátero (altura igual ao diâmetro da base) e a lâmpada estiver centralizada, a resultante hipérbole será eqüilátera (eixos transverso e não transverso de mesmo comprimento).

 

     Comentários

1. Não deve ser novidade para muitos leitores que a interseção de um cone e um plano possa ser, em certos casos, uma hipérbole. Na verdade, o nome "cônicas" vem justamente do fato de que a seção de um cone de duas folhas por um plano é, em geral, uma elipse, uma parábola ou uma hipérbole, conforme o plano seccionador forme com o eixo do cone um ângulo maior, igual ou menor do que o ângulo que a geratriz do cone forma com o seu eixo. No caso em questão, o plano da parede é paralelo à geratriz do cone, formando portanto um ângulo nulo, menor do que o ângulo q que a geratriz do cone forma com o seu eixo.

Esse teorema já era conhecido por Apolônio de Perga (séc. III a.C.) e já foi algumas vezes citado na RPM, por exemplo, em [3] e [1].

2. Um tema-chave no ensino médio é o ensino de funções (reais de uma variável real) e seus gráficos. Dentre essas, ninguém pode negar a grande importância das funções polinomiais de 1o e 2o graus, das funções logaritmo e exponencial e das funções trigonométricas. Muitas vezes, porém, queremos sair um pouco da rotina e apresentar outras funções que tenham uma definição simples e estejam ligadas a aplicações práticas. Está aí um interessante exemplo: as funções da forma , cujo gráfico é um ramo de hipérbole. Aliás, é uma boa ocasião para pensar também nos gráficos de funções da forma ou , cujos gráficos são também partes de cônicas (desafio: quais?).

 

Referências bibliográficas

[1] AVILA, G. A hipérbole e os telescópios. RPM 34.
[2] LIMA, E.L. Coordenadas no plano. IMPA-VITAE, 1992.
[3] SILVA, G.S. Por que elipse, hipérbole, parábola?. RPM 7.