Elon Lages Lima

Mudando de assunto no meio de uma conversa sobre ensino, Zoroastro me perguntou de repente:

Você conhece meu filho, não?

Claro, Zoroastro Azambuja Neto, que escreve umas coisas bem interessantes na revista Eureka. Às vezes ele usa o pseudônimo de Gugu.

É para não ser confundido comigo, porém isso não me agrada. Em nossa família, não gostamos de nomes esquisitos. Mas ele é divertido. Outro dia me propôs uma charada engraçada: provar que - é um quadrado. Você sabe fazer isso?

Não. Como é?

Ora, basta escrever épsilon e subtrair psi.

Não achei graça alguma. Isso prova apenas que  - é racional e positivo. Mas você estava falando sobre contextualização.

É verdade. Contextualização está na ordem do dia. De minha parte, concordo plenamente com a preocupação em utilizar o conhecimento matemático que se adquire na escola para interpretar melhor os fatos e as experiências da vida. Mas, segundo você corretamente apregoa, a estrutura da Matemática que se ensina deve ser montada em três pilares: conceituação, manipulação e aplicação. Contextualização é aplicação. Você só pode aplicar um instrumento matemático quando o entende (conceituação) e sabe operar com ele (manipulação).

O papel da conceituação é fundamental, pois sem ela você não saberia qual instrumento matemático iria usar para resolver o seu problema.

Outro aspecto essencial da contextualização é que os problemas a serem tratados em classe devem ser reais; não podem ser meros frutos da imaginação; precisam ocorrer no dia-a-dia. Vou dar um exemplo, que realmente aconteceu e que pode ser usado em aula quando se está estudando a função exponencial. Na verdade, são dois exemplos, no mesmo contexto porém com nuances diferentes, que de fato ocorreram com a minha família.

O primeiro se deu com minha esposa. Devido a um pequeno problema odontológico, ela teve de tomar um antibiótico de 12 em 12 horas. A bula do remédio (que tenho o velho hábito de ler) dizia que, 24 horas após a administração do medicamento, o organismo eliminaria 90% da substância ativa, restando no sangue apenas 10% da concentração plasmática máxima originalmente atingida. Era natural, pois, indagar que porcentagem da droga ainda estaria no seu corpo no momento de tomar a segunda dose.

Uma pessoa menos avisada, com a mania que os leigos têm de acharem que todas as funções são lineares, armaria uma proporção e pensaria assim: se, após 24 horas, 90% do remédio foram eliminados, então, como 12 é a metade de 24, em 12 horas o organismo teria eliminado 45%, que é a metade de 90%, restando portanto 55%. Outra pessoa, igualmente ingênua, pensaria assim: se após 24 horas restam apenas 10% da droga, então após 12 horas restariam 20%. Provavelmente ambos estariam errados.

Com efeito, ao ser administrada no organismo, a droga é absorvida e passa para a corrente sanguínea. Se for injetada, a absorção é imediata e a concentração plasmática máxima é atingida rapidamente. Por via oral, a concentração máxima no sangue é atingida após uma ou duas horas. Depois disso, o organismo começa a eliminar a droga e a concentração decresce continuadamente.

Se chamarmos de t o tempo decorrido depois que a concentração máxima da droga foi atingida, com o valor b, e representarmos por y (função de t) a concentração da droga no sangue no momento t, supõe-se que o decréscimo dessa concentração está próximo do decréscimo exponencial. Consideremos, então, o modelo dado pela exponencial y = bat, onde a é um número positivo menor do que 1. Aceitemos essa fórmula por enquanto. Depois discutiremos sua adequação. Essa expressão envolve números a e b, que nem eu nem minha esposa conhecíamos.

Inicialmente, vamos admitir que o antibiótico tivesse sido injetado (o que raramente se faz hoje em dia), logo teria passado imediatamente para o sangue e t = 0 seria o momento da injeção. Temos

y = bat e,

pela bula, sabemos que ba24 = b/10, ou seja, a24 = 1/10. (Assim nos livramos de b, e podemos calcular a, se quisermos, mas não é necessário.) De a24 = 0,1, vem

, aproximadamente.

Portanto, ba12 = (0,316)b, ou seja, depois de 12 horas ainda restariam no organismo cerca de 30% da droga inicialmente injetada.

Entretanto, é essencial que a contextualização seja o mais realista possível. No nosso caso, o antibiótico foi administrado sob a forma de comprimido. A bula dizia que, quando é assim, a concentração máxima da droga no sangue é atingida depois de 2 horas. Como o tempo t é medido a partir do momento em que a concentração máxima é atingida, 24 horas após a administração do medicamento, temos t = 22, logo ba22 = b/10 e daí a22 = 1/10. Além disso, 12 horas após ingerido o comprimido, tem-se y = ba10. Nossos cálculos ficam então assim:

a10 = (a22)10/22 = (0,1)5/11 = 0,351, logo ba10 = (0, 351)b.

Portanto, 12 horas após ingerido o primeiro comprimido, ainda restariam no organismo cerca de 35% da dose inicial.

Ao fazer essas contas, estamos confiando nos dados que lemos na bula do remédio. Mas até que ponto essas informações são confiáveis? Em geral, sim. Mas nem sempre, como se verá no exemplo seguinte.

Meu sobrinho teve amigdalite e o médico lhe prescreveu um antibiótico cujo princípio ativo é a amoxilina. A bula dizia que, administrado por via oral, sua concentração máxima ocorre uma hora depois da ingestão. E dava mais duas informações. A primeira dizia literalmente: "A meia-vida da amoxilina após a administração do medicamento é de 1,3 horas". Como a droga leva uma hora para ser inteiramente absorvida, isso quer dizer que, dentro de 18 minutos, a concentração máxima se reduziria à metade. Isso não parece razoável. Deveria ser "após atingir a concentração máxima". Mas aceitemos a informação da bula. Tomando-a como verdadeira, seja b a concentração máxima, medida em mcg/ml (microgramas do medicamento por mililitro de sangue), a qual é atingida uma hora após o comprimido ser ingerido. Então, utilizando o modelo dado pela exponencial, a concentração existente t minutos após atingido o máximo é y = bat.

A bula nos diz que ba18 = b/2, ou seja, que a18 = 1/2. Vejamos qual a concentração existente 6 horas após o comprimido ser tomado. Ela é igual aba300, pois serão 5 horas ou 300 minutos após a concentração máxima ser atingida. Ora,

ba300 = b(a18)300/18 = b(1/2)50/3

o que daria aproximadamente 1,5 centésimo milésimo de b, ou seja, nada.

Um raciocínio mais simples, a partir da fórmula y = bat, seria o seguinte: se a concentração reduz-se à metade 18 minutos após atingir o máximo, então após 36 minutos reduzir-se-á à quarta parte, após 72 minutos a um dezesseis avos ... e 288 minutos (= 4 horas e 48 minutos) depois de atingir o máximo, a concentração restante seria 2-16 da máxima, o que daria cerca de 1,5 centésimo milésimo. Assim, a droga estaria praticamente eliminada menos de 6 horas após ser ingerida. Mas por que estamos focalizando esse prazo de 6 horas?

É que, logo em seguida, a mesma bula declara textualmente que "Aproximadamente 50 a 70% da amoxilina são excretados sem modificações na urina após a administração de uma dose única do medicamento". Isso significa que, após 6 horas, a concentração restante seria de 30 a 50% da máxima, o que é muito mais do que quase nada.

Estou certo de que, ao apresentar e discutir com os alunos exemplos como esses, o professor estará contribuindo para despertar o interesse pela Matemática, mostrando que, em vez de ser apenas uma matéria trabalhosa e árida, ela está intimamente ligada às nossas vidas. Esse é o verdadeiro espírito da contextualização. E pode mesmo acontecer que o laboratório que fabrica o antibiótico deva modificar sua bula.

E assim, com uma certa empáfia triunfal, Zoroastro concluiu sua peroração. Foi aí que eu pedi a palavra.

Muito bem. Só restou concluir emitindo o "tenho dito" dos oradores clássicos. Mas faltou algo, que você prometeu mas não cumpriu. Tendo em vista a complexidade dos fatores que interferem num fenômeno natural, um modelo matemático desse fenômeno é sempre uma aproximação e essa aproximação, em geral, faz sentido num certo domínio das variáveis consideradas. Nos casos aqui apresentados, por exemplo, há que se levar em conta que os dados são produzidos estatisticamente. As conclusões, portanto, variam de indivíduo para indivíduo e conforme diferentes circunstâncias relativas a metabolismo, etc.

Ainda assim, uma boa contextualização deve conter justificativa e explicação convincente de que o modelo matemático utlizado é de fato adequado ao problema. É preciso mostrar aos jovens que os cientistas não são mágicos que tiram da cartola uma fórmula matemática que responde a suas perguntas. No caso, por que a função y = bat é um modelo que serve para descrever a eliminação de uma droga no corpo humano melhor, por exemplo, do que y = at + b? Sem responder a essa pergunta, a contextualização fica capenga. O aluno aprende a resolver esse problema, mas não será capaz de lidar com situações análogas.

É verdade. Você tem razão. Como recompensa por sua tão eloqüente convicção, tendo desenvolvido, como o fiz, a manipulação e a aplicação, deixo-lhe o encargo de explicar aos nossos leitores a conceituação.

Com isso, Zoroastro se despediu. Fiquei com a missão de expor aos leitores da RPM o significado das funções do tipo exponencial.

P.S. Obrigado, Carlos Gustavo.

NR

O leitor interessado encontrará essa explicação no próximo artigo.